Como
e o que escrever sobre Carl Theodor Dreyer (1889-1968),
em 2006, sem cair em lugares comuns e já revisitados?
É rica a lenda sobre o método Dreyer,
composta de histórias sobre como impunha sacrifícios
aos atores para prepará-los para o estado de
espírito de seus personagens e por relatos sobre
sua indiferença em relação às
necessidades de produção, sintomáticas
de sua convicção de que, inclusive no
cinema, a arte tem seu próprio tempo de criação
e exigências incompatíveis com outro tipo
de dinâmica extra-artística. Sabe-se que,
para Dreyer, o artista é iluminado. A arte, portanto,
é sagrada. Mas seria possível obter uma
síntese de suas características estilísticas
e de suas eleições temáticas, distribuídas
por uma filmografia interrompida por elipses de inatividade
no longa-metragem? Essas elipses foram causadas pelo
conflito estabelecido entre seu perfeccionismo e o pragmatismo
dos administradores das finanças, para os quais
o diretor tornou-se um nome maldito após O
Martírio de Joana d´Arc (1928) e O Vampiro
(1932). A intransigência sem concessões
de Dreyer, alimentada por sua visão da arte como
revelação da verdade do homem e da vida
por meio da dramatização, determinou parcialmente
seu percurso. A soma de suas fases revela-se tão
coesa quanto heterodoxa. Por conta das interrupções
entre 1936 e 1943 (entre O Vampiro e Dias
de Ira) e entre 1943 e 1956 (entre Dias de Ira
e Ordet, período atenuado pela realização
de curtas), Dreyer não teve um caminho criativo
contínuo, mas modelado por razões da economia.
Essas rupturas e retomadas nos amplifica uma pergunta:
Existe um único Dreyer? Ou vários? Esses
vários não são esse único
Dreyer? Sua marca individual não está
em sua maneira de lidar com o percurso oscilante e de
reagir às essas oscilações sem
deixar de levar em conta suas próprias mudanças
de foco?
A caixa comercializada pela Magnus Opus, que inclui
seis títulos e um documentário sobre o
diretor (em disco próprio), que vem a somar com
a cópia de O Vampiro (da Continental),
atravessa pelo menos três fases: a construção
de uma dinâmica narrativa mais ou menos convencional
nos filmes silenciosos da primeira metade dos anos 20
(A Quarta Aliança da Senhora Margarida
e Mikael), a aproximação com o
formalismo vanguardista entre a segunda metade dos anos
20 e meados dos anos 30 (O Martírio de Joana
d’Arc e O Vampiro), a narratividade ainda
com encenação e dinâmica de impacto
nos 40 (Dias de Ira) e a assinatura atemporal
e aparentemente ultrapassada nos anos 50 e 60. Seus
dois últimos filmes, Ordet (1956) e Gertrud
(1964), são obras suspensas, desconectadas de
seu tempo, ao menos diretamente, quase ETs de tão
singulares e pessoais (no estilo). Nos extras de Ordet,
há um texto de André Bazin sobre o filme,
publicado no France Observateur, em 1956, comentando
as reações no Festival de Veneza. Algumas
foram ríspidas diante da aparência ultrapassada
da obra. O crítico reage aos riscos de reducionismo
de uma perspectiva evolucionista, defendendo uma visão
para Ordet que supere os limites da novidade
estética. Onde estariam as marcas do diretor
que poderiam costurar esse tecido obtido por blocos
nem sempre agrupáveis?
Essas tantas perguntas são suscitadas pela ausência
de um projeto de cinema pré-filmes. Entenda-se
projeto, aqui, como um mapa. Dreyer não demonstrou
ter convicções, desde os anos 20, sobre
as características de sua personalização.
Não estabeleceu proibições ou metas,
de modo a ter assinatura reconhecida, destacando-se
de outros realizadores. Embora seus universos sejam
muito pessoais, com a participação dele
na concepção de cada minúcia, cada
universo reinvindicava um tipo de aproximação
com a matéria fílmica. A câmera
estupradora de rostos de Joana d’Arc, por exemplo,
nada tem a ver com a câmera discreta de Ordet
e Gertrud. Existe um tipo de olhar em comum para
os dramas apresentados, mas a maneira de apresentá-los
é bastante distinta. Algumas questões
são recorrentes, sobretudo questões de
conteúdo, mas, em linhas gerais, Dreyer adaptou
o estilo às suas necessidades, e suas necessidades
variaram de filme para filme, mesmo sendo mais próximas
entre determinados filmes específicos.
A Quarta Aliança da Senhora Margarida insere
já em 1920 uma situação mais ou
menos recorrente na filmografia de Dreyer. Temos lá
um casal, um obstáculo para a satisfação
do desejo de um pelo outro (no caso, uma velha), a crueldade
amoral produzida pela insatisfação romântico-sexual
dos dois e uma conciliação ao final, na
qual, de qualquer forma, é dada à velha
a necessidade de bater em retirada, cumprindo um ciclo
de substituições dos habitantes do planeta.
Esse esquema é alterado de leve em Mikael,
agora com um pintor celebrado que está instalado
no meio do caminho de seu pupilo. Esse jovem passa a
enganá-lo enquanto ensaia sua emancipação
com a modelo de seu mestre e protetor. O ponto de vista
principal, antes o dos jovens (em Senhora Margarida),
é o do personagem mais velho, que, mesmo traído,
não abre mão do amor paternal (não
sem ambigüidade sexual).
Também há amores ameaçados de aborto
pelos códigos sociais e culturais em Dias
de Ira, Ordet e Gertrud. O poeta homenageado
em uma cena desse último, ex-amante da protagonista
cujo nome está no título, faz uma ode
à luta pelo amor acima de quaisquer barreiras.
A tradição asfixiante e as convenções
religiosas, opressoras sobretudo em O Martírio
de Joana d’Arc, são o motor das repressões
ao desejo. Não é sinal de loucura, mas
de paixão e de desejo, que Jeanne, possuída
por Falconetti (e não o contrário), carrega
em seu olhar delirante. Ela enxerga e ouve além
do permitido pelos guardiões das leis da vida
e do mundo espiritual (vida e espírito separados
pelas autoridades e fundidos por Jeanne). Jeanne é,
acima de tudo, uma rebelde. Ela não baixa cabeça
em nome de sua convicção.
É curioso ouvir tanto o diretor como muitos de
seus admiradores valorizarem exclusivamente a capacidade
dreyeriana de tornar palpáveis os tormentos humanos
quando essa aparente abstração é
menos provocada por algum mal da alma inerente ao humano
(como em Bergman) e mais por forças concretas
da estrutura social. Dreyer tem uma notável sensibilidade
para enxergar em seus mundos miúdos, fechados
em casa ou em pequenas comunidades (no campo ou na cidade,
na gente simples ou na elite), traços de uma
ordem produtora desses micro-universos. Não se
trata de ler a sociedade por meio de situações
e personagens simbólicos, mas de jogar algo dessa
sociedade nas relações cotidianas. Exceção
feita a O Vampiro, que se fixa mais claramente
nas leis do fantástico, todos os outros, inclusive
O Martírio de Joana d’Arc e Ordet
(ambos na fronteira com o místico), têm
o peso da sociedade nas situações (às
vezes um rastro).
Por cotidiano não se pode entender, em Dreyer,
trivialidades ou situações comuns, rarefeitas
em sua dramaticidade. Dreyer é um cineasta empenhado
em se manter na alta voltagem quase permanentemente,
mesmo quando essa voltagem gerada pela gravidade dos
acontecimentos e de seus efeitos é representada
por tom gélido na mise en scéne
e nas atuações. Gertrud é
o melhor exemplo desse paradoxo, pois, embora fale de
paixão quase sempre, a protagonista comporta-se
como catatônica. Impera a idéia de confluência
de monólogos e não de diálogos.
Quase ninguém olho no olho do outro enquanto
se conversa. Radicaliza-se a prática do plano-seqüência
extenso, adotada em Ordet, acentuando-se o asfixiamento
do quadro, dos personagens e da própria idéia
de vida ali visualizada.
Dreyer filma cada momento como se fosse único
em sua dor, exceção feita apenas ao A
Quarta Aliança da Senhora Margarida, com
seus episódios anedóticos e arejadores
do drama. Nos demais, há sempre uma rasteira,
quando não várias, a ser dada nos personagens,
seja por forças do acaso e da natureza, seja
por obra da sociedade, ou ao menos por indivíduos
regidos por valores de comunidade. Seria Dreyer um sádico?
Considerado uma referência para Ingmar Bergman
(Gritos e Sussuros é devedor de Ordet
e Gertrud) e uma influência para Lars Von
Trier ( assumida pelo próprio em Ondas do
Destino) Dreyer é mais próximo de
suas criações, mais solidário com
crises e aflições de seus seres ficcionais.
Não tem a crueldade orgulhosa de si mesma como
em algumas obras de Bergman, tampouco o sarcasmo e o
cinismo de Von Trier. Sua crueldade é mais afetuosa.
Quando um de seus personagens sobrevive às intempéries,
demonstra-se a capacidade de resistência à
vida, sempre vista como território do conflito
e da ruptura, do sofrimento, enfim, revelando uma aproximação
do mundo do cineasta com o pensamento de Kierkegaard,
aproximação essa já feita por André
Bazin.
Talvez haja uma vocação nórdica-escandinava
para extrair pus da sensibilidade dos personagens e
dos espectadores, como já intuíam os leitores
de Ibsen e Strindberg. As narrativas audiovisuais deram
continuidade a essa tradição e, se fôssemos
reduzir as características dos filmes dessa região
e desse solo cultural, poderíamos falar em um
cinema do desespero, que se empenha em mostrar como
reage o ser humano ao ser submetido a acontecimentos
esmagadores, que o levem a duvidar até de sua
crença no divino.
Dreyer assume essa tradição local sem
deixar de fazer dela uma questão da humanidade
e não apenas dos nórdicos e escandinavos.
A singularidade do cineasta e de seus filmes em comparação
uns com outros está na forma de representação,
de dar tempo aos planos, de encadear os fragmentos e
de reagir ao material com opções às
vezes em conexão e outras em aparente dissolução.
As mudanças de registro do diretor não
podem ser encaradas com lamento, como saldos negativos
de interrupção de um percurso, mas como
circunstâncias extra-estéticas (ou estéticas
sim se, na razão de tudo, está a não
concessão), que, ao menos parcialmente, ampliaram
as transformações entre os filmes. Em
cada um deles, ou em cada uma de suas fases, a marca
de Dreyer, diferentes marcas para o mesmo olhar, salta
aos olhos. E também os agride, os desafia e os
estimula.
Cléber Eduardo
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