CARTA DE UMA DESCONHECIDA
Max Ophüls, Letter from an Unknown Woman, EUA, 1948

1. "Quando ler esta carta, eu já estarei morta", anuncia Lisa a Stefan. Anuncia ou ameaça? Mais do que elemento narrativo que permite a Max Ophüls contar, em flash-back, a trágica paixão da abnegada heroína pelo mulherengo pianista, a carta estabelece a relação de poder que está no cerne do filme: Lisa como a onipotente e onipresente narradora e Stefan enquanto mero objeto de fetiche, prisioneiro dentro da fantasia romântica que ela cria para obter a compaixão do espectador. Em Carta de Uma Desconhecida, é o ponto de vista da protagonista que impera, única e exclusivamente, influenciando e distorcendo todos os acontecimentos mostrados na tela. Como afirma o mestre de cerimônias do circo acerca de Lola Montès (comentário que também se aplica à perfeição em Lisa), trata-se de "um monstro sanguinário com olhos de anjo".

2 e 3. A assimetria verificada no relacionamento entre Lisa e Stefan se manifesta através das formas opostas, de acordo com cada personagem, com que a câmera de Ophüls se movimenta e revela os ambientes. Se, ao mostrar Lisa, a câmera respeita os limites físicos dos espaços (detendo-se, por exemplo, sempre no exterior do apartamento do músico, onde a heroína somente consegue entrar escondida), ao apresentar Stefan, ao contrário, ela se move com desenvoltura, solta, atravessando paredes como se estas não existissem. É fundamental à narradora Lisa, em busca do amor do público, que a personagem Lisa tenha extrema dificuldade para se aproximar do objeto amado – no que resulta as constantes aparições da personagem de Joan Fontaine parada junto a portas e a janelas, observando –, e que Stefan não enxergue a mulher por ele apaixonada, embora em aparência seja livre e senhor de si. Enquanto, para Lisa, Stefan é único, para Stefan Lisa é apenas mais uma: ela se torna vítima e ele, carrasco, invertendo-se os verdadeiros papéis.

4 e 5. Antes de deixar Viena com a mãe e o padrasto, Lisa retorna ao apartamento de Stefan e o espera, ao lado da porta. Quando chega, acompanhado por uma mulher, a câmera se move para representar o ponto de vista de Lisa, que presencia o amado subir as escadas. Mais tarde, o mesmo travelling se repete, mas agora é Lisa que está junto de Stefan. A pergunta: quem observa o casal que se dirige para o apartamento? A resposta: a Lisa narradora, a Lisa que escreveu a carta no leito de morte e que conta sua ficção romântica ao espectador. Max Ophüls trabalha, em seus filmes, com trocas radicais entre o sujeito da enunciação e o sujeito do enunciado: o mestre de cerimônias de Lola Montès, que também integra o passado da mulher fatal; o senhor do jogo em Conflitos de Amor, que se desdobra a seu bel prazer em vários papéis ao longo da narrativa (e que alega ser "a encarnação de vossos desejos, de vossos desejos de tudo conhecer"); Guy de Maupassant em O Prazer, que se apossa do corpo de um dos personagens no conto "A Modelo". Em Carta de Uma Desconhecida, a câmera que se torce no alto da escada revela o olhar fantasmagórico de Lisa, ao mesmo tempo ausente e presente, que vigia a si mesma depois de morta.

6. Lisa prefere o inverno à primavera (porque no inverno é possível imaginar como será a primavera), embora ela atribua o pensamento a Stefan. Para que viver, se é tão belo apenas sonhar? Lisa se sacrifica em prol da fantasia que alimenta, destrói todos que realmente a amam – o marido e o filho – e aprisiona o músico em seus devaneios sentimentais. Segundo o personagem principal de Memórias do Subsolo, de Dostoievski, o amor significa tirania e dominação: a heroína ultra-romântica de Carta de Uma Desconhecida tudo sabe a respeito do objeto pelo qual se apaixona, tanto que o próprio Stefan não se cansa de chamá-la de feiticeira, a qual estava escondida dentro de seu piano e que o entende por completo. Ele, porém, vítima da indolência que o caracteriza, não terá se sujeitado voluntariamente ao controle obsessivo que exerce a protagonista?

7 e 8. No ápice do primeiro encontro entre Lisa e Stefan, o casal está no parque de diversões, dentro do trem de brinquedo que simula as mais diversas paisagens européias. Cenários fictícios, clima onírico, emoções reais: a paixão de Lisa é retribuída finalmente, e o tão ansiado beijo acontece – o qual, no entanto, a narradora omite de propósito ao público, através do plano em que não se vê nada além do exterior do vagão com a porta fechada. Mais tarde, não há lugar para Lisa no trem verdadeiro que leva Stefan para o concerto em Milão: já grávida, ela pode somente se despedir da plataforma e esperar o retorno do amado que, contudo, não ocorrerá. Em Carta de Uma Desconhecida, enquanto os sonhos os aproximam, a realidade os afasta.

9. Lisa e Stefan se reencontram na ópera. Outrora menino prodígio, o músico desperdiçou o talento e a carreira, sem jamais ter encontrado o som único que o tornaria especial e diferente dos outros. Lisa, ainda apaixonada, decide salvá-lo (demonstrando novamente sua própria soberba), e abandona a vida confortável que construiu ao longo dos anos com o marido. De volta ao mesmo apartamento do início, ele não se recorda – Lisa continua apenas mais uma amante, entre as várias que o pianista fracassado colecionou. Ela, no entanto, sempre soube que Stefan não a reconheceria: afinal, a heroína não era capaz de ler os pensamentos do amado, a ponto de afirmar, na estação de trem, que ele se conhecia tão pouco ao garantir que retornaria? Lisa poderia ter confessado seu amor, ter revelado a existência do filho, mas não o faz, porque, para obter a compaixão do público que a assiste, precisa mais e mais alimentar o sofrimento romântico em que está mergulhada. A personagem de Joan Fontaine combina masoquismo com exibicionismo, pois não se trata do espectador que, voyeur, observa o que não sabe ser visto, e sim da protagonista que a todo custo chama atenção para si mesma, revelando e ocultando de acordo com a manipulação emocional tencionada.

10. Stefan se dirige para o duelo contra o marido traído, enquanto Lisa o vê, translúcida, atrás da porta. Carta de Uma Desconhecida é um filme de fantasmas, narrado por um cadáver: o músico que vagou sem sentido durante a vida inteira, a heroína que perseguiu o amor que lhe foi retribuído apenas por breves momentos. A vitória final, entretanto, cabe a Lisa, pois Stefan, agora, não poderá mais esquecê-la. A morte como ato derradeiro de controle e de poder sobre quem se ama.


Paulo Ricardo de Almeida

(DVD Versátil)

 

 




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