CRIME DELICADO
Beto Brant, Brasil, 2005

As férias de Hegel

As características mais impactantes de Crime Delicado são sua concisão e seu laconismo.
Cada imagem que aparece no filme serve menos para nos mostrar alguma coisa do que para fazer surgir algumas interrogações. Interrogações do ponto de vista narrativo (o que se precedeu a essa cena? o que aconteceu entre uma cena e outra? isso é fantasia ou realidade?), mas, principal e decisivamente, o filme provoca o tempo todo interrogações morais: até onde se está dentro do limite e qual a linha de transgressão? a vida que se escolhe para si é uma decisão ou uma prisão? O choque brutal de uma cena íntima que se transforma num espetáculo teatral de frustração sexual; um conflito interno do observador que não consegue se realizar nos "espetáculos" de bar que o protagonista observa, sempre em cortes bruscos e aparentemente desconectados do filme (é preciso um contraplano de Marco Ricca assistindo à cena para reinscrever a seqüência no fluxo narrativo do filme), como quando passamos de uma conversa de velhos bêbados para uma briga de casal; ou, por fim, quando o fluxo do filme em cor é suprimido e começamos a assistir à audiência, o close no rosto do ator.

Curioso, então, que a cena sobre a qual o filme se assenta, a que evoca o "crime delicado" que dá título ao filme, não impacte pelo corte, pelo antes e pelo depois, enfim pela elipse realizada na montagem, mas pelo plano fixo, pela integridade do espaço e da duração. Trata-se, naturalmente, do plano em que Marco Ricca se insinua sobre Lilian Taublib, derrubando-a na cama e fazendo sexo com ela. Prova de que o jogo de elipses não é apenas um jogo estéril: a interpretação do mundo pode se dar a partir de mil dados, que são por muitas vezes desconectados ou pouco conectáveis (como as três conversas de botequim ou as possíveis razões para uma atriz chamar um crítico para jantar), mas o momento que vai se prestar às interpretações precisa estar lá, sem falseamento, inteiro em sua duração. Do plano vem ambigüidades, mas o próprio plano não carrega ambigüidades. E assim o filme segue: pode-se atribuir muitas coisas diferentes às imagens e às conexões de imagens que faz Crime Delicado, mas, seja qual for o viés que se pretende seguir, com ele estará carregado o imenso peso moral de cada gesto, cada decisão, cada conseqüência dos personagens.

O cinema de Beto Brant sempre circula em torno de inquietações morais, mas Crime Delicado, como O Invasor antes dele, parece ir mais longe: se no filme anterior o thriller se transformava aos poucos num drama social e por fim numa alegoria sobre divisão de classes, dessa vez o gênero nem é invocado e o filme é inteiramente ancorado na composição dos personagens, que pela primeira vez em sua carreira assume prioridade sobre o desenrolar da história. Crime Delicado nos deixa imersos na vida de Antonio Martins, crítico de teatro que vive seu métier instalando uma confortável barreira que o separa definitivamente daquilo que ele vê. Essa separação dará o tom não só de seu trabalho, mas da maneira como vê a vida: vendo sem se deixar contaminar, observando sem intervir (não consegue nem dar um palpite à moça desesperada pelos maus-tratos do namorado que ela amo). Seu ideal de arte, assim, é o das formas perfeitas, da conformação aos modelos, do mundo regrado previamente, enfim. Assim, até quando se trata da arte "incompleta" de Büchner, a peça deve se conformar com o original, não tentando completá-la. Ironicamente, será com um delírio sobre a perfeição incompleta que Antonio Martins verá seu mundo – seus conceitos sobre a vida, sua relação entre vida e arte e sobretudo seu próprio papel de espectador – ruir inteiramente. Sobre as relações entre livre-arbítrio e destino, já vimos várias formulações, mas Beto Brant vem criando uma nova equação ao filmar personagens que escolhem uma vida para si mesmos (livre-arbítrio) e acabam presas dos pressupostos dessas vidas, tornando-se assim vítimas indefesas (destino) de suas próprias escolhas. O que importa não é que façamos escolhas, mas como essas escolhas acabam nos determinando.

As "férias da Lei", da conformação, da regra, se darão quando num encontro fortuito Antonio conhece Inês, uma bela moça, descolada, um pouco bêbada. Só quando ela levanta é que ele percebe – no mesmo momento que o espectador – que ela não tem uma perna. A partir daí, as percepções de Antônio passam a se confundir com o estilo do filme: brusco, irregular, precário, tecendo linhas por demais tênues na passagem de um momento para outro. A saudável distância entre sujeito observador e objeto observado se desfaz, e o observador vacila. O caso ainda piora: aquilo que para um é da natureza do irregular, para outro pode ser elevado à categoria de definitivo, um pintor que faz de Inês sua modelo em quadros de erotismo pronunciado que figuram o corpo da moça. É nesse momento que Antonio perde totalmente sua frieza. À mentalidade maculada do esteta distanciado responde fisicamente a nódoa de vinho que a esposa do pintor deixa cair em sua roupa: ele voltou ao mundo dos vivos, ele agora faz parte do palco (e estar no palco, para ele, não é a possibilidade de brilhar, mas de ser ridicularizado, como numa cena anterior), e não se sente bem com isso. Apressado e fora de controle, ele volta à casa-ateliê de Inês e irrompe para tirar satisfações, como se precisasse de um perdão da moça para seu mundo voltar ao normal. A conversa toma outro rumo e a briga sai da esfera física para a corporal.

Desde Morte em Veneza, as ligações entre visão de arte e ideal de perfeição física não se friccionavam de forma tão instigante, não curto-circuitavam as relações de desejo e representação de forma tão letal. Inês acusa Antônio de estupro. Antônio se defende acusando o pintor de pornografia, de abusar do corpo irregular da moça. O pintor, por sua vez, não acusa ninguém, apenas faz o elogio de Inês ("Falta uma perna, e é só") e explica sua própria relação com a arte, totalmente diferente da de Antônio (a arte vem da vida, a vida é alimentada pela arte, não há separação). Duas concepções que, como no filme de Visconti e na narrativa de Thomas Mann, se contrapõem e injetam suas conseqüências na vida. E em ambos os filmes aquele que ganha a discussão e defende o idealismo vai padecer por ele, vai padecer por excesso de retórica. É assim que "crime delicado" ganha uma outra acepção, muito maior do que saber se houve ou não estupro na cena decisiva. O crime delicado incide mais numa questão de olhar, numa questão de considerar o outro, do que numa questão factual – embora seja a questão factual a que leva Antônio aos tribunais. Por isso Beto Brant funde o processo jurídico com o "processo" do gesto artístico, e faz rimar o depoimento de Antônio para a juíza e o depoimento do pintor para a câmera. Como no filme inferior de Bellocchio, é de um processo do desejo que se trata, um processo que gira em torno de um corpo "divergente", como o nome da exposição que Antônio visita, mas sobretudo na maneira de se ver um corpo. Se Antônio encara como pornográfica a relação entre pintor e modelo, é porque sua visão de mundo obriga a arte a manter uma relação estanque com o mundo; já Inês, indignada por ter sido colocada na situação de objeto pelo discurso de Antônio (mais criminoso do que a conjunção carnal, poder-se-ia dizer), considera que a visão inaceitável é a do crítico teatral.

Crime Delicado começa e termina com Schubert, tem três peças encenadas frontalmente para a câmera, diversos quadros de artistas distintos, é adaptado do livro de um grande escritor, além da presença de cineastas e outros artistas. E, como se não bastasse, o próprio filme trata no fundo de uma questão que diz respeito profundamente ao cinema: o gesto de olhar, de um olhar que é ao mesmo tempo uma consideração, um olhar que é uma postura, um gesto ético. Que esse era o horizonte estético de Beto Brant, era algo que já se podia entrever em sua evolução, filme a filme. Mas que em Crime Delicado ele saísse da subtrama e fosse a questão mesma do filme, era bastante inesperado. É à arte, à representação, à beleza que Brant faz suas perguntas: "O que é fazer filmes?", "Qual é o estatuto entre arte e vida?", "Qual deve ser o grau de pureza da arte?". Como Bazin antes dele – sobretudo no flerte do cinema com as outras artes, literatura, pintura, etc. –, Brant optou pelo cinema como arte impura, tanto em relação à vida como às outras artes; o cinema como caixa de ressonância dos movimentos internos dos humanos, em seus momentos em que tudo cambaleia. E o maior mérito de Crime Delicado é que o próprio filme cambaleia. Sua imperfeição é sua melhor qualidade: as arestas que se cria entre as seqüências, o desconforto que se tem ao ver o filme ir para vários lugares diferentes, os diversos registros de imagem (plano subjetivo, registro documental, câmera onisciente) se imbricam para criar um objeto estranho e misterioso, que encanta por sua ousadia e pela força do resultado. Ao contrário de Antônio, Beto Brant sabe que a beleza de um filme não deve corresponder a um ideal, mas ser a força de uma forma encontrada num processo, ainda que essa forma seja incomum, aberrante ou divergente. Uma tal entrega, só dá a constatar que estamos diante de um cineasta em plena maturidade.

Ruy Gardnier

 

 





Um mundo estável (Marco Ricca),


a perfeição da dissimetria (Lilian Taublib)


...e o encontro fatal para o protagonista.