Um
jovem pai abandona seu filho deficiente na maternidade
e, quinze anos depois, reaproxima-se do menino ao acompanhá-lo
numa viagem rotineira de seu tratamento. Desse resumo
simples da trama de As Chaves de Casa emana uma
certa agenda tácita, um caminho obrigatório de ações
e reações calculadas, e Gianni Amelio sabe disso. Como
num desses programas sociais de recuperação, este pai
deverá atravessar estágios emocionais, passos rumo a
um objetivo conhecido e de cuja confirmação não temos
dúvida em nenhum momento. O encontro inicial se dá nas
bases de um estranhamento mútuo, pai e filho nunca antes
se viram e ainda sentem-se inseguros em suas novas posições.
Depois disso, a fase da negação, o pai confuso com a
força da paternidade recém-assumida, o filho incomodado
com aquela presença que nunca tivera antes. Por fim,
a aceitação e a adesão total de uma parte à outra. Um
trajeto cumprido à risca, pelos personagens e pelo diretor.
Mas é claro o incômodo e a falta de jeito de Amelio
dentro dessas amarras narrativas; mais que isso, amarras
de uma postura igualmente obrigatória diante de um tema
desses (temos um ator mirim realmente deficiente físico
e mental; temos, mais ainda, uma comunidade de pessoas
envolvida nos cuidados de pacientes como ele, uma comunidade
que o filme toma tempo em retratar e que impele o registro
do realizador a sempre se fiar no politicamente correto).
Esse caminho de redenção sugerido inicialmente é conduzido
de maneira quase atabalhoada, o estranhamento nunca
se efetiva, a negação é como um truque de cartola –
o personagem de Kim Rossi Stuart precisa dizer literalmente
“eu não sou o pai dele” para dar alguma veracidade a
um sentimento que o filme, em nenhum momento, acredita
realmente existir.
O símbolo maior do movimento que As Chaves de Casa
realiza entre o sufocamento de uma agenda a cumprir
e uma vontade de respirar fora dessa caixa restrita
é a personagem de Charlotte Rampling. Nicole é mãe de
uma das pacientes do hospital em que Gianni leva seu
filho Paolo. Como estes dois últimos, parece estar eternamente
presa à condição que a vida lhe impôs, a doença de sua
filha é incurável e resta a ela apenas padecer ao seu
lado. Nicole funciona no filme como a consciência de
Gianni – algo tão mecanicamente construído (se a personagem
não existisse, suas falas poderiam virar tranqüilamente
o pensamento em off de Gianni) –, sempre pronta
a dispensar-lhe um ensinamento ou uma frase de efeito,
e que em nenhum momento alcança profundidade bastante
para soar diferente de um grilo falante ou uma fada
madrinha. Na primeira hora do filme, Nicole ronda as
figuras de Gianni e Paolo como uma espécie de fantasma
do bem, dando as deixas para toda a sorte de feelgood
moments da aproximação entre pai e filho. Amelio
se exclui de quaisquer outras conotações nessa escalada
da relação familiar, dá aos planos o tempo mínimo de
que precisam para funcionar, decupa as cenas com o objetivo
único da eficiência, e isso parece bastar.
E então o rosto de Rampling, com lágrimas nos olhos,
ocupa sozinho o quadro, e esta imagem se estende até
o desconforto. Personagem-escada, de função específica
durante o filme inteiro, Nicole ganha vida e joga em
As Chaves de Casa a questão que desde o começo
parecia bafejar a história mas que Amelio sempre se
esforçava em esconder. Nicole diz a Gianni, num desabafo
desconcertante, que em certos momentos olha para a filha
incurável e se pergunta: “Porque ela não morre?”. Se
há alguma “fase de negação” no filme, é esta aqui. A
frase ecoa como a nota dissonante que desmente tudo
o que até aquele momento havia sido levado a cabo por
Amelio, e tudo o que voltará a ser dito até o fim.
Apesar dos protagonistas italianos, As Chaves de
Casa se passa inteiro em Berlim e na Noruega. A
condição de estrangeiros de Gianni e Paolo é reflexo
direto do arco cumprido pelo pai. Estrangeiro porque
pouco conhecedor daquela nova situação, e que literalmente
se familiariza a ela. Estrangeiro, mais ainda, porque
fora de sua normalidade, e esta acaba sendo a grande
indagação do filme. Gianni parece buscar o tempo todo
em Paolo traços que o livrem da deficiência e que o
aproximem de uma certa normalidade. É menos uma questão
de entender e saber lidar com uma doença e mais a tentativa
de encontrar nela pequenos momentos em que se possa
ignorar sua existência. Quando a personagem mais devota
da resignação pela enfermidade revela o desejo íntimo
de reconhecer sua fraqueza e livrar-se deste fardo,
instala-se na trama central um estranho ruído.
Pai e filho abandonam o tratamento em Berlim e vão até
a Noruega atrás de uma namorada virtual de Paolo. Na
cena final, andam sozinhos de carro por uma estrada
ensolarada e vazia. A idéia dessa jornada como viagem
transformadora simplesmente não se realiza, já que ao
fim e ao cabo não existe nenhuma transformação real.
A trilha sonora faz da cena quase um comercial de tevê,
aquele ruído anterior parece ter se dissipado totalmente.
Paolo pede para guiar o carro, mexendo no volante. Gianni
permite, e caminham para aquela conjunção perfeita.
Mas Paolo começa a desobedecê-lo, faz zigue-zagues com
o carro, vira o volante de maneira perigosa, tem um
pequeno ataque quando é repreendido pelo pai. Gianni,
rosto cheio na tela como acontecera antes com Nicole,
olha para o filho, e aquela pergunta aterradora de antes
volta agora, implacável. Não há como fugir dela. Se
há agenda tácita, se há caminho obrigatório, eles são
frágeis demais. As Chaves de Casa, muito tarde
mas ainda assim não tarde demais, lembra que a própria
intenção transformadora se perde diante da inevitabilidade
da doença. O máximo possível é um rearranjo de forças,
que tenha a consciência plena de que uma deficiência
nunca pode ser esquecida e de que lidar com ela exige
mais do que a disposição de comprar sorvetes ou dividir
uma banheira. Num filme que caminhava para a construção
de modelos perfeitos de super-homens imunes às complicações
do mundo, o canto final acaba afirmando que o maior
gesto de nobreza numa situação dessas é tão somente
resistir à mais baixa demonstração de humanidade.
Rodrigo de Oliveira
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