Os
últimos filmes de Claude Chabrol poderiam muito
bem se resumir como documentários sobre como
os personagens da burguesia de cidade pequena na França
entram, dirigem e saem de seus carros. Basta mencionar
o inesquecível final de A Teia de Chocolate,
em que a ação se resolve por uma questão
de proficiência no dirigir. Em A Dama
de Honra, isso já está presente desde
o começo, quando, ao passar dos créditos,
vemos um travelling correndo lateralmente na
velocidade e na altura de uma janela de carro. Se dessa
vez o carro não tem um papel decisivo no desenrolar
da trama, isso apenas faz com que seu papel na construção
de um imaginário fique mais forte. Já
o era em A Flor do Mal (La Fleur du mal,
2003), infelizmente inédito no Brasil, com os
muitos motoristas, carros, caronas e viagens. Em A
Dama de Honra, o carro é motivo de comentário
(o funcionário do restaurante que se lembra de
um homem pelo veículo que ele dirigia), de contemplação,
de poder (quem tem e quem não tem, quem pode
dirigir e quem não pode), e principalmente o
papel de metaforizar quem pode controlar seu destino.
Assim, é o protagonista Philippe, interpretado
magistralmente por Banoît Magimel, que, saindo
do automóvel, se toma como homem-de-família
que equilibra e organiza a vida familiar do cotidiano
que compartilha com sua mãe, Christine (aliás
Aurore Clément, sempre ótima), e suas
irmãs, Sophie e Patricia. Ele é a expressão
do controle: é o mais racional da família,
tem um futuro promissor trabalhando numa firma de construção
e reparos, e parece carregar sua vida sentimental entre
a pouca importância e a discrição.
Mas, como sempre em Chabrol, é quando os destinos
fogem das coordenadas que tudo fica mais interessante.
É aí que o estudo dos pequenos gestos
mesquinhos da classe burguesa são alçados
a um outro grau, a racionalidade se transforma em seu
oposto, o senso-comum se transforma em confusão
e patologia. Em Chabrol, não existe oposição,
mas contigüidade entre um estado e outro. É
essa a grandeza que povoa filmes tão distintos
quanto Os Fantasmas do Chapeleiro, Mulheres
Diabólicas, As Simplórias ou
O Açougueiro, entre outros: a de circunscrever
muito bem os gestos e os hábitos de uma classe
muito bem instalada, e ainda assim mostrar como dela
brota a loucura, a perversão, a luta de classes,
enfim aquilo que de forma corrente na sociedade é
visto como o outro da burguesia e de seu bom
gosto, quando não passa de uma modalidade de
sua própria existência. E os parâmetros
de Philippe, sempre muito bem instalados, só
cambaleiam quanto ele conhece Stéphanie, ou melhor,
Senta, na festa de casamento de sua irmã Sophie
(de fato, é Senta a "dama de honra"
que dá o título ao filme). A perturbação
tem lugar, e de uma hora para o outro os dois já
trocam confidências de amor eterno, criam um laço
que coloca na berlinda a boa distância aceitável.
É curioso que o filme passe um bom primeiro momento
apenas construindo o ambiente em que vive Philippe,
mostrando seus costumes, seu ritmo particular, sua ligeira
timidez e seu senso de recente patriarca, para só
num segundo tempo mostrar Senta.
Na verdade, "A Dama de Honra" é um
título que se refere não à mulher,
mas à sensação que a mulher evoca
na vida do protagonista. Em todo caso, é também
pela construção psicológica,
física, rítmica da personagem de
Senta que o filme continua. E aí torna-se fundamental
a escolha de Laura Smet, uma atriz voluptuosa com um
rosto que, dependendo do ângulo que se vê,
apresenta uma beleza inteiramente equilibrada ou desequilibrada,
torna-se deslumbrante ou estranha. Essa dupla reação,
essa dúvida, essa confusão povoará
tanto a relação de Philippe com Senta
quanto a do espectador com o filme: qual será
a natureza dessa personagem excêntrica? Será
apenas uma jovem com delírios de grandeza? Será
ela uma mitômana? Ou apenas alguém de uma
natureza tão diferente que espanta mas que não
apresenta nenhum desvio de caráter? Enfim, uma
louca de pedra ou apenas uma maluquete adorável?
É entre esses dois pólos que o filme trabalha
a percepção que Philippe tem de Senta,
e é a indiscernibilidade entre os dois (o desejo
dele pedindo uma interpretação, os fatos
demandando outra) que faz com que ele mantenha o laço
que une os dois. Pois Senta é para Philippe aquilo
que, se por um lado suspende sua vida trivial e bem
balanceada, é a única oportunidade para
que ele fuja do convívio mediano em que está
instalado a esse respeito, a flagrante estupidez
e feiúra do marido de Sophie e a profissão
da mãe, manicure, só tornam o ambiente
mais mundano e insuportável para ele. Se ele
aspira a uma vida diferente, mais "heróica"
ou marginal algo que sua irmã menor, autora
de pequenos furtos e usuária de drogas, já
tinha escolhido antes dele , é apenas através
de Senta que ele alcançará.
A Dama de Honra comprova um percurso curioso
na carreira de Chabrol. É que de um tempo para
cá, ele vem preferindo fugir da grande forma,
dos movimentos precisos e elegantes de câmera
e escolhendo uma forma mais ligeira, menos burilada,
priorizando a fluência da narrativa e chamando
menos a atenção para a imagem como entidade
autônoma. Ainda assim, Chabrol permanece o mesmo
arquiteto langiano, tomando para si os gêneros
e utilizando-os em sua trivialidade máxima (a
esse respeito, o filme está às antípodas
de Ponto Final, de Woody Allen, que se quer muito
mais que um filme de crime, e claramente não
é nada mais...), enredando tanto Benoît
Magimel quanto a nós, espectadores, em sua teia
de dúvidas, fazendo a ficção lentamente
caminhar para um clímax e fazendo os créditos
finais aparecerem ainda bruscamente, sem um epílogo
que ratificasse as posições finais dos
personagens. Esse novo momento de Chabrol lembra em
parte o caminho de Dario Argento, que também
vem trabalhando o gênero em seus aspectos francamente
menores e reduz seu savoir-faire de encenador
à simples fluência da narrativa. Não
é questão de preguiça, de comodidade
ou de ausência de tensão estética.
Apenas uma aposta em fazer o cinema funcionar em sua
chave de crença no gênero (a lição
de John Carpenter) num momento em que a quase totalidade
da fruição no cinema passa por um estado
de auto-consciência absoluta, um efeito-Blair
Witch, os Suspeitos ou Jogos Mortais (em
que o whodunnit dá lugar a uma briga entre diretor
e espectador para saber quem engana quem). Grande caricaturista
da sociedade francesa desde Balzac e Flaubert, criador
ele mesmo de uma "comédia humana" toda
própria, algoz incansável da pequeneza
da classe média, Chabrol faz com A Dama de
Honra um suspense psicológico que dá
gosto de assistir e, se não adiciona uma viga
mestra a uma obra já consolidada, ao menos elabora
e torna mais visíveis certos traços de
sua construção. Se cada filme de Chabrol
é um capítulo novo de seu único
"livro", esperamos ansiosamente sua continuação,
novamente com Isabelle Huppert, que acaba de estrear
na França: L'Ivresse du pouvoir/A Embriaguez
do Poder. To be continued...
Ruy Gardnier
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