QUANDO A TELEVISÃO FAZ MONTAGEM
19/11/05, Barcelona 3, Real Madrid 0

Além da magnífica apresentação de Ronaldinho Gaúcho no chocolate que o Barcelona deu no Real Madrid, ganhando de 3 a 0 no dia 19 de novembro de 2005, uma outra coisa chamava a atenção de quem assistia ao jogo pela TV. Para o telespectador brasileiro, via de regra acostumado ao puro exibicionismo técnico das transmissões da Globo, uma outra forma de televisionar o futebol se fazia evidente. Quem acompanha o campeonato espanhol com alguma regularidade sabe que há alguns procedimentos já padronizados. Por exemplo: mostrar, sempre com o zoom, sempre mantendo um falso distanciamento, as reações dos presidentes dos clubes ao longo do jogo. Ou, e esse talvez seja o aspecto mais marcante, quando um time faz um gol, alternar imagens do jogador que comemora com imagens de jogadores do time adversário. No jogo do Real com o Barcelona, isso tinha um efeito suplementar, pois a cada gol que saía os rostos que se alternavam eram de jogadores mais que consagrados e famosos, eram algumas das principais estrelas do futebol atual. Havia ali tanto um star system se pondo em tensão quanto uma modalidade televisual que não se restringe ao olhar desmobilizado e antinarrativo das coberturas esportivas mais comuns e banais. Ao passar de um rosto a outro, percebíamos ascensões e quedas, faces gloriosas e outras já cansadas, desgastadas. De um Ronaldo a outro, dois momentos na vida de um craque – e tudo sendo representado em movimento, o que por si só define a natureza de um drama.

A transmissão esportiva, desse modo, vira local de dramaturgia: uma heterogeneidade se produz, uma imagem, quando adicionada à outra, introduz uma distância visual, gera o "entre-dois", o terceiro termo que é a relação entre dois outros termos justapostos. O que isso tem de extraordinário? Resumidamente, estaríamos falando do retorno de um intervalo entre imagens, uma espécie de ínterim invisível cuja recusa está precisamente na base de funcionamento da televisão. Quando um filme passa da tela de cinema para a TV, o que ele sempre corre o risco de perder é exatamente a faculdade de relacionar distâncias, de impor intervalos. Os termos técnicos apenas confirmam essa impossibilidade de intervalo na televisão: é preciso preencher o filme com fotogramas repetidos, cada segundo deve ter 30 e não 24 fotogramas. O continuum da TV é radical, não pode haver uma mínima pausa sequer; uma mínima travação da imagem – como aquele efeito de "flicagem" (experimentado quase como um defeito) que ocorre no cinema durante alguns movimentos de câmera prolongados – é o suficiente para trair toda a lógica televisiva de escoamento perpétuo. Uma tela preta no cinema, para usar o exemplo mais óbvio, cumpre uma variada gama de efeitos, discursivos ou estéticos. Na TV, contudo, uma tela preta nada mais é do que uma falha na transmissão, uma perda do sinal.

Porque a televisão, e aqui chegamos ao nó crucial, não pertence ao terreno do signo, mas da manutenção de um sinal. Ela participa de um processo de comunicação e de repetição. A difusão de suas imagens – do que a grade de programação é apenas um reflexo direto – não pode deixar buracos, não pode tolerar o silêncio nem a lacuna visual, e sim cultivar o primado do pleno-demais. Nada de ausência estruturante, a princípio. E com um adendo: o tipo de olhar que a televisão sustenta precisa de alguma maneira se emancipar do espaço. Todos os pontos de vista devem se equivaler: entre um close-up e um grande plano geral, diferença alguma se produz. Entre um punhado de azul e todo o oceano, pouco importa ao olhar televisivo invariável fazer a distinção. A TV não precisa adotar nem grandes nem pequenas distâncias, pois não está em jogo para ela um conflito de escalas ou de tomadas de vista. O olhar lhe interessa prioritariamente enquanto instrumento de leitura, de reconhecimento rápido de imagens em toda sua riqueza esquemática, sintética ou mesmo hipersignificante. Os canais compõem uma rede intermitente, ao contrário do diagrama de signos que o cinema precisa trabalhar no intuito de fabricar uma distância no seio das coisas e reconstruir o "real filmado" a partir de algo que não participa dele diretamente – algo cuja finalidade última é a ativação do fora-de-campo, a ficcionalização do não-visto.

O intervalo como mediador de um processo narrativo, portanto, não aparece na TV senão em casos isolados, como na sensacional transmissão de Barcelona e Real Madrid. O mais interessante dessa transmissão é o que ela nos revela sobre um sistema formal constituído, justamente lá – o evento esportivo – onde nenhuma regra de decupagem parecia possível. Em última análise, apreciar aquela montagem de closes e, não podemos esquecer, aquela rápida inclusão de uma imagem dos torcedores do Real aplaudindo o segundo gol de Ronaldinho, equivale a um elogio da decupagem clássica. Essa construção em nada se divorcia do efeito Kulechov e dos primeiros resultados dramáticos alcançados pela montagem cinematográfica. Enquanto isso, na imprensa esportiva brasileira, não há uma preocupação efetiva com a construção de um aparato não meramente técnico, mas principalmente narrativo (jogos de futebol são sempre grandes narrativas em potencial – nos melhores casos, verdadeiros épicos). Aqui se restringe à antiga tática discursiva da TV: exaustivos quadros de debate (e os canais a cabo hoje incrementam esse caldo quase a ponto de transbordá-lo) cumprem – às vezes muito bem, outras vezes com monotonia e repetição – a tarefa de discursar sobre o evento, que se esvazia na sua qualidade de objeto televisual à mesma proporção que cresce como matéria jornalística. O próprio nome do formato dos programas aponta ironicamente para seu caráter cíclico: mesa redonda. Sempre acrescer um texto à imagem, opinar sobre o já visto.

Mas houve um momento muito inspirado, no que diz respeito à manipulação de imagens, que me permitiu admirar uma transmissão recente do futebol brasileiro. No jogo entre Grêmio e Náutico, na rodada final da série B, o antigo recurso do split screen foi responsável por uma passagem antológica. Como o narrador do jogo do Grêmio não cansava de dizer, pensava-se que no estádio do Arruda, completamente lotado, os torcedores do Santa Cruz que assistiam a seu time vencendo a Portuguesa estariam a favor do Náutico, cuja partida acontecia no estádio dos Aflitos. Ou seja, acreditava-se numa união para que os dois times pernambucanos subissem juntos para a série A. Depois de todas as interrupções e confusões do jogo entre Náutico e Grêmio, houve aquele momento surreal da perda do segundo pênalti por parte do Náutico e, logo em seguida, o gol do Grêmio, marcado por Anderson, que praticamente encerrou o jogo e decidiu a segunda vaga. E qual não foi a surpresa (surpresa? Em futebol não pesa sempre a rivalidade? E esta não é naturalmente maior em se tratando de dois times do mesmo estado?) quando um precioso split screen dividiu a tela da TV para mostrar, em simultaneidade, o Grêmio derrotando o Náutico daquela forma inexplicável e o Arruda explodindo em festa com a torcida do Santa Cruz adorando a derrocada do rival. Um "ponto de virada" e tanto. A distância, naquele caso, foi trazida para o interior da imagem: ao mostrar duas ações que dividiam o mesmo tempo mas estavam separadas no espaço – e também nas aspirações dos seus "personagens" –, a TV superou sua inaptidão para o heterogêneo, recuperou uma imagem que "faz a diferença". Sem contar que foi um belo clímax para aquele filme burlesco e escrachado.

Esse episódio traiu uma tradição televisiva que, quando se trata de transmitir partidas de futebol, tende a pensar muito mais na suntuosidade do trabalho das câmeras do que na edição das imagens e no poder narrativo do evento. A grua atrás da baliza pode até render bons replays, mas na maior parte das vezes ela se ergue enquanto o goleiro está preparando um tiro de meta e termina no mesmo vazio em que havia começado o movimento. Acaba que tudo se soma num repertório de excelentes ferramentas bastante sub-utilizadas, a exemplo daquele travelling na lateral do campo, ou dos ângulos que variam sem qualquer princípio outro que não a ostentação novo-rica de espalhar câmeras pelo estádio. Os bons momentos lá estão, evidentemente. É muito interessante, para citar um procedimento já clássico, que o replay não sirva apenas para tirar uma dúvida de impedimento, havendo, sobretudo nas transmissões de jogos importantes na Globo e nas redes de TV européias, uma estetização do slow motion, um aspecto privilegiado do evento esportivo, quase sempre no sentido de fazer do tempo e do movimento um material plástico. Mas a verdade é que, num país que vive defendendo o futebol-arte, encarar a transmissão de um jogo de futebol como peça estética e dramatúrgica deveria ser uma tendência mais natural. Que o split screen retorne mais vezes, portanto.


Luiz Carlos Oliveira Jr.

 

 





Plano...

...e contraplano.