A
verdade e a mentira lado a lado
Capote se debate entre dois níveis de relação
com a realidade. Em um primeiro plano, mais instrumental,
o do roteiro, a história trata da obsessão do escritor
Truman Capote em dar conta de uma série de fatos reais
em um texto tão interessante que pareça um romance de
ficção. Como se sabe, o filme faz um recorte da biografia
do escritor-jornalista, acompanhando-o no momento da
escrita do livro A sangue frio, que se tornaria
o marco inaugural do new journalism – o estilo
de contar histórias reais que buscou a distância ideal
entre o relatório científico e o romance investigativo.
Em um outro plano, mais cinematográfico e semiológico,
o próprio filme exercita a mesma obsessão do autor,
ao tratar a busca dele, sabidamente uma história real,
com ares de new journalism. Capote dá
uma volta sobre si mesmo: é uma narração estilizada
de uma história real de construção de uma narração estilizada
de uma história real.
Mas aparentemente, em um projeto que claramente aponta
para esse objetivo, faltaria radicalidade ao trabalho
de Bennett Miller. Capote é essencialmente um
filme clássico. E a impressão se reforça porque soa
como um lugar-comum a ultraperfeição no trabalho de
reconstituição de Philipp Seymour Hoffman. Capote,
entretanto, é uma obra diferente das integrantes comuns
do gênero biografia-que-faz-o-personagem-ressuscitar:
é um filme sobre si mesmo, sobre a possibilidade de
sua existência, sobre a possibilidade de se estilizar
o real. Nesse sentido, a opção por uma filmagem clássica,
sem “ousadias” formais – habituais em um cinema mais
sensorial, impondo aos filmes uma decupagem estilosa,
de câmeras subjetivas, planos inclinados e filtros coloridos,
além de metáforas visuais como, por exemplo, a das aparições
da água em Ray –, é mais um trunfo do que um
demérito.
E isso dialoga, por exemplo, com a opção de mostrar
um Truman Capote um tanto inescrutável. Dificilmente
se tem acesso à verdade do personagem. Ele se mantém
de pé, plantando pequenas mentiras aqui e ali: para
conquistar a confiança de uma fonte, nega sua homossexualidade
– em um jogo claro de dissimulação. Para conquistar
a do assassino, mostra interesse por ele. Verdade e
mentira. As duas em um mesmo corpo. Ambas com um mesmo
promotor.
Por isso, talvez a palavra-chave para Capote
seja cumplicidade. O filme é cúmplice de seu personagem,
cujo ethos– regido pelo objetivo supremo do
superlivro, objetivo que, na cabeça dele, tudo desculpa,
tudo permite – o faz se mover por diferentes territórios
da memória (sua e de seus personagens) e da mitificação.
O tempo todo no filme – como na aparição da foto na
cena de abertura ou na cena de revelação “do que realmente
aconteceu no assassinato” – sintomas denunciam a flexibilidade
das verdades absolutas e, mais que elas, das mentiras
indiscutíveis.
E é este o grande trunfo de Miller: ele escolhe como
narrador sem credibilidade um dos narradores mais dotados
de credibilidade já conhecidos. E essa rubrica é estética:
a credibilidade de Capote vem do fato de ele narrar
verdades como lendas, como se mentiras fossem. E a câmera
está lá, ao lado dele. O diretor sabe que diante dos
olhos o que a câmera mostra é tomado como o real. E
denuncia isso o tempo todo, não apontando o dedo, e
sim mostrando que toda ética corresponde a uma estética.
A cumplicidade também é estabelecida por outro jogo
de relações, o entre Capote e Harper Lee, a assistente
de pesquisa que, ao longo da história, conquista sucesso
com sua luz própria e passa ao lugar de “apenas amiga”.
É dela que extraímos a impressão de que as falas dele
são falseamentos. O olhar dela flerta com o espectador.
Não que ela olhe para a câmera, mas suas reações às
falas de Capote são pura denúncia. E não apenas de um
procedimento (anti)ético interno à trama. É também uma
denúncia estética, de um certo procedimento de adocicamento
da verdade que a literatização impõe. O enfado
dela diante da capacidade de seu amigo de inventar,
de querer ser o centro das atenções e para isso transformar
tudo em dramaturgia – até sua própria crise criativa
posterior.
Esta, aliás, é uma curiosa tese que o filme se permite
ter: o desinteresse de Truman Capote pela literatura
que resulta do processo dolorido de feitura de A
Sangue Frio, bem pode ser entendido, a partir do
filme, como uma estetização: na falta de uma história
real a converter em narração com cara de ficção, ele
converte a própria vida em drama, a própria história
em crise de literatura. Essa é, aliás, a operação dramática
suprema do filme: seu flerte entre sua história e sua
operação lógica é mais do que um mero efeito, é um exercício
auto-expiatório. Como Capote, Capote se imola
a si mesmo em nome de sua verdade.
Alexandre Werneck
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