O
caminho cumprido por Emanuele Bardone, o protagonista
de De Crápula a Herói, é
muito mais complexo que o simplismo dos dois extremos
presentes no título brasileiro do filme. Sua
construção parece justamente atacar a
idéia de que possam existir tipos com características
tão estritas. Impossível não ver
aqui também um caminho cumprido por Rossellini,
de Roma Cidade Aberta para cá. Se quinze
anos antes a guerra figurava como eliminadora das ambigüidades,
ela agora passa a ser a própria fonte delas.
Numa oposição entre a população
oprimida por uma ocupação e a força
militar ocupante e opressora, não restava muita
dúvida de que lado ficar. Em De Crápula
a Herói os lados continuam os mesmos, mas
Bardone é a figura que transita entre as partes.
Nem tão identificado ao sofrimento do povo italiano
dominado, nem muito menos entusiasta do poder alemão,
ele vai se moldando a partir da contingência,
e não se furta a usar o artifício que
for preciso para se sair melhor da situação
em que se meteu. Um personagem, a princípio,
quase anti-rosselliniano.
Numa carta escrita em 1956 à revista italiana
Cinema Nuovo, intitulada "Defesa de Rossellini", André
Bazin terminava seu argumento de que Viagem à
Itália mantinha e até mesmo ampliava
os conceitos neo-realistas iniciais dizendo que os filmes
do diretor italiano (este último especialmente)
faziam pensar mais num esboço que num projeto
completo, mais no traço do que na pintura. Essa
opção pelo traço, se conduz o observador
a um caminho já indicado, abre também
uma série de espaços onde o olhar pode
investir livremente, espaços cuja indefinição
proposital provoca uma imediata reação
no espectador, que passa a ter um papel ativo na construção
dos significados daquilo que se está apresentando.
Os dilemas do mundo de Rossellini são sempre
morais, e isso a princípio atentaria contra esse
mandamento da participação do espectador.
Dilemas morais, mas nunca moralistas. Se não
era difícil imaginar o que o diretor pensava
das trajetórias dos personagens de seus primeiros
filmes, o que significavam para ele o sacrifício
final do padre de Roma Cidade Aberta e do menino
em Alemanha Ano Zero, e se ainda assim havia
nesses filmes um lugar para outras interpretações,
a partir de Stromboli essa fronteira começa
a se apagar. Não que os espaços do espectador
comecem a ser fechados, pelo contrário. É
a própria posição de Rossellini
que passa a se situar numa zona indefinida. O que dizer
da escalada real e metafórica de um vulcão
realizada pela protagonista de Stromboli ou do
acerto milagroso do casal de Viagem à Itália?
A ordem dos problemas continua presa à conduta
e ao comportamento dos personagens, mas o que indica
o caminho escolhido por cada um há muito fugiu
do simples "certo" ou "errado", "digno" ou "indigno".
Rossellini começa a construir seus personagens
para dentro, e sua extensão vai até um
limite que nem o próprio diretor se arrisca a
estabelecer. O máximo dessa postura está
presente em De Crápula a Herói.
Essa interiorização se expressa justamente
a partir de índices exteriores ao protagonista.
Embora se tratem, a rigor, do mesmo ambiente geográfico
e social, há uma diferença abissal entre
a Resistência de Paisà e Roma
e a Resistência na qual Bardone está inserido.
Antes, por exemplo, o círculo nazista era identificado
por uma aura maligna inequívoca, traduzida na
escuridão constante dos ambientes, nos figurinos
de uma austeridade over, nas caras-e-bocas dos soldados
da Gestapo, chegando até a aproximações
um tanto primárias, como a identificação
da lascívia enquanto sintoma da maldade reinante.
Em De Crápula a Herói isso quase
se inverte. Aos oficiais alemães corresponde
uma certa integridade, seus escritórios são
limpos e bem iluminados, sua conduta é sempre
clara. Estão no personagem italiano as características
negativas: suas únicas relações
afetivas são com duas prostitutas, a quem ele
extorque sem pestanejar, os quartos onde vive essas
relações são sempre escuros, são
suas próprias expressões faciais que dão
a entender que há algo de podre por baixo daquela
aparência.
Jogador compulsivo que capitaliza em cima da tragédia
de pessoas que têm parentes presos ou desaparecidos
nas entranhas da ocupação, Bardone não
é um crápula simplesmente. É acima
de tudo um grande ator, capaz de passar por qualquer
papel que seja necessário – daí a bem-vinda
canastrice da atuação de Vittorio De Sica,
capaz de sublinhar o quão artificiais são
suas transformações para aqueles que a
acompanham por completo (ele próprio, que as
vive, e nós, espectadores privilegiados por vê-lo
em todos seus momentos). Esse grande ator aplica seus
golpes naqueles que desconhecem essa capacidade de parecer
ser o que não se é. Um ator que leva vantagem
sobre os não-atores: é como se Bardone
fosse a expressão de uma consciência que
Rossellini e os neo-realistas vieram suplantar. O golpista
ignora a realidade a sua volta, não enxerga aquilo
que os filmes feitos por essa geração
se esforçavam em mostrar, a nova face de um povo
depois de uma guerra, da dominação estrangeira,
e diante da iminente libertação. Não
há conflito acontecendo em seu mundo, há
apenas uma nova possibilidade de lucro. Os sentimentos
da guerra real só tomam Bardone quando tomam
também o próprio filme. Saindo dos ambientes
internos, das casernas, dos restaurantes, Bardone vai
às ruas, e lá se depara com a destruição,
os bombardeios, escombros, cadáveres. Rossellini
opõe a limpeza dos planos iniciais à sujeira
ruidosa de trechos documentais da guerra, e a partir
daí torna o redemoinho final de seu protagonista
inevitável.
Bardone será preso por suas mazelas e topará
um acordo com o comando alemão para se infiltrar
numa cadeia de presos políticos e, disfarçado
de um general da Resistência (o do título
original do filme), delatar os cabeças da organização,
assim se livrando do cárcere. Se sua saída
às ruas antes já lhe dera o primeiro impacto,
o aprisionamento será ainda mais poderoso. A
tortura, a morte, a privação física
e moral, fariam de qualquer crápula um candidato
a herói. Mas este é, acima de tudo, um
grande ator. E este é, acima de tudo, o filme
mais lacunar de Rossellini. Pode-se comprar a idéia
do título, mas ela soa menor depois de todo esse
trajeto. Redenção, ou também a
encarnação profunda e fatal de mais um
de seus papéis. Um personagem indefensável,
talvez, num filme que, a cada revisão, parece
prescindir de qualquer defesa.
Rodrigo de Oliveira
(DVD Versátil)
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