Quase
uma década depois de A Palavra (Ordet),
Dreyer faz aquele que seria seu derradeiro filme, o
estonteante Gertrud. Um trabalho de depuração
se observa em seus dois últimos filmes, uma purificação
da forma e também do texto: só se fala
e só se mostra o essencial. Na montagem não
há nenhum contracampo: este se torna um local
imaginário, um segundo compartimento que a mente
do espectador constantemente acopla às imagens
mostradas no filme, para ao fim se completar um drama
em dupla camada que ressoa a substância mesma
de Gertrud, e quem sabe de toda a obra de Dreyer:
o material e o idealizável, a fé e a experiência
concreta, o que é visto e o que só pode
existir sob uma crença compartilhada (no caso,
a assimilação de um fora-de-quadro que
não precisa aparecer para ser real).
Primeiro momento mágico do filme: o plano-seqüência
que começa com o olhar lançado ao espelho.
Essa superfície que reflete o mundo em profundidade
reenvia a Gertrud sua verdade mais implacável:
a solidão que redireciona e torna secundária
toda outra característica possível (a
começar pela vaidade). É o começo
de um plano em que muita coisa está para acontecer,
e a câmera se move até com alguma ansiedade,
quase afoita para nos mostrar o decorrer do filme (ou
talvez ela mesma precise descobrir o que vai acontecer).
Em Gertrud, Dreyer consegue de sua câmera
um interessante comportamento duplo, pois a precisa
marcação do plano divide espaço
com um sentimento espontâneo do instante, ou uma
espécie de sensibilidade pontual da cena, no
sentido de fazer pequenos movimentos que são
como respostas instintivas ao ritmo que os atores encontram
durante a cena, diferentemente dos grandes travellings
e das panorâmicas reveladoras que dão
a espessura de um exaustivo ensaio prévio. Gertrud
é a escrita livre de uma tragédia
perfeitamente estudada. Do início ao término
dos planos, a palavra e o pensamento devem se encontrar
numa expressão comum.
Dreyer sugere à sua personagem-título
uma saída bastante iluminada, mesmo que não
pareça acolhedora de todo: uma saída para
o branco, uma desaparição súbita
no excesso de luz e de claridade. Toma-se o branco,
de maneira geral, como mistura de todos os matizes –
o Todo indistinto. Pois Dreyer ilustra através
do branco um mergulho violento na idealidade que serve
como fonte de toda a tragédia de sua personagem.
É a busca evasiva por um amor ideal o que ele
simboliza. O filme conflui para um retiro radical de
Gertrud, uma vez fracassado seu projeto emocional grandioso
porém irrealizável. Na cena em que Gertrud
olha para o quadro atrás de si e reconhece exatamente
a cena de um sonho que teve, o filme trai suas palavras,
sua defesa do livre-arbítrio em oposição
ao fatalismo de que seu pai fora um árduo defensor.
A câmera faz um recuo ameaçador e enquadra
em maior ângulo a imagem da mulher nua sendo devorada
por lobos. A cena é análoga àquela
do início, mas agora se trata de um outro tipo
de espelho, mais adequado à figuração
evocativa do sonho. A revelação, contudo,
é a mesma.
Num flash-back iluminado por um branco alusivo e obsedante,
Gertrud encontra junto ao desenho de seu perfil, feito
por um amante do passado, as palavras que a devastam:
"o amor de uma mulher e o trabalho de um homem
são inimigos mortais". Entre o jovem pianista
com que vive uma relação frívola
e passageira, o marido de quem não gosta mais
e o ex-amante que não corresponde a seus anseios,
um mosaico incompleto se desenha sobre o coração
de Gertrud. Ela está em contato com o mundo através
de toda a superfície de seu ser, mas ainda assim
o experimentando com uma grande parcela de desafecção.
Ela diz coisas como: "Não há felicidade
no amor", ou "Meu coração envelheceu".
A forma narrativa busca um certo grau de desligamento
físico na descrição de como ela
se porta e se desloca no mundo. O olhar lasso de Gertrud
é o signo mais forte e pregnante do filme, talvez
seu único fato incontestável, sua única
evidência verificável. Mas é um
signo sem significação. A beleza de Gertrud
– como de praxe na obra de Dreyer – é de uma
tal ordem que não se descreve. À semelhança
de A Palavra, o filme realiza uma condensação
de diferentes níveis de entendimento do mundo.
Mesmo o místico e o obscuro se sucedem na ordem
natural das coisas. Dreyer invoca uma permutabilidade
com o mundo, e uma presença nele, muito anterior
à inteligência.
Segundo uma inscrição original e inesperada,
os corpos do filme parecem representações
espelhadas na antiga arte egípcia. Os movimentos
das pessoas não dispensam uma organicidade, mas
são também assustadoramente mecânicos.
As partes da figura humana são dispostas de tal
forma que se apresentam ou em projeção
totalmente frontal, ou em puro perfil. Vale lembrar
que a intenção artística egípcia
era dirigida não à variável, mas
à constante, não à simbolização
do presente vital, mas à realização
da eternidade intemporal (por isso, ao contrário
dos gregos, reproduziam a forma e não a função
orgânica do ser humano). Com essa inusitada aproximação,
Dreyer põe às claras sua expectativa em
relação às vidas mostradas no filme.
Trata-se menos de simular uma vida do que de criar substrato
material para outra vida: rosto semi-mumificado, Gertrud
está praticamente à espera de reanimação,
ou ao menos de uma recarga afetiva.
É só a uma personagem que dizem respeito
a mise en scène e o drama do filme; os
demais corpos são agentes de reforço,
estão ali para construir ao lado de Gertrud seu
sentimento de "a sós com o universo".
Os personagens não se olham enquanto dialogam
não por uma exigência da sociedade em que
vivem, mas por uma premissa dramatúrgica colada
à natureza da protagonista, que só enxerga
um alhures, um mundo formado por tudo que não
está ao seu alcance. Gertrud é
portanto uma dramaturgia do inalcançável,
ou daquilo que está ainda – e eternamente – por
suceder. Já na velhice, visitada pelo amigo de
longa data, Gertrud diz que vive como uma eremita, esquecida
por todos, mas que precisa da solidão e da liberdade.
Ao amor incompleto, a irredutível Gertrud prefere
a reclusão. Tudo ou nada: o coração
não trabalha com meias-medidas. Qual será
seu mistério? Na seqüência final,
Gertrud concorda com seu amigo e afirma: "O amor
é tudo". Mas a solidão é o
absoluto, o que prevalece.
Luiz Carlos Oliveira Jr.
(DVD Magnus Opus)
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