Um
certo – e equivocado - senso comum parece acreditar
que, para falar de política, seria necessário uma abordagem
sisuda, exaltando problemas sociais e apresentando um
ponto de vista favorável aos “oprimidos”. Mas esse tipo
de mensagem direta, na qual o tema parece sobrepor o
tratamento cinematográfico, quase sempre resulta em
filmes que podem ter lá sua validade como panfleto,
mas que deixam a desejar enquanto cinema pura e simplesmente.
Mas por que iniciar com uma breve reflexão a cerca de
cinema político uma resenha sobre a última comédia de
Jim Carrey? Pelo fato dessa comédia, que a olhares menos
atentos pode parecer simples, despretensiosa ou mesmo
superficial, na verdade se trata de uma das mais corrosivas
críticas a aspectos da história política e econômica
recente dos EUA. Dentro do excelente momento que a comédia
americana vem atravessando nos últimos anos, muitos
filmes – e o melhor exemplo seria Entrando Numa Fria
Maior Ainda (2004) - vêm se utilizando desse formato
aparentemente digestivo para “contrabandear” de forma
sutil, porém bastante honesta, uma sátira política.
E essa abordagem acaba se tornando bem mais eficiente
que se fosse apresentada dentro dos clichês do drama
social ou dos documentários oportunistas à moda de Michael
Moore.
Sem esquecer que estamos tratando de uma refilmagem
de Advinhe Quem Vem Para Roubar, dirigido por
Ted Kotcheff em 1977, vemos que este novo filme dirigido
por Dean Parisot apropria-se da história de seu modelo
– um chefe de família de classe média alta perde o emprego
e, com a conseqüente queda de seu padrão de vida, passa
a praticar, juntamente com a esposa, assaltos para sobreviver
– e a aplica a um momento específico da história americana
recente, o ano de 2000, quando muitas empresas inchadas
pelo boom da internet ocorrido na 2 metade dos
anos 90 começam a quebrar. Nos primeiros momentos fica
clara a ganância desmedida dos grandes dirigentes e
o deslumbre dos executivos das empresas – sintetizados
pelo personagem de Carrey – aparentemente bem remunerados,
mas apenas meros joguetes nas mãos de seus patrões.
E Carrey incorpora bastante bem esta figura do otário
deslumbrado, carregando seu carisma de comediantes e
contendo na medida exata alguns de seus tiques exagerados.
Quando vem a falência da empresa, As Loucuras de
Dick e Jane pinta o quadro da época na qual o filme
se passa como um novo período da depressão que se sucedeu
à queda da bolsa de Nova York em 1929. O tratamento
cômico ressalta o lado patético mas não disfarça um
quadro social onde imperam o desemprego e o empobrecimento
sucessivo, quando a condição econômica de famílias WASP
de classe média outrora alta, passa a tornar-se bastante
próxima daquela em que se encontrariam os pobres imigrantes
latinos. Isso resulta em momentos quase crus, como aquele
em que Dick disputa um trabalho braçal na porta de uma
fábrica (uma imagem clássica de filmes passados nos
anos 30);ou em instantes bastante amargos, de um humor
que beira a tristeza, estampada na seqüência em que
Dick tenta recompor a qualquer preço seu gramado, símbolo
de toda uma vida que lhe fora roubada.
Apesar de todo o rancor que o filme transparece, Parisot
e seu time de roteiristas – que inclui Judd Apatow,
responsável pelo ótimo O Virgem de 40 Anos -
não esquecem em nenhum momento que estão realizando
uma comédia. E, entre vários momentos de graça, conseguem
apresentar ao menos uma seqüência de antologia: quando
Dick, Jane e o filho, sem luz e água em casa, esgueiram-se
pelos jardins alheios tentando aproveitar-se dos esguichos
que regam a grama para tomar banho, pérola de timing
cômico e humor puramente visual, dignas de um Charlie
Chaplin. Destaque também para as cenas em que Dick e
Jane executam seus primeiros e desastrados roubos, espelho
de Um Assaltante bem Trapalhão, de Woody Allen.
Mas em se tratando de referências ao cinema clássico,
o que esse As Loucuras de Dick e Jane consegue
acima de tudo é fazer uma atualização bastante sincera
e eficaz do cinema de Frank Capra, que nos anos 30 trazia
excelentes comédias nas quais um anti-herói, homem comum
por excelência (vividos por Gary Cooper ou James Stewart),
superava um status quo imerso em ganância e corrupção
numa época de depressão econômica. Jim Carrey encarna
à sua moda um novo Jimmy Stewart e as reviravoltas do
roteiro trazem um final redentor no qual Dick, e todos
seus antigos colegas de empresa, saem vitoriosos frente
à figura todo-poderosa do emresário Alec Baldwyn (o
ator que melhor repensou sua persona cinematográfica
nos últimos anos, reencarnando não só aqui como em outros
filmes a figura de Edward Arnold, o eterno vilão representante
do capitalismo selvagem dos filmes de Capra). Esta conclusão,
entretanto, não resvala totalmente para um otimismo
puro, pois a piada final referente à Enron está aí para
lembrar que, a longo prazo, a nova depressão econômica
que o filme aborda ainda estaria longe de terminar.
Gilberto Silva Jr.
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