1. "Quando ler esta carta, eu já estarei
morta", anuncia Lisa a Stefan. Anuncia ou ameaça?
Mais do que elemento narrativo que permite a Max Ophüls
contar, em flash-back, a trágica paixão
da abnegada heroína pelo mulherengo pianista,
a carta estabelece a relação de poder
que está no cerne do filme: Lisa como a onipotente
e onipresente narradora e Stefan enquanto mero objeto
de fetiche, prisioneiro dentro da fantasia romântica
que ela cria para obter a compaixão do espectador.
Em Carta de Uma Desconhecida, é o ponto
de vista da protagonista que impera, única e
exclusivamente, influenciando e distorcendo todos os
acontecimentos mostrados na tela. Como afirma o mestre
de cerimônias do circo acerca de Lola Montès
(comentário que também se aplica à
perfeição em Lisa), trata-se de "um
monstro sanguinário com olhos de anjo".
2 e 3. A assimetria verificada no relacionamento entre
Lisa e Stefan se manifesta através das formas
opostas, de acordo com cada personagem, com que a câmera
de Ophüls se movimenta e revela os ambientes. Se,
ao mostrar Lisa, a câmera respeita os limites
físicos dos espaços (detendo-se, por exemplo,
sempre no exterior do apartamento do músico,
onde a heroína somente consegue entrar escondida),
ao apresentar Stefan, ao contrário, ela se move
com desenvoltura, solta, atravessando paredes como se
estas não existissem. É fundamental à
narradora Lisa, em busca do amor do público,
que a personagem Lisa tenha extrema dificuldade para
se aproximar do objeto amado – no que resulta as constantes
aparições da personagem de Joan Fontaine
parada junto a portas e a janelas, observando –, e que
Stefan não enxergue a mulher por ele apaixonada,
embora em aparência seja livre e senhor de si.
Enquanto, para Lisa, Stefan é único, para
Stefan Lisa é apenas mais uma: ela se torna vítima
e ele, carrasco, invertendo-se os verdadeiros papéis.
4 e 5. Antes de deixar Viena com a mãe e o padrasto,
Lisa retorna ao apartamento de Stefan e o espera, ao
lado da porta. Quando chega, acompanhado por uma mulher,
a câmera se move para representar o ponto de vista
de Lisa, que presencia o amado subir as escadas. Mais
tarde, o mesmo travelling se repete, mas agora é
Lisa que está junto de Stefan. A pergunta: quem
observa o casal que se dirige para o apartamento? A
resposta: a Lisa narradora, a Lisa que escreveu a carta
no leito de morte e que conta sua ficção
romântica ao espectador. Max Ophüls trabalha,
em seus filmes, com trocas radicais entre o sujeito
da enunciação e o sujeito do enunciado:
o mestre de cerimônias de Lola Montès,
que também integra o passado da mulher fatal;
o senhor do jogo em Conflitos de Amor, que se
desdobra a seu bel prazer em vários papéis
ao longo da narrativa (e que alega ser "a encarnação
de vossos desejos, de vossos desejos de tudo conhecer");
Guy de Maupassant em O Prazer, que se apossa
do corpo de um dos personagens no conto "A Modelo".
Em Carta de Uma Desconhecida, a câmera
que se torce no alto da escada revela o olhar fantasmagórico
de Lisa, ao mesmo tempo ausente e presente, que vigia
a si mesma depois de morta.
6. Lisa prefere o inverno à primavera (porque
no inverno é possível imaginar como será
a primavera), embora ela atribua o pensamento a Stefan.
Para que viver, se é tão belo apenas sonhar?
Lisa se sacrifica em prol da fantasia que alimenta,
destrói todos que realmente a amam – o marido
e o filho – e aprisiona o músico em seus devaneios
sentimentais. Segundo o personagem principal de Memórias
do Subsolo, de Dostoievski, o amor significa tirania
e dominação: a heroína ultra-romântica
de Carta de Uma Desconhecida tudo sabe a respeito
do objeto pelo qual se apaixona, tanto que o próprio
Stefan não se cansa de chamá-la de feiticeira,
a qual estava escondida dentro de seu piano e que o
entende por completo. Ele, porém, vítima
da indolência que o caracteriza, não terá
se sujeitado voluntariamente ao controle obsessivo que
exerce a protagonista?
7 e 8. No ápice do primeiro encontro entre Lisa
e Stefan, o casal está no parque de diversões,
dentro do trem de brinquedo que simula as mais diversas
paisagens européias. Cenários fictícios,
clima onírico, emoções reais: a
paixão de Lisa é retribuída finalmente,
e o tão ansiado beijo acontece – o qual, no entanto,
a narradora omite de propósito ao público,
através do plano em que não se vê
nada além do exterior do vagão com a porta
fechada. Mais tarde, não há lugar para
Lisa no trem verdadeiro que leva Stefan para o concerto
em Milão: já grávida, ela pode
somente se despedir da plataforma e esperar o retorno
do amado que, contudo, não ocorrerá. Em
Carta de Uma Desconhecida, enquanto os sonhos
os aproximam, a realidade os afasta.
9. Lisa e Stefan se reencontram na ópera. Outrora
menino prodígio, o músico desperdiçou
o talento e a carreira, sem jamais ter encontrado o
som único que o tornaria especial e diferente
dos outros. Lisa, ainda apaixonada, decide salvá-lo
(demonstrando novamente sua própria soberba),
e abandona a vida confortável que construiu ao
longo dos anos com o marido. De volta ao mesmo apartamento
do início, ele não se recorda – Lisa continua
apenas mais uma amante, entre as várias que o
pianista fracassado colecionou. Ela, no entanto, sempre
soube que Stefan não a reconheceria: afinal,
a heroína não era capaz de ler os pensamentos
do amado, a ponto de afirmar, na estação
de trem, que ele se conhecia tão pouco ao garantir
que retornaria? Lisa poderia ter confessado seu amor,
ter revelado a existência do filho, mas não
o faz, porque, para obter a compaixão do público
que a assiste, precisa mais e mais alimentar o sofrimento
romântico em que está mergulhada. A personagem
de Joan Fontaine combina masoquismo com exibicionismo,
pois não se trata do espectador que, voyeur,
observa o que não sabe ser visto, e sim da protagonista
que a todo custo chama atenção para si
mesma, revelando e ocultando de acordo com a manipulação
emocional tencionada.
10. Stefan se dirige para o duelo contra o marido traído,
enquanto Lisa o vê, translúcida, atrás
da porta. Carta de Uma Desconhecida é
um filme de fantasmas, narrado por um cadáver:
o músico que vagou sem sentido durante a vida
inteira, a heroína que perseguiu o amor que lhe
foi retribuído apenas por breves momentos. A
vitória final, entretanto, cabe a Lisa, pois
Stefan, agora, não poderá mais esquecê-la.
A morte como ato derradeiro de controle e de poder sobre
quem se ama.
Paulo Ricardo de Almeida
(DVD Versátil)
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