AS CHAVES DE CASA
Gianni Amelio, Le Chiavi di Casa, Itália/França/Alemanha, 2004

Um jovem pai abandona seu filho deficiente na maternidade e, quinze anos depois, reaproxima-se do menino ao acompanhá-lo numa viagem rotineira de seu tratamento. Desse resumo simples da trama de As Chaves de Casa emana uma certa agenda tácita, um caminho obrigatório de ações e reações calculadas, e Gianni Amelio sabe disso. Como num desses programas sociais de recuperação, este pai deverá atravessar estágios emocionais, passos rumo a um objetivo conhecido e de cuja confirmação não temos dúvida em nenhum momento. O encontro inicial se dá nas bases de um estranhamento mútuo, pai e filho nunca antes se viram e ainda sentem-se inseguros em suas novas posições. Depois disso, a fase da negação, o pai confuso com a força da paternidade recém-assumida, o filho incomodado com aquela presença que nunca tivera antes. Por fim, a aceitação e a adesão total de uma parte à outra. Um trajeto cumprido à risca, pelos personagens e pelo diretor.

Mas é claro o incômodo e a falta de jeito de Amelio dentro dessas amarras narrativas; mais que isso, amarras de uma postura igualmente obrigatória diante de um tema desses (temos um ator mirim realmente deficiente físico e mental; temos, mais ainda, uma comunidade de pessoas envolvida nos cuidados de pacientes como ele, uma comunidade que o filme toma tempo em retratar e que impele o registro do realizador a sempre se fiar no politicamente correto). Esse caminho de redenção sugerido inicialmente é conduzido de maneira quase atabalhoada, o estranhamento nunca se efetiva, a negação é como um truque de cartola – o personagem de Kim Rossi Stuart precisa dizer literalmente “eu não sou o pai dele” para dar alguma veracidade a um sentimento que o filme, em nenhum momento, acredita realmente existir.

O símbolo maior do movimento que As Chaves de Casa realiza entre o sufocamento de uma agenda a cumprir e uma vontade de respirar fora dessa caixa restrita é a personagem de Charlotte Rampling. Nicole é mãe de uma das pacientes do hospital em que Gianni leva seu filho Paolo. Como estes dois últimos, parece estar eternamente presa à condição que a vida lhe impôs, a doença de sua filha é incurável e resta a ela apenas padecer ao seu lado. Nicole funciona no filme como a consciência de Gianni – algo tão mecanicamente construído (se a personagem não existisse, suas falas poderiam virar tranqüilamente o pensamento em off de Gianni) –, sempre pronta a dispensar-lhe um ensinamento ou uma frase de efeito, e que em nenhum momento alcança profundidade bastante para soar diferente de um grilo falante ou uma fada madrinha. Na primeira hora do filme, Nicole ronda as figuras de Gianni e Paolo como uma espécie de fantasma do bem, dando as deixas para toda a sorte de feelgood moments da aproximação entre pai e filho. Amelio se exclui de quaisquer outras conotações nessa escalada da relação familiar, dá aos planos o tempo mínimo de que precisam para funcionar, decupa as cenas com o objetivo único da eficiência, e isso parece bastar.

E então o rosto de Rampling, com lágrimas nos olhos, ocupa sozinho o quadro, e esta imagem se estende até o desconforto. Personagem-escada, de função específica durante o filme inteiro, Nicole ganha vida e joga em As Chaves de Casa a questão que desde o começo parecia bafejar a história mas que Amelio sempre se esforçava em esconder. Nicole diz a Gianni, num desabafo desconcertante, que em certos momentos olha para a filha incurável e se pergunta: “Porque ela não morre?”. Se há alguma “fase de negação” no filme, é esta aqui. A frase ecoa como a nota dissonante que desmente tudo o que até aquele momento havia sido levado a cabo por Amelio, e tudo o que voltará a ser dito até o fim.

Apesar dos protagonistas italianos, As Chaves de Casa se passa inteiro em Berlim e na Noruega. A condição de estrangeiros de Gianni e Paolo é reflexo direto do arco cumprido pelo pai. Estrangeiro porque pouco conhecedor daquela nova situação, e que literalmente se familiariza a ela. Estrangeiro, mais ainda, porque fora de sua normalidade, e esta acaba sendo a grande indagação do filme. Gianni parece buscar o tempo todo em Paolo traços que o livrem da deficiência e que o aproximem de uma certa normalidade. É menos uma questão de entender e saber lidar com uma doença e mais a tentativa de encontrar nela pequenos momentos em que se possa ignorar sua existência. Quando a personagem mais devota da resignação pela enfermidade revela o desejo íntimo de reconhecer sua fraqueza e livrar-se deste fardo, instala-se na trama central um estranho ruído.

Pai e filho abandonam o tratamento em Berlim e vão até a Noruega atrás de uma namorada virtual de Paolo. Na cena final, andam sozinhos de carro por uma estrada ensolarada e vazia. A idéia dessa jornada como viagem transformadora simplesmente não se realiza, já que ao fim e ao cabo não existe nenhuma transformação real. A trilha sonora faz da cena quase um comercial de tevê, aquele ruído anterior parece ter se dissipado totalmente. Paolo pede para guiar o carro, mexendo no volante. Gianni permite, e caminham para aquela conjunção perfeita. Mas Paolo começa a desobedecê-lo, faz zigue-zagues com o carro, vira o volante de maneira perigosa, tem um pequeno ataque quando é repreendido pelo pai. Gianni, rosto cheio na tela como acontecera antes com Nicole, olha para o filho, e aquela pergunta aterradora de antes volta agora, implacável. Não há como fugir dela. Se há agenda tácita, se há caminho obrigatório, eles são frágeis demais. As Chaves de Casa, muito tarde mas ainda assim não tarde demais, lembra que a própria intenção transformadora se perde diante da inevitabilidade da doença. O máximo possível é um rearranjo de forças, que tenha a consciência plena de que uma deficiência nunca pode ser esquecida e de que lidar com ela exige mais do que a disposição de comprar sorvetes ou dividir uma banheira. Num filme que caminhava para a construção de modelos perfeitos de super-homens imunes às complicações do mundo, o canto final acaba afirmando que o maior gesto de nobreza numa situação dessas é tão somente resistir à mais baixa demonstração de humanidade.


Rodrigo de Oliveira