As
férias de Hegel
As características mais impactantes de Crime
Delicado são sua concisão e seu laconismo.
Cada imagem que aparece no filme serve menos para nos
mostrar alguma coisa do que para fazer surgir algumas
interrogações. Interrogações
do ponto de vista narrativo (o que se precedeu a essa
cena? o que aconteceu entre uma cena e outra? isso é
fantasia ou realidade?), mas, principal e decisivamente,
o filme provoca o tempo todo interrogações
morais: até onde se está dentro do limite
e qual a linha de transgressão? a vida que se
escolhe para si é uma decisão ou uma prisão?
O choque brutal de uma cena íntima que se transforma
num espetáculo teatral de frustração
sexual; um conflito interno do observador que não
consegue se realizar nos "espetáculos"
de bar que o protagonista observa, sempre em cortes
bruscos e aparentemente desconectados do filme (é
preciso um contraplano de Marco Ricca assistindo à
cena para reinscrever a seqüência no fluxo
narrativo do filme), como quando passamos de uma conversa
de velhos bêbados para uma briga de casal; ou,
por fim, quando o fluxo do filme em cor é suprimido
e começamos a assistir à audiência,
o close no rosto do ator.
Curioso, então, que a cena sobre a qual o filme
se assenta, a que evoca o "crime delicado"
que dá título ao filme, não impacte
pelo corte, pelo antes e pelo depois, enfim pela elipse
realizada na montagem, mas pelo plano fixo, pela integridade
do espaço e da duração. Trata-se,
naturalmente, do plano em que Marco Ricca se insinua
sobre Lilian Taublib, derrubando-a na cama e fazendo
sexo com ela. Prova de que o jogo de elipses não
é apenas um jogo estéril: a interpretação
do mundo pode se dar a partir de mil dados, que são
por muitas vezes desconectados ou pouco conectáveis
(como as três conversas de botequim ou as possíveis
razões para uma atriz chamar um crítico
para jantar), mas o momento que vai se prestar às
interpretações precisa estar lá,
sem falseamento, inteiro em sua duração.
Do plano vem ambigüidades, mas o próprio
plano não carrega ambigüidades. E assim
o filme segue: pode-se atribuir muitas coisas diferentes
às imagens e às conexões de imagens
que faz Crime Delicado, mas, seja qual for o
viés que se pretende seguir, com ele estará
carregado o imenso peso moral de cada gesto, cada decisão,
cada conseqüência dos personagens.
O cinema de Beto Brant sempre circula em torno de inquietações
morais, mas Crime Delicado, como O Invasor
antes dele, parece ir mais longe: se no filme anterior
o thriller se transformava aos poucos num drama
social e por fim numa alegoria sobre divisão
de classes, dessa vez o gênero nem é invocado
e o filme é inteiramente ancorado na composição
dos personagens, que pela primeira vez em sua carreira
assume prioridade sobre o desenrolar da história.
Crime Delicado nos deixa imersos na vida de Antonio
Martins, crítico de teatro que vive seu métier
instalando uma confortável barreira que o separa
definitivamente daquilo que ele vê. Essa separação
dará o tom não só de seu trabalho,
mas da maneira como vê a vida: vendo sem se deixar
contaminar, observando sem intervir (não consegue
nem dar um palpite à moça desesperada
pelos maus-tratos do namorado que ela amo). Seu ideal
de arte, assim, é o das formas perfeitas, da
conformação aos modelos, do mundo regrado
previamente, enfim. Assim, até quando se trata
da arte "incompleta" de Büchner, a peça
deve se conformar com o original, não tentando
completá-la. Ironicamente, será com um
delírio sobre a perfeição incompleta
que Antonio Martins verá seu mundo seus
conceitos sobre a vida, sua relação entre
vida e arte e sobretudo seu próprio papel de
espectador ruir inteiramente. Sobre as relações
entre livre-arbítrio e destino, já vimos
várias formulações, mas Beto Brant
vem criando uma nova equação ao filmar
personagens que escolhem uma vida para si mesmos (livre-arbítrio)
e acabam presas dos pressupostos dessas vidas, tornando-se
assim vítimas indefesas (destino) de suas próprias
escolhas. O que importa não é que façamos
escolhas, mas como essas escolhas acabam nos determinando.
As "férias da Lei", da conformação,
da regra, se darão quando num encontro fortuito
Antonio conhece Inês, uma bela moça, descolada,
um pouco bêbada. Só quando ela levanta
é que ele percebe no mesmo momento que
o espectador que ela não tem uma perna.
A partir daí, as percepções de
Antônio passam a se confundir com o estilo do
filme: brusco, irregular, precário, tecendo linhas
por demais tênues na passagem de um momento para
outro. A saudável distância entre sujeito
observador e objeto observado se desfaz, e o observador
vacila. O caso ainda piora: aquilo que para um é
da natureza do irregular, para outro pode ser elevado
à categoria de definitivo, um pintor que faz
de Inês sua modelo em quadros de erotismo pronunciado
que figuram o corpo da moça. É nesse momento
que Antonio perde totalmente sua frieza. À mentalidade
maculada do esteta distanciado responde fisicamente
a nódoa de vinho que a esposa do pintor deixa
cair em sua roupa: ele voltou ao mundo dos vivos, ele
agora faz parte do palco (e estar no palco, para ele,
não é a possibilidade de brilhar, mas
de ser ridicularizado, como numa cena anterior), e não
se sente bem com isso. Apressado e fora de controle,
ele volta à casa-ateliê de Inês e
irrompe para tirar satisfações, como se
precisasse de um perdão da moça para seu
mundo voltar ao normal. A conversa toma outro rumo e
a briga sai da esfera física para a corporal.
Desde Morte em Veneza, as ligações
entre visão de arte e ideal de perfeição
física não se friccionavam de forma tão
instigante, não curto-circuitavam as relações
de desejo e representação de forma tão
letal. Inês acusa Antônio de estupro. Antônio
se defende acusando o pintor de pornografia, de abusar
do corpo irregular da moça. O pintor, por sua
vez, não acusa ninguém, apenas faz o elogio
de Inês ("Falta uma perna, e é só")
e explica sua própria relação com
a arte, totalmente diferente da de Antônio (a
arte vem da vida, a vida é alimentada pela arte,
não há separação). Duas
concepções que, como no filme de Visconti
e na narrativa de Thomas Mann, se contrapõem
e injetam suas conseqüências na vida. E em
ambos os filmes aquele que ganha a discussão
e defende o idealismo vai padecer por ele, vai padecer
por excesso de retórica. É assim que "crime
delicado" ganha uma outra acepção,
muito maior do que saber se houve ou não estupro
na cena decisiva. O crime delicado incide mais numa
questão de olhar, numa questão de considerar
o outro, do que numa questão factual embora
seja a questão factual a que leva Antônio
aos tribunais. Por isso Beto Brant funde o processo
jurídico com o "processo" do gesto
artístico, e faz rimar o depoimento de Antônio
para a juíza e o depoimento do pintor para a
câmera. Como no filme inferior de Bellocchio,
é de um processo do desejo que se trata, um processo
que gira em torno de um corpo "divergente",
como o nome da exposição que Antônio
visita, mas sobretudo na maneira de se ver um
corpo. Se Antônio encara como pornográfica
a relação entre pintor e modelo, é
porque sua visão de mundo obriga a arte a manter
uma relação estanque com o mundo; já
Inês, indignada por ter sido colocada na situação
de objeto pelo discurso de Antônio (mais criminoso
do que a conjunção carnal, poder-se-ia
dizer), considera que a visão inaceitável
é a do crítico teatral.
Crime Delicado começa e termina com Schubert,
tem três peças encenadas frontalmente para
a câmera, diversos quadros de artistas distintos,
é adaptado do livro de um grande escritor, além
da presença de cineastas e outros artistas. E,
como se não bastasse, o próprio filme
trata no fundo de uma questão que diz respeito
profundamente ao cinema: o gesto de olhar, de um olhar
que é ao mesmo tempo uma consideração,
um olhar que é uma postura, um gesto ético.
Que esse era o horizonte estético de Beto Brant,
era algo que já se podia entrever em sua evolução,
filme a filme. Mas que em Crime Delicado ele
saísse da subtrama e fosse a questão mesma
do filme, era bastante inesperado. É à
arte, à representação, à
beleza que Brant faz suas perguntas: "O que é
fazer filmes?", "Qual é o estatuto
entre arte e vida?", "Qual deve ser o grau
de pureza da arte?". Como Bazin antes dele
sobretudo no flerte do cinema com as outras artes, literatura,
pintura, etc. , Brant optou pelo cinema como arte
impura, tanto em relação à vida
como às outras artes; o cinema como caixa de
ressonância dos movimentos internos dos humanos,
em seus momentos em que tudo cambaleia. E o maior mérito
de Crime Delicado é que o próprio
filme cambaleia. Sua imperfeição é
sua melhor qualidade: as arestas que se cria entre as
seqüências, o desconforto que se tem ao ver
o filme ir para vários lugares diferentes, os
diversos registros de imagem (plano subjetivo, registro
documental, câmera onisciente) se imbricam para
criar um objeto estranho e misterioso, que encanta por
sua ousadia e pela força do resultado. Ao contrário
de Antônio, Beto Brant sabe que a beleza de um
filme não deve corresponder a um ideal, mas ser
a força de uma forma encontrada num processo,
ainda que essa forma seja incomum, aberrante ou divergente.
Uma tal entrega, só dá a constatar que
estamos diante de um cineasta em plena maturidade.
Ruy Gardnier
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