AS LOUCURAS DE DICK E JANE
Dean Parisot, Fun With Dick and Jane, EUA, 2005

Um certo – e equivocado - senso comum parece acreditar que, para falar de política, seria necessário uma abordagem sisuda, exaltando problemas sociais e apresentando um ponto de vista favorável aos “oprimidos”. Mas esse tipo de mensagem direta, na qual o tema parece sobrepor o tratamento cinematográfico, quase sempre resulta em filmes que podem ter lá sua validade como panfleto, mas que deixam a desejar enquanto cinema pura e simplesmente.

Mas por que iniciar com uma breve reflexão a cerca de cinema político uma resenha sobre a última comédia de Jim Carrey? Pelo fato dessa comédia, que a olhares menos atentos pode parecer simples, despretensiosa ou mesmo superficial, na verdade se trata de uma das mais corrosivas críticas a aspectos da história política e econômica recente dos EUA. Dentro do excelente momento que a comédia americana vem atravessando nos últimos anos, muitos filmes – e o melhor exemplo seria Entrando Numa Fria Maior Ainda (2004) - vêm se utilizando desse formato aparentemente digestivo para “contrabandear” de forma sutil, porém bastante honesta, uma sátira política. E essa abordagem acaba se tornando bem mais eficiente que se fosse apresentada dentro dos clichês do drama social ou dos documentários oportunistas à moda de Michael Moore.

Sem esquecer que estamos tratando de uma refilmagem de Advinhe Quem Vem Para Roubar, dirigido por Ted Kotcheff em 1977, vemos que este novo filme dirigido por Dean Parisot apropria-se da história de seu modelo – um chefe de família de classe média alta perde o emprego e, com a conseqüente queda de seu padrão de vida, passa a praticar, juntamente com a esposa, assaltos para sobreviver – e a aplica a um momento específico da história americana recente, o ano de 2000, quando muitas empresas inchadas pelo boom da internet ocorrido na 2 metade dos anos 90 começam a quebrar. Nos primeiros momentos fica clara a ganância desmedida dos grandes dirigentes e o deslumbre dos executivos das empresas – sintetizados pelo personagem de Carrey – aparentemente bem remunerados, mas apenas meros joguetes nas mãos de seus patrões. E Carrey incorpora bastante bem esta figura do otário deslumbrado, carregando seu carisma de comediantes e contendo na medida exata alguns de seus tiques exagerados.

Quando vem a falência da empresa, As Loucuras de Dick e Jane pinta o quadro da época na qual o filme se passa como um novo período da depressão que se sucedeu à queda da bolsa de Nova York em 1929. O tratamento cômico ressalta o lado patético mas não disfarça um quadro social onde imperam o desemprego e o empobrecimento sucessivo, quando a condição econômica de famílias WASP de classe média outrora alta, passa a tornar-se bastante próxima daquela em que se encontrariam os pobres imigrantes latinos. Isso resulta em momentos quase crus, como aquele em que Dick disputa um trabalho braçal na porta de uma fábrica (uma imagem clássica de filmes passados nos anos 30);ou em instantes bastante amargos, de um humor que beira a tristeza, estampada na seqüência em que Dick tenta recompor a qualquer preço seu gramado, símbolo de toda uma vida que lhe fora roubada.

Apesar de todo o rancor que o filme transparece, Parisot e seu time de roteiristas – que inclui Judd Apatow, responsável pelo ótimo O Virgem de 40 Anos - não esquecem em nenhum momento que estão realizando uma comédia. E, entre vários momentos de graça, conseguem apresentar ao menos uma seqüência de antologia: quando Dick, Jane e o filho, sem luz e água em casa, esgueiram-se pelos jardins alheios tentando aproveitar-se dos esguichos que regam a grama para tomar banho, pérola de timing cômico e humor puramente visual, dignas de um Charlie Chaplin. Destaque também para as cenas em que Dick e Jane executam seus primeiros e desastrados roubos, espelho de Um Assaltante bem Trapalhão, de Woody Allen.

Mas em se tratando de referências ao cinema clássico, o que esse As Loucuras de Dick e Jane consegue acima de tudo é fazer uma atualização bastante sincera e eficaz do cinema de Frank Capra, que nos anos 30 trazia excelentes comédias nas quais um anti-herói, homem comum por excelência (vividos por Gary Cooper ou James Stewart), superava um status quo imerso em ganância e corrupção numa época de depressão econômica. Jim Carrey encarna à sua moda um novo Jimmy Stewart e as reviravoltas do roteiro trazem um final redentor no qual Dick, e todos seus antigos colegas de empresa, saem vitoriosos frente à figura todo-poderosa do emresário Alec Baldwyn (o ator que melhor repensou sua persona cinematográfica nos últimos anos, reencarnando não só aqui como em outros filmes a figura de Edward Arnold, o eterno vilão representante do capitalismo selvagem dos filmes de Capra). Esta conclusão, entretanto, não resvala totalmente para um otimismo puro, pois a piada final referente à Enron está aí para lembrar que, a longo prazo, a nova depressão econômica que o filme aborda ainda estaria longe de terminar.


Gilberto Silva Jr.