Ruy
Gardnier: Primeiro de tudo, acredito que se estamos
hoje nos questionando sobre cinema contemporâneo, seus
rumos, seu estado de coisas, é porque em algumas áreas
ele é por demais conhecido, bastante caracterizado e
por vezes até exaurido, estagnado em seus signos. De
outro lado, há um cinema que, alinhado ou não a certos
perfis de gênero, de mercado, aponta para novas propostas
para o cinema. O que é mais instigante é que o cinema
parece passar hoje por uma espécie de “nova onda transnacional”
que parece única desde meados dos anos 60... É possível,
a partir de gente como Gus Van Sant, Claire Denis, Hou
Hsiao-hsien, Wong Kar-wai, Shinji Aoyama, Vincente Gallo
– cinemas totalmente diferentes –, falar de uma cinematografia
que aparece com traços semelhantes, ou ao menos com
uma mesma sensibilidade. E que isso não era tão forte
desde o momento em que começamos a ver ao redor do mundo
nos anos 60, com Godard, Resnais, Pasolini, Glauber
Rocha, Oshima, cinemas muito diferentes mas com uma
mesma agressividade em relação aos valores do mundo
e aos valores do cinema (e eles não acreditavam nessa
separação). Eu acho que, de certa forma, o que aparece
com mais força no cinema de hoje é essa marca de geração
(que na verdade engloba várias gerações), e eu acho
curioso que seja uma formalização que se dá, sobretudo,
no cinema comercial, narrativo, de longa metragem (no
sentido feature film), muito embora traga questionamentos
que não vieram do cinema narrativo. É um cinema que
confia mais nas atmosferas, mais no clima e no ritmo,
em suma na aventura, do que na minúcia do roteiro, na
coesão da estrutura. E isso lembra muito o que se dá
hoje no rock, com a volta da música improvisada (até
no metal!!), a relativa desimportância da composição
e o elogio das sonoridades, dos novos timbres, de novos
mantras. Eu diria que estaríamos diante de um “drone
cinema”. Não é a única coisa: há na comédia americana
um novo aquecimento que, curiosamente, também busca
o desequilibrado e o improvisado, a força do ator e
não a perfeição do enquadramento ou da história. Até
no Arnaud Desplechin, que é fortemente narrativo, há
um elogio do desregrado e do transitório que é o oposto
do que o cinema francês sempre foi. Oposto de Techiné,
Truffaut e tutti quanti.
Tatiana Monassa: Queria entender melhor a afirmação
de que essa formalização que você aponta se dá sobretudo
no cinema narrativo, comercial. Entendo quando você
fala do feature film, pois se tratam de obras
inseridas num “padrão internacional”, mas não sei se
concordo com a característica “narrativo”.
Filipe Furtado: Acho que o Ruy se refere ao longa-metragem
que está dentro dos padrões comerciais, em vez do curta
ou dos filmes de longuíssima duração, que é onde isto
costuma acontecer historicamente.
Paulo Ricardo de Almeida: Não há, como nos anos
60, Wahrol, ou Mekas...
R.G.: A coisa se dá num gueto do cinema narrativo,
que é o dos festivais. Mas geralmente os filmes com
esse nível de experimentação costumam trabalhar fora
do eixo “longa-metragem de ficção”, e esses filmes tentam
inserir esse tipo de sensibilidade, uma “estética do
fluxo”, como já apregoou o Stéphane Bouquet (apesar
de ser apenas uma das modalidades desse “drone cinema”
que eu vejo).
T.M.: Mas acho que o termo “narrativo” vai além
disso, evoca outra coisa. No caso dos cinemas novos
que você citou acima, se tratava do mesmo “nicho”, digamos
assim, e não do cinema experimental, com o qual guardam,
é claro, diversas relações.
R.G.: É narrativo no sentido de que esses filmes
te dão personagens, te dão uma intriga, te fazem acompanhar
alguma coisa que estamos acostumados a entender como
narrativa, e uma maneira típica de ver um filme. Naturalmente,
eles vão dinamitar essa estrutura, mas vão se aproveitar
dela primeiro: Mal dos Trópicos, Mulholland
Drive, Elefante com os filmes de high
school e os filmes de terror.
Luiz Carlos Oliveira Jr.: O que esses cineastas
contemporâneos citados têm também em comum, e eu acrescentaria
Sofia Coppola à lista, é que embora tenham derivado
de uma geração profundamente marcada pelo vídeo e pela
dinamitação das relações espaciais, eles praticam, cada
um a seu jeito, uma arte do espaço, dos corpos em sua
relação com o espaço.
P.R.A.: Sim, a relação do corpo com o espaço, o
estranhamento do corpo no espaço é muito presente. O
desajuste, a volta de um cinema em que se procura, em
que se desloca.
Estevão Garcia: O termo “cinema do corpo” já foi
cunhado há algum tempo e ele abarcava nomes do underground
americano, como o próprio Warhol, Mekas etc. E nomes
como Alain Robbe-Grillet, Varda. Eu queria saber qual
seria a principal diferença conceitual entre o cinema
dessas figuras e esses nomes citados do cinema contemporâneo.
T.M.: Eu acho que aqui não se trata propriamente
do “corpo” e como este se insere no espaço (físico,
social, político), mas do corpo como fisicalidade. E
esta fisicalidade está direcionada a tudo, não apenas
ao corpo como personificação do humano.
P.R.A: Mas o corpo em si é importante: como ele
apreende o espaço através dos sentidos, como não há
como se inserir no espaço a não ser através dos sentidos.
Guilherme Martins: Ninguém está “desimportando”
o corpo, muito pelo contrário.
E.G.: Mas isso de que você falou, Tatiana, também
se fazia no cinema desses autores que citei. Oshima,
por exemplo, como outro nome da geração dos anos 60.
T.M.: O entrecruzamento entre uma forte relação
corpos-espaços – e a sensorialidade que opera junto
a isso – e uma “narrativa”, é pra mim o grande quê deste
“movimento” atual.
R.G.: Verdade. Filmes como Shara, Café
Lumière, Mal dos Trópicos e Last Days
são muito mais experiências de tempo e de ritmo, de
atmosfera e de clima, e eles se apropriam das estruturas
narrativas como forma de entrada, mas o que impressiona
neles, o que nos choca pela extrema novidade, está em
outro lugar. Por isso a idéia de um drone.
F.F.: O Warhol em particular é uma influência central
pra maior parte dessa turma.
L.C.O.Jr.: Para o Gus Van Sant, por exemplo,
sem dúvida. Psicose 98 e Last Days sãos
os filmes mais warholianos desde Warhol.
R.G.: Eu acho o cinema do Apichatpong Weerasethakul
puro Warhol. É Warhol refazendo A Loja da Esquina.
L.C.O.Jr.: Apichatpong também é Warhol puro,
concordo. E com um adendo que faz toda a diferença e
garante a força do filme: não é um aprisionamento conceitual
nem uma “plastificação” do cinema o que vemos, mas antes
um arejamento formal que ele expande de um filme para
o outro.
R.G.: Esse arejamento é o que me impressiona mais.
Não estamos mais no terreno hard da especulação
árida estilo Michael Snow, Bruce Nauman, Bill Viola...
Estamos diante de pessoas que são familiarizadas com
esses artistas, mas nos propõem um lado soft,
freqüentemente associado ao diálogo com as estruturas
da narrativa, que criam um efeito bastante sensível.
Gus Van Sant falando sobre Kurt Cobain, Apichatpong
Weerasethakul dando aos filmes um feelgood de
comédia romântica...
F.F.: O Manny Farber costumava falar do Fassbinder
nesse tom, como um cineasta que dialogava com
Snow/Warhol e colocava isso num modelo narrativo.
L.C.O.Jr.: O drone coloca esse cinema em
proximidade extrema com a música de um Autechre ou de
um ambient mais calmo, mais para Brian Eno. Aliás,
e acho que nisso Gus Van Sant é o exemplo mais nítido
– porque pega temas barra-pesada como massacre juvenil
e morte de ídolo pop –, essa narrativa de atmosferas
e fluxos deu origem a um tipo de cinema em que a imagem
se torna um receptáculo calmo: à espera de um mito volátil,
ou de um acontecimento estremecedor, não importa, o
fato é que o filme manterá essa imagem em duração contínua
e plácida.
R.G.: O drone privilegia não a melodia,
mas as notas em sua sonoridade, duração, variação...
Da mesma forma que esse cinema não privilegia a narrativa,
mas o ritmo, a intensidade, a duração, a atmosfera.
T.M.: Por isso a freqüente sensação de
ausência de clímax. Ou, melhor dizendo, ausência
de estruturação narrativa (a tão arraigada e diluída
noção de “atos”).
G.M.: Bom, dá para dizer que existem atos em
Mal dos Trópicos.
T.M.: Essa utilização de “ato” estaria mais para
uma idéia de momento do que para a noção estruturante
de um ato. Vide 2046.
R.G.: A questão dos atos eu creio que é ilusória...
Você não precisa ordenar nada em atos para ter uma narrativa.
Da mesma forma, há precursores nesse cinema, há uma
imensa sensação do tempo passando em Cléo das 5 às
7 da Agnés Varda ou há um questionamento lógico
(cerebralmente interessante mas esteticamente quase
nulo) no Alain Robbe-Grillet. A questão é que a sensibilidade
é totalmente diferente.
G.M.: Concordo sobre ser ilusório. Só não acho
que necessariamente se passe por uma ausência de estrutura.
T.M.: Quando citei a palavra “atos”, não estava
querendo me referir a atos definidos. Nem afirmando
que não há estrutura nos exemplos contemporâneos (tanto
Elefante quanto Last Days e Dez são
frutos de um cuidadoso pensamento sobre uma “estrutura”).
O que quis dizer é que temos a sensação justamente de
ondulações contínuas e não de sobes e desces “organizados”,
digamos assim.
L.C.O.Jr: Sobre a inscrição do corpo na imagem
como ponto-chave da discussão em torno do cinema contemporâneo,
não custa lembrar que ela extrapola o cinema da Claire
Denis, do Karim Ainouz ou dos irmãos Dardenne: há também
em Sin City e Homem-Aranha um questionamento
constante – e mesmo central – sobre o novo lugar do
corpo na ficção. Porque se há uma nova imagem, há um
novo cenário para os corpos, e por conseguinte novas
mise en scènes, novo tratamento dos corpos no
espaço. Em Hou Hsiao-hsien existe uma tensão entre o
espaço que os personagens ocupam, o que eles podem ocupar
(potencialmente falando) e as fugas e transbordamentos
que a câmera constantemente faz, apontando para um mundo
sempre maior que um quadro de cinema. Mas o que dizer
de um plano daqueles em que o Homem-Aranha pula
de um prédio a outro, e o filme ao invés de fazer o
raccord, de passar ao plano seguinte para conseguir
dar conta do movimento na íntegra, prefere reabsorver
os excessos no interior de uma mesma imagem? Uma estética
da plenitude em que o extra-campo não precisa vir ao
socorro do campo quando a este quase falta espaço para
abrigar os movimentos, os saltos, as explosões enérgicas
do “novo corpo”.
R.G.: Associaria a esses dois filmes também a
cena da “infinita highway”de Matrix 2,
que possivelmente eu acho a melhor utilização dessa
“inserção dos corpos” numa nova imagem. Isso porque
o Stephen Chow não está exatamente interessado nos movimentos
dos corpos, e mais no das coisas: ele é quem melhor
lida com o CGI para “criar” um mundo, enquanto a maioria
ainda insiste em imitar ou embelezar. Quer dizer: isso
porque eu acabo de me lembrar de As Panteras: Detonando,
e creio que as imagens desse filme dão o diapasão de
uma nova sensibilidade da imagem e do corpo no cinema:
virtual, efêmero, onipresente, teleportável.
F.F.: Eu acho que o Rodriguez se aproxima do
McG ou do Chow, só que no Sin City isso acaba
preso numa camisa de força devido à devoção dele ao
material. Dá para dizer que o filme é o cruzamento dessa
tendência com outra que seria representada pelos filmes
recentes do Peter Jackson.
G.M.: Qual é a tendência dos filmes recentes
do Peter Jackson?
F.F.: É usar este maravilhamento do CGI pra reproduzir
algo que o cineasta como fanboy sente prazer
particular.
R.G.: O Rodriguez é intimamente um cineasta cinético,
como Tsui Hark e Chang Cheh (ao passo que figuras como
Leone e Tarantino seriam “cineastas do estático” no
trabalho da ação), e quando vai fazer Sin City,
ele se depara com o estático e emperra.
F.F.: Mas é bem isso mesmo: enquanto nos Spy
Kids ou nos filmes com El Mariachi ele trabalho
sempre numa expansão do mundo particular e dos corpos
particulares que ele filma, no Sin City eu acho
que a imagem é sempre regressiva. Porque ela precisa
ficar presa àquele prazer estético que ele tinha sentido
quando leu as HQs do Miller.
R.G.: Eu acho clara a diferença, mas ambos se inscrevem
numa mesma problemática do que fazer com o CGI. O Rodriguez
vai responder criando (ou adaptando, já que parte da
HQ) um mundo inédito no cinema. O Peter Jackson também
vai se basear nesse ineditismo (o ineditismo pela técnica,
pela possibilidade de intervir na imagem, algo que existe
desde Guerra nas Estrelas e evolui pelo upgrade
técnico), mas, ao contrário, ele vai achar que fazer
cinema é colocar 5 cachoeiras ali onde antes só podia
haver uma, fazer um pôr-do-sol deslumbrante a cada take,
criar multidões de exércitos, perseguições de animais
pré-históricos, etc. Naturalmente isso está mais na
trilha do anedótico, não do estético. É um desejo de
restauração, de re-consolidação de um mito. Por isso
eu acho que o Jackson se inscreve numa lógica do Lucas,
do Spielberg, de um neoclassicismo dos efeitos especiais,
ao passo que Chow, McG, e até Rodriguez, estão em busca
de outra coisa...
P.R.A.: Não acho que o Jackson seja a restauração
do mito. Também é, mas é mais, porque ele sabe que o
mito não pode ser restaurado e que o tipo de filme que
ele faz, com que ele sonha desde criança (e é um cinema
infantil), não é mais possível. Todos os filmes dele
ainda são como Fome Animal, o absurdo pelo absurdo,
o exagero pelo exagero, o flerte com o estéril, ou pisando
mesmo no estéril. Jackson para mim é o mais auto-destrutivo
cineasta recente, ele se sabota a cada instante, ele
se destrói a cada cena, ele faz piada consigo mesmo
o filme inteiro. King Kong é uma enorme gozação
com O Senhor dos Anéis, a auto-paródia do filme
baseado em Tolkien.
F.F.: Mas isso tudo também vale para Caçadores
da Arca Perdida.
P.R.A.: Que é um dos filmes que mais gosto do
Spielberg... Não disse que é novo. Aliás, novidade no
cinema é meio complicado. Intervenção na imagem existe
desde Méliès, e não de Guerra nas Estrelas!
F.F.: Só estou apontando que concordo com as
categorias do Ruy. Inclusive não acho que seja negativo
a priori. Apesar de achar que o Jackson opera isso muito
mal.
E.G.: Eu acho que o personagem do cineasta
no King Kong do Jackson tem muito de auto-biográfico,
e a relação que ele desenvolve com o cinema espetáculo
é totalmente auto-referencial.
G.M.: Acho que na teoria o absurdo do absurdo
é bacana, mas na prática, quando a prática são os filmes
do Peter Jackson, o absurdo que ele realiza é um grande
nada.
R.G.: Mas se eu creio que vivemos numa segunda era
do predomínio dos efeitos especiais com o CGI, é porque
é apenas com a primeira (a partir de Guerra nas Estrelas)
que o efeito especial se torna uma coisa que ultrapassa
o terreno do gênero, do filme B, e ganha dimensões de
onivisibilidade e aparece para reavivar um certo desgaste
das ficções. O CGI origina uma nova “corrida em busca
do ouro” pela nova criação de mundos.
P.R.A.: Aí concordo: Guerra nas Estrelas
é o filme que coloca o efeito visual no centro das atenções.
Mas ao mesmo tempo, quanto ao CGI, ouve-se muito que
se deve dar importância à história, dimensão aos personagens
etc, colocando o CGI como ferramenta de filmes, como
facilitador de filmes, e não por usos criativos que
ele possa ter.
R.G.: O limite do cinema para o Stephen Chow
ou para o McG, e talvez para o Rodriguez, é o desenho
animado; para Lucas, Jackson, é um mundo de sonhos,
algo como telas do Salvador Dali que tivessem sido inoculadas
de todo seu poder de selvageria, só restando o efeito
espetaculoso de “mundo maravilhoso”.
P.R.A.: Há um curta-metragem maravilhoso chamado
A Foto do Escândalo, que trabalha com CGI: um
plano-seqüência que acompanha a ação, que se desenvolve
em vários lugares e vários tempos diferentes; apenas
a velocidade absurda permitida pelo CGI permite que
o diretor mostre tudo ao espectador
L.C.O.Jr.: O que mais impressiona é que, nesse
delírio cinético de uma imagem que se modula e se contorce
tão rapidamente que a tela de cinema quase não consegue
acompanhar, o que se ultrapassa é justamente o peso,
a força da gravidade, o limite material dos corpos.
Em suma, impressiona que esse cinema de super-heróis
vá tomar caminhos opostos somente para coincidir com
tudo aquilo que faz de Last Days um filme de
completa virtualização. O corpo libera seu duplo virtual
no fim das contas, e o próprio filme fica cada vez mais
impalpável, fantasmático. A rarefação da narrativa de
Last Days e Elefante é uma outra forma
de afirmar uma imagem que obedece às velocidades internas
dos corpos que a habitam. Homem-Aranha o faz
por arremessos espetaculares de seu herói. Last Days
se volatiliza para obedecer ao destino do protagonista.
E mais: não há nada de CGI nas nuvens de Elefante,
mas existem planos mais virtuais que aqueles no cinema
contemporâneo?
F.F.: O Hulk do Ang Lee é um filme bem
melhor resolvido que Homem Aranha. Lá se aceita
melhor uma certa artificialidade embutida na plasticidade
do CGI, enquanto no Homem Aranha as coisas se
atolam num mimetismo.
T.M.: Mas haveria uma diferença entre o que opera
Last Days e o terreno do CGI, no sentido de que
no primeiro a imagem obedece à velocidade dos corpos
e no segundo é a velocidade que molda a imagem dos corpos?
F.F.: Quando você vê os filmes do McG ou do Stephen
Chow mais recentes, o CGI vira uma modalidade corpo.
T.M.: Sim, mas quanto a essa “imagem que se modula
e se contorce tão rapidamente que a tela de cinema quase
não consegue acompanhar”, penso que talvez haja aí uma
velocidade que prima, para além do acompanhar dos corpos
que a imagem opera (neste caso, a modalidade corpo do
CGI). E ainda sobre a questão do enquadramento dos corpos,
gostaria de lembrar de A Ferida, do Nicolas Klotz,
que está sempre explorando os limites deste quadro cinematográfico,
mas sem exatamente apontar para uma expansão. Pelo contrário,
aliás, temos por vezes a impressão de que o mundo acaba
nos limites daquela imagem na tela.
L.C.O.Jr.: Em ambos os casos, põe-se mais uma
vez em conflito – como em toda grande transformação
anterior na história do cinema – a idéia de mise
en scène como ordenamento do real. Assim como a
noção de um acordo – quase invisível – entre o gesto
e o espaço (Michel Mourlet). O espaço não necessariamente
está lá para abrigar um gesto, e o CGI pode implicar
tanto uma coabitação pacífica de diferentes regimes
de imagem e de corpo (legado Lucas) quanto um confronto
– agressivo ou não. Ou uma problematização que
seja: James Cameron jamais deixou de pensar as novas
imagens – e isso é muito significativo em se tratando
do cineasta que fez os dois filmes-emblema do digital
como possibilidade criativa (O Segredo do Abismo
e O Exterminador do Futuro 2) – como terreno
de tensão.
R.G.: Eu não creio que isso cabe só na questão
CGI. Quando o Bazin fala da “montagem proibida”, ele
está falando de dois regimes diferentes de imagem partilharem
o mesmo plano. O que eu vejo de novidade nessa produção
contemporânea é que há estratégias novas para colocar
regimes heterogêneos partilhando o mesmo espaço (que
não precisa ser o mesmo espaço “físico”: por exemplo
em Shara, em que o fantasma da criança desaparecida
parece povoar o filme mesmo que não seja vista depois
da primeira seqüência).
L.C.O.Jr.: O CGI não esgota a questão, é claro,
mas ele cria um terreno privilegiado para esse tipo
de questionamento. A hibridação, a coabitação de diferentes
imagens está também em Kill Bill e O Gosto
do Chá, em Mal dos Trópicos, em Last Days,
em O Mundo.
P.R.A.: Em Rithy Panh, no S-21, em que
os antigos carcereiros encenam o dia-a-dia dos antigos
prisioneiros, a presença, mesmo que elas estejam ausentes,
de todas as vítimas do khmer vermelho. Mas no CGI as
duas imagens me parecem mais ligadas à forma de “captação”,
se havia alguma coisa na frente da câmera ou se ela
foi criada por números num computador.
R.G.: Aliás, nada me tira da cabeça que o Gus
Van Sant só colocou aquela alma do would-be Kurt
Cobain no filme porque viu o espírito da vaca em Mal
dos Trópicos... Mas eu creio que em O Mundo
a utilização é outra, que só serve para tornar mais
duro o “mal-estar de ser chinês” nas seqüências filmadas.
Em Mal dos Trópicos e Last Days, assim
como em O Gosto do Chá, é um outro registro de
imaginário que se busca com o CGI.
G.M.: O efeito Mal dos Trópicos sobre
Last Days fica explícito aí, mas acho que está
impregnado no filme todo.
T.M.: De qualquer forma há uma ruptura da noção
de plano (e, portanto, de composição da imagem) como
registro contínuo de um determinado espaço-tempo.
L.C.O.Jr.: O que está em jogo, em um caso ou em
outro, é um vôo que não se coloca à altura da câmera,
mas sim reivindica um salto ao limite da imaginação.
Ou ao limite da tecnologia...
T.M.: Sim, a questão tecnológica sai da conformação
do aparato ótico (impressão de realidade) para o limite
de suas possibilidades criativas. Cada vez um novo limite
oferece novas possibilidades de criação. E, por outro
lado, a imaginação plasma a imagem e a “descola” da
obediência a referentes reais.
R.G.: Mas é aí que eu faço o advogado do diabo:
os referentes, ainda que não estejam lá (caso do CGI),
são chamados à nossa cognição de alguma forma. Do mesmo
modo o plano: são muito poucos os filmes, ou até as
seqüências, ou até os planos, a criar ruptura com a
noção de plano. Para Jia Zhang-ke, o plano é decisivo,
para Hong Sang-soo também. Mesmo para grande parte dos
cineastas do fluxo, a maior parte dos planos rodados
não questiona, nem cria ruptura nenhuma com a noção
de plano.
T.M.: Sim, concordo plenamente. Mesmo porque
a noção de plano varia. Acho que há uma ruptura, naqueles
casos de que falávamos, desta noção de registro contínuo
de um determinado espaço-tempo.
L.C.O.Jr.: Talvez haja até reforço da
noção de plano: cabe mais coisa no plano, mais movimento
e mais energia cinética, mais trabalho. Os planos-seqüência
de Elefante e Shara são registros contínuos
de espaço-tempo, o que muda é a sensibilidade desse
espaço-tempo.
R.G.: Acho que nesse ponto o Peter Jackson é
tão importante quanto Abel Ferrara. O Peter Jackson
por ter, não sei se inventado, mas certamente tornado
padrão um tipo de plano inútil, que não significa nada,
que começa num lugar, vai num travelling para
outro, e não há nada que esse plano mostre: é uma pura
(e vazia) tentativa de “dinamismo”. Para o Ferrara isso
se coloca de outra forma, sobretudo em Enigma do
Poder: o plano é algo que falta, o plano é aquele
que não foi filmado porque não foi percebido, o verdadeiro
plano é aquele que o Willem Dafoe tenta descobrir em
sua mente nos quinze minutos finais do filme (e, não
conseguindo achar, inventa).
L.C.O.Jr.: Ferrara já tinha afirmado isso em
Blackout: num monitor está passando o filme que
o personagem do Dennis Hopper quer refilmar, e no outro
lê-se numa tela preta: shot missing.
R.G.: Nisso Enigma do Poder e Olhos de
Serpente são possivelmente os únicos dos anos 90
a fazer. Curioso que um deles seja um filme de um diretor
da suprema visibilidade e outro seja o da visibilidade
errática.
F.F.: Mas o Enigma do Poder é mesmo uma
expansão do Blackout.
L.C.O.Jr.: Sem dúvida, e muito curioso que eles
tenham sido feitos tão imediatamente após Os Chefões,
seu filme de mais fácil familiarização junto ao público
– que, mal ou bem, já havia assimilado alguns daqueles
signos em Scorsese.
F.F.: É bom lembrar que Os Chefões
é o último filme do Ferrara escrito pelo Nicholas St.
John, que era o co-roteirista dele desde o começo, e
que eles quebraram o pau feio no meio do filme. O Blackout
foi mesmo um recomeço, uma nova direção. Em
Os Chefões havia um certo desgaste de temática
e uma certa forma mais fácil, já deglutida, de filme
de gangster católico. Blackout é meio que o desafio,
o mergulho neste universo de percepção e imagem, que
o Enigma do Poder depois amplia.
P.R.A.: Universo de percepção e de imagem: chegamos
também ao Brian De Palma, ao Femme Fatale, aquele
painel que o Banderas monta com fotos para compor o
espaço.
R.G.: E é curiosa essa mudança, porque é nesse
momento que a estética do Abel Ferrara parece cair no
abismo junto com o destino de seus personagens. Como
se soltar o cordão umbilical com o Nick St. John tivesse
liberado ele para fazer a própria câmera cambalear à
procura do absoluto.
L.C.O.Jr.: A imagem empresta à cognição justo
o que faltava, justo o que a memória havia apagado (o
estrangulamento da garçonete em Blackout) – mas
a imagem, ela mesma, se vê impotente diante da avalanche
de signos, de desejos incompletos, de sentidos amplificados
pela droga.
F.F.: Se você pegar o Blackout, Enigma
do Poder e R X’Mas (que é um filme já um
tanto diferente), existe um elemento de calor na experiência
do personagem que até existe como balão de ensaio em
alguns filmes anteriores, mas que ganha forma própria
a partir do rompimento com o St. John. Todos estes filmes
meio que chegam ao material como se tentassem tornar
concreto uma espécie de lembrança chapada de um evento
anterior.
L.C.O.Jr.: E voilà: o que os cineastas que
começamos citando hoje, assim como Abel Ferrara e outros
que nos cativam tanto, percebem em meio ao seu processo
criativo é uma insuficiência do visual como ferramenta
de apreensão do mundo contemporâneo (por mais que este
viva justamente a primazia do ótico!). Daí tantas apostas
na sensorialidade, na percepção do espaço como uma sucessão
de ritmos, na sensibilidade do espaço como uma experiência
tateante. Retorno do tátil no cinema.
R.G.: Acho que seria acima de tudo um visual-atual.
Porque, ademais, são todos cineastas que acreditam muito
no visual, mas também acreditam que o visual sozinho
não é nada, que é preciso adicionar a ele algo de delirante,
de fantasmático, criar uma presença invisível para tencionar
essa imagem.
F.F.: Não é surpresa que a maior parte dos cineastas
que nós estamos discutindo já tenha flertado em algum
momento com o cinema fantástico. Inclusive dá para citar
outra figura central que passeia por muito disso aí
que é o Kiyoshi Kurosawa.
R.G.: É uma imagem que não vale sozinha pelo
valor-de-uso (como as paisagens de um Jackson da vida,
que são meramente decorativas, mas isso é só um exemplo
entre muitos), mas que precisa ser complexificada, criticada
por algum outro elemento (um dispositivo de mise-en-scène,
algum tipo de registro com um outro estatuto). Temos
aí desde cineastas inteiramente fetichizantes (Wong
Kar-wai, Claire Denis) e outros que parecem levar a
crítica a limites extremos (Kiarostami, Ferrara), mas
de alguma forma creio que todos eles se juntam quando
se trata de criar uma estética para que seus filmes
não sejam apenas uma coleção de imagens. Mesmo passando
por estéticas tão distantes entre si, eu creio que,
se há algo que aproxima diversos dos cineastas mais
audaciosos de hoje, é uma opção pelo fragmentário, um
flerte com o não-saber de cineasta nos casos mais extremos,
mas acima de tudo a idéia de que cinema se faz de momentos
que se esgotam em si, ao contrário da forma como estamos
mais acostumados, de uma obra que se constrói inteiramente
estruturada com um todo. Acho que nisso cineastas como
Pialat e Godard, cada um a sua maneira, são decisivos.
Last Days, O Signo do Caos e Mal dos
Trópicos, nesse sentido, estariam na parte mais
audaciosa e vanguardista da trilha, enquanto O Mundo
tenderia à retaguarda: por mais que ele trabalhe o choque
de dois mundos, o objetivo dele é sempre integrar novamente,
e dar um sentido geral da experiência de um país num
determinado momento.
F.F.: Eu acho que aí nós entramos na relação
complicada que esses cineastas todos têm com o “realismo
baziniano”, do qual todos até certo ponto são herdeiros,
mas do qual há sempre uma desconfiança maior ou menor.
R.G.: Eu não sei se Bazin seria o melhor paradigma
para confrontar esses cineastas. Simplesmente porque
eles não parecem provocá-lo, mas criar seus filmes em
outro registro bastante diferente do registro baziniano.
Não porque não gostam de Bazin, mas porque o interesse
do cinema de hoje é outro. Em Brown Bunny ou
em 2046, o espaço é uma metáfora para o tempo.
F.F.: Mas eu vejo aí justamente onde você pode
distanciar O Mundo de Mal dos Trópicos.
Porque em ambos eu consigo enxergar uma herança forte
de uma certa idéia de cinema da concretude (nem tanto
Bazin, mas certas coisas posteriores nas quais pode
se enxergar uma radicalização de certas propostas),
só que ao mesmo tempo há uma desconfiança desta imagem
que simplesmente é. Acho isso forte num Ferrara, por
exemplo, ou naquela geração francesa do fim dos 80/começo
dos 90 (Assayas, Denis, Desplechin).
L.C.O.Jr.: Na verdade acho que há uma ontologia
baziniana em crise mesmo antes, quando já não se pode
responder ao cinema com o argumento da natureza indicial
da imagem fotográfica e a fenomenologia do realismo
começa a se desfocar. É muito curioso que Godard tenha
feito seu Histoire(s) du Cinéma quando o cinema
se prepara para uma transformação do olhar (que um filme
como Adeus ao Sul consolidaria). Godard de certa
forma compôs Histoire(s) du Cinéma como um oratório
pela ressurreição de um ver que ele julgava obnubilado
pelo ler. E o que os anos 90 recuperam através de Hou
e Denis, por exemplo, é a experiência de significantes
que não sabemos muito bem para onde apontam: o cinema
como imersão em mundos indecifráveis pelo arsenal já
conhecido – portanto, que não se dão à leitura.
F.F.: Esses cineastas são meio que herdeiros
de uma crise que já esta instalada num filme como Aos
Nossos Amores. Mas é útil apontar que o Godard tomou
posição clara contra alguns desses nomes (Van Sant,
Kiarostami recente).
L.C.O.Jr.: Aos Nossos Amores revela
a possibilidade de um filme como sucessão de pedras
brutas – “estética Stonehenge” – e da iminência de queda
que essa narrativa apresenta a todo minuto. Uma força
que precisa ser extraída da fragilidade e do magnetismo
dos personagens, da poesia selvagem do tempo efêmero.
R.G.: A crise se dá antes, nos mesmos anos 60
que eu coloquei no início da discussão, e originalmente
se dá a partir da noção de representação: se o mundo
da tela não é mais o mundo da representação da realidade,
então se dá uma quebra com o estatuto da imagem. O que
a geração anos 60 buscava, aliás, não era uma “evolução
da linguagem cinematográfica” como proposta pelo Bazin
a partir de Renoir, Welles e Rossellini, mas a destruição
por completo da linguagem cinematográfica como maneira
de fugir do estatuto da representação. Isso vale para
o Godard, para o Oshima dos anos 60, para o Pasolini,
para o Glauber. O Pialat vai inscrever isso de outra
forma, num primitivismo, na intensidade, na presença
bruta. Não é tanto uma representação mas uma apresentação.
Do tipo “os personagens são falsos mas a violência é
real”. E eu creio que esses cineastas contemporâneos
que estamos citando vão assumir formas diferentes de
fugir do registro da representação (história/personagens/tempo/espaço
bem determinados e postos em cena) para alcançar algum
outro tipo de realidade, talvez até um solipsismo (Wong
Kar-wai) ou ao menos inteiramente voltado para a experiência
do tempo como algo vivível/viciável (Hou Hsiao-hsien,
Gus Van Sant, Apichatpong Weerasethakul). Ou, do outro
lado da cadeia, mais políticos, mais “objetivos”, estão
os filmes de dispositivo, como Dez e Elefante,
que desenvolvem uma relação intensamente cerebral com
as imagens que mostram.
F.F.: Mas se você pegar Godard, Pasolini etc,
você entra numa reação a esta problemática que já é
claramente de ataque à representação, enquanto num Pialat
você entra numa outra aposta que vai render mais frutos
nesta geração mais nova. O espectador quando vê Teorema
sabe que está diante de um filme não-realista. Num filme
como Eternamente Sua (Apichatpong Weerasethakul),
a relação é outra: a fuga vai se dar de uma maneira
que não promove esta quebra de forma tão direta.
R.G.: Pois é esse outro registro que nos está abismando
aqui, e no fundo é isso que a gente está tentando definir
aqui nessa conversa: como esses filmes se inscrevem
numa linha de “cinema narrativo” mas como isso, uma
vez especificado, passa a ser colocado em segundo plano
em função das outras articulações que os filmes querem
fazer. Ao mesmo tempo, são filmes inteiramente mais
abstratos que os mais abstratos filmes de Godard nos
anos 60, e ainda assim são filmes com tudo aquilo que
geralmente os filmes abstratos não são: carnais, sensoriais,
físicos.
F.F.: Eu tendo a considerar o Godard uma figura
complicada nessas horas pela maneira como o pensamento
cinematográfico dele nunca está parado. Lembre-se que
Kiarostami passou, na concepção do Godard, do grande
cineasta à época do Gosto de Cereja a uma figura
incômoda com Dez. Acho que isso é um sinal de
que nem todo o desenvolvimento desse cinema segue numa
direção que Godard veja com bons olhos, a relação dele
com esses cineastas é ambígua.
L.C.O.Jr.: Mesmo assim destaco a existência prévia
dele como alguém que, concorde com os rumos atuais do
cinema ou não, já desejava uma nova relação possível
entre o espectador e o mundo que o cinema dá a perceber.
R.G.: O que eu acho que faz diferença nesses
cineastas é que o laço entre cinema e mundo não é mais
mediado pela história/narrativa como grande elemento
agregador/organizador da mise-en-scène. Apichatpong
Weerasethakul, por exemplo: o primeiro filme dele é
sobre as múltiplas formas que uma história pode adquirir.
A partir disso, a história é um pretexto para criar
uma série de situações. Em Elefante e Last
Days, uma história é impossível; resta um esboço
de acontecimentos em que as elipses e as dúvidas são
mais fortes do que as certezas que se pode ter; até
Hong Sang-Soo, que faz o cinema narrativo de roteiro
mais interessante do mundo hoje, só monta suas estruturas
em espelho para realçar a fissura que existe entre as
histórias; é como se 1 não fosse mais um número suficiente.
Ou você conta várias histórias ou você não conta nenhuma.
Em Dez, a história é suposta pela montagem, pela
reiteração das conversas e das personagens (torna-se
“um filme sobre mulheres no Irã”). Nos filmes do Hou
Hsiao-hsien, a história é um total pretexto, porque
a câmera vai para mil lugares diferentes e por vezes
dá as costas para a história (lembrar as cenas com os
cachorros em Adeus ao Sul, ou a forma como Flores
de Xangai começa). É como se à equação cinema—história—mundo
eles substituíssem para cinema—x—mundo, onde x fosse
recoberto pela história, mas sempre algo diferente (x
pode significar uma experiência, um sentimento, uma
operação com o tempo). O que importa, no fundo, é que
a história passa a ser um pretexto para outros vôos,
ao passo que antes os vôos coexistiam às histórias.
Isso existe inclusive para as novas comédias americanas,
onde x é a atuação dos protagonistas.
G.M.: Salvo algumas exceções como Tashlin e Lewis,
a comédia em qualquer época trabalha a partir deste
registro – ou, ao menos, de algo próximo a ele.
R.G.: É variável, porque não só a comédia mas
também os filmes-de-estrela têm também essa característica:
são veículos. Mas eu não creio que se veja um filme
como Penetras Bons de Bico como veículo. Em todo
caso, a comédia sempre foi um terreno privilegiado para
trabalhar de forma iconoclasta e irreverente a relação
com os pressupostos da linguagem cinematográfica.
L.C.O.Jr.: Os exemplos são mesmo variados: em
Brown Bunny, x responde a um estado afetivo;
em Gerry, a errância por um espaço que se traduz
em tempo e suga a vida dos personagens. Aliás, o espaço
de Gerry é como o de A Cicatriz Interior,
de Philippe Garrel: meio físico onde se perambula e
se perde, mas também espaço mítico que ressoa uma temporalidade
pregueada, um acúmulo de tempos. No caso de um filme
como Penetras Bons de Bico, o cinemascope de
fato está ali para alargar uma área de expansão do corpo.
Os gestos extravasam, o comportamento efusivo pede mais
imagem e mais liberdade de ação, como a seqüência de
festas no início evidencia. A imagem cumpre um papel
de hospedeiro (do corpo, do improviso do ator, da felicidade
momentânea, da afetividade), sua retórica (sua inteligência?)
se enfraquecendo para ressaltar um elogio da estupidez,
do enquadramento por reflexo e instinto (por mais que
saibamos reconhecer as composições dramáticas do filme).
R.G.: Mas de certa forma o trabalho do diretor
em Penetras é simplesmente o de incorporar; ele
não é mais um daquele processo de criação, mas uma espécie
de sujeito que registra a arte, não o artista. Eu acho
que a direção de Penetras não é especialmente
estúpida ou nada... Ela é default, apenas um
continente para o conteúdo.
L.C.O.Jr.: Ela é talvez tímida demais, porque
não lhe cabe fazer a arte do plano, construir a obra
com movimentos de câmera que escrevem ao invés de apenas
promover uma visibilidade. Dobkin não quis uma assinatura
maior que a dos atores, o que tem sua expressão mor
na cena de entrada do Chazz: a mais cuidada composição
do filme se destina tão-somente a aumentar o impacto
de Will Ferrel em cena.
Debate realizado em 22/01/2006
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