O PORTO DE OLIVEIRA
Douro, Faina Fluvial (1930), O Pintor e a Cidade (1956) e Porto da Minha Infância (2000)

Nem precisa matutar muito para concluir que a relação de Manoel de Oliveira com sua cidade-fetiche, o Porto, tem poucos paralelos no cinema contemporâneo. Em toda sua obra, e em certos filmes mais incisivamente, a experiência de morar naquela cidade, assim como o sentimento que ela desperta, é o motor auto-suficiente que move a criatividade do cineasta. Isso desde o primeiro filme, o curta Douro, Faina Fluvial, que apanha diversas atividades e diversos recantos típicos da cidade simplesmente para embaralhá-los na montagem e compor um pequeno jogo – bastante gráfico e bastante musical – formado de fragmentos que se somam indefinidamente, como uma exaustiva variação em torno de um tema (que é o tema da cidade e de sua vontade de apreendê-la mesmo em meio ao efêmero, ao instante qualquer). Douro é uma aceleração, um filme que, segundo o próprio Oliveira, representa bem seu impulso juvenil. Montado a partir de estilhaços de um espaço ou de uma ação que parecem sempre pedir uma duração maior, o filme reflete sua pressa, sua vontade de se antecipar ao tempo, ou melhor, de criar um tempo. Pois a montagem naqueles moldes, esfacelando a continuidade do plano para introduzir o conflito e o ritmo, justamente rejeita o tempo "oferecido" pelo mundo e fabrica um outro tempo, obrigatoriamente abstrato e impositivo. No tríptico que, observando hoje, esse filme forma com os posteriores O Pintor e a Cidade e Porto da Minha Infância, dois estonteantes médias-metragens (jamais houve necessidade de um longa para "explicar" o Porto), fica clara a questão do tempo como definidora daquilo que Oliveira expressa em relação à sua cidade natal.

O Pintor e a Cidade, sob esse aspecto da passagem do tempo e da não-permanência das coisas, surge como o filme literalmente intermediário, a experiência do meio, o caminho não exatamente para a maturidade, mas para uma nova percepção do tempo que se expressaria por completo em Porto da Minha Infância – uma aposta menos na sucessão temporal do que na acumulação de épocas, vozes e fatos. O signo pouco a pouco cede lugar ao traço, que – embora também exista no puro presente da imagem – preserva marcas que o remetem a um passado indefinido, conseguindo se tornar uma coisa nova na justa medida em que assume algo de primitivo na sua constituição. A noção de traço parece encontrar uma aplicação ainda mais direta – pela imediata associação com a técnica – na pintura, que implica outro regime de percepção e de representação do tempo, e que será justamente a ferramenta de contaminação estética que caberá como uma luva no filme que Oliveira fará reservando-se a modesta posição de um artista que, a exemplo dos pintores e dos poetas, se esforça na retribuição de uma beleza que o espaço em si já traz.

Conhecemos a equação godardiana plantada em Histoire(s) du cinéma: "com Edouard Manet começa a pintura moderna, ou seja, o cinematógrafo". E o desdobramento da sentença permanece ainda no terreno do já especulado: o cinema é a pintura continuada por outros meios, Lumière é o último pintor impressionista. Antes de dotar o cinema de um parentesco digno e até luxuoso, essa concepção darwiniana da evolução das formas de representação visual abre uma discussão não apenas sobre o dispositivo cinematográfico em si, mas principalmente sobre uma ou outra obra em particular. Como é o caso de O Pintor e a Cidade, filme de aproximação com uma ferramenta que Oliveira ainda não havia experimentado, já que esse foi seu primeiro filme colorido, feito com a intenção, acima de tudo, de experimentar. Para ele, no entanto, a cor e sua química vertiginosa não são objetos de um desafio técnico: não se trata de liberar a cor do toque, do artesanato, para reverenciá-la na "solidão de sua soberania automática" (cf. "Lumière au grand jour", artigo de Jean-Pierre Rehm em Cahiers du Cinéma nş 603). Muito pelo contrário: Oliveira compara seu trabalho em O Pintor e a Cidade, que podemos qualificar como contemplativo e intuitivo (e a intuição, para ele, nada mais é do que uma forma avançada de inteligência), às aquarelas do pintor António Cruz. Quando descobria a cor, e através dela a pregnância do instante registrado, Oliveira expunha menos a mestria de uma técnica calculada e bem-sucedida do que a "alquimia aproximativa" que tanto ele quanto o pintor tentavam equilibrar, pelo olhar e pela operação manual, junto à luz natural da cidade. O automatismo da câmera, sua capacidade objetiva, não rende aqui senão um documentarismo fantástico, uma presença alucinatória do real. Porque sair do ateliê/estúdio para criar ao ar livre não é necessariamente uma forma de se reaproximar da natureza nua, ou da representação "ao natural". Oliveira sabe disso desde que realizou Aniki-Bobó basicamente em externas, numa época em que nem se falava em neo-realismo e mesmo que se falasse não viria ao caso, pois o filme tinha em conta que, na sua estrutura, a pose e o artifício não abririam mão de seus acentos.

O Pintor e a Cidade, então, é feito ao ar livre, mas se compõe de uma sucessão de êxtases provocados por movimentos de conjunto (de carros, de pessoas, de roupas no varal) e por eventos cromáticos em alto relevo (a cor em alguns momentos praticamente se desprende da figura e ganha autonomia). Apesar de aberto e descontraído, o filme junta cacos de uma predisposição teórica que se vê diante de novos e estimulantes níveis de investigação: a duração como pedra de toque da imagem cinematográfica ("Eu descobri no Pintor e a Cidade que o tempo é um elemento muito importante"), o cinema e a pintura como gestos contíguos de resposta figurativa ao espaço, a câmera de cinema como o instrumento de uma promessa (ilusória?) de arquivar a vida moderna à mesma medida que viabiliza o reencontro afetivo entre o homem e a cidade. Em suma, uma ciência experimental rumo à abstração.

"É a primeira vez que eu volto as costas a um cinema de montagem", disse Oliveira sobre O Pintor e a Cidade. Mesmo? À montagem como etapa soberana do processo criativo, sem dúvida. Mas à montagem como um momento crucial na geração de sentido, de jeito nenhum, essa continua lá firme e forte. Por exemplo: a magnífica seqüência em que curtos planos de estátuas de figuras históricas importantes, que apontam o dedo para alguma direção, são justapostos a planos gerais da população que atravessa as ruas do Porto de modo a seguir – como que guiada por seus ancestrais – o lado indicado pela estátua. A História indica a direção que o presente deve tomar; toda a relação de Oliveira com o passado histórico parece se precipitar ali. O presente obedece à História, e esta nos chega pela montagem (a História não é mesmo corte, mudança, heterogeneidade?).

A narrativa de O Pintor e a Cidade evolui como uma soma de movimentos que se dispõem em blocos: primeiro são mostrados os deslocamentos dos carros, depois os das pessoas, do trem, das roupas no varal, das águas no rio Douro... Até terminar no movimento da cidade em si mesma, o movimento do próprio espaço em mutação permanente: diversas aquarelas de António Cruz, "tomadas" noturnas de uma mesma visão panorâmica da cidade, vão se revezando na tela por meio de fusões. Vemos as luzes que se apagam e se acendem, as construções que ficam no mesmo lugar e aquelas que desaparecem para ceder lugar a outras, o céu que "gira" para mostrar que o mundo caminha ligeiro, não pára sequer um segundo. Tudo conflui para a imagem final, uma tomada geral parecida, mas desta vez feita com a câmera de cinema, mostrando diversos letreiros luminosos que colorem a cintilante paisagem noturna do Porto.

Fazendo jus à cidade que não cessa de se transformar, o filme é um estudo, um filme em processo – assim como Douro, Faina Fluvial e Porto da Minha Infância. Três mergulhos na cidade do Porto, três reinvenções daquele espaço que rechaçam, cada uma à sua maneira, qualquer estaticidade ou coagulação temporal. Não há o projeto de uma obra futura a modelar previamente as imagens captadas; estas desfrutam um frescor inaudito, uma leveza que só o presente pode fornecer. Sempre que filma o passado, Oliveira encontra o presente. Porto da Minha Infância é o que mais enfatiza isso: uma experiência do tempo como palimpsesto, sobreposição de temporalidades que dão vida ao espaço. É o tempo da memória individual, mas também dos mitos de origem da cidade e do seu povo. O tempo dos artistas, dos poetas que habitam e habitaram o Porto. Uma ancestralidade que se dissolve no contemporâneo, para que um passeio de carro possa se igualar à navegação que uma pintura preserva e que se pode ver da janela do automóvel.

Vemos a casa em que Oliveira passou a infância, vemos ele jovem (interpretado pelo neto, Ricardo Trepa) montando seus primeiros filmes sobre uma mesa de sinuca, depois descobrindo os eflúvios da noite num bordel, conhecendo "os caminhos da prostituição", as paixões-relâmpago. Mas não é apenas de romances de ocasião que se constrói a cidade: há ainda os amores duradouros. Uma história pessoal que se conta assim, junto à cidade e suas obras de arte, pois Porto da Minha Infância trata também de uma arqueologia textual, um busca pelos rastros deixados por outros artistas (antigos e recentes). Da mesma forma que há trechos de Aniki-Bóbó, de 1942, há a encenação de Paz dos Reis (primeiro cineasta português) filmando a saída dos operários de uma fábrica, sua tradução da conhecida filmagem dos Lumière. O filme de Oliveira e o primeiro filme feito em Portugal se interceptam, se comunicam. Fagocitose afetiva do registro de Paz dos Reis, aquela cena ilustra o desejo de condensação que perpassa o filme (passado e presente juntos). Se em O Pintor e a Cidade era filmado o movimento do trem e depois o do carro, ou vice-versa, em Porto da Minha Infância as duas trajetórias cabem no mesmo plano, o trem atravessa a ponte de um lado a outro da imagem enquanto o fluxo de carros segue pela diagonal inferior do quadro. O Porto em 2001 obriga essa fascinante simultaneidade de deslocamentos e de velocidades – somente Godard havia filmado esse duplo tráfego urbano a dividir um mesmo plano de cinema com tamanha beleza (Prenom Carmen). Tudo passa, algumas coisas mais depressa que outras. E permanece a capacidade de Oliveira construir um mundo (o mundo) com apenas uma imagem: a luz do farol, ao final de Porto da Minha Infância, pisca como um vaga-lume. Tememos a possibilidade dela não voltar a acender, ao mesmo tempo em que temos a certeza de que ela sempre guiará as embarcações.


Luiz Carlos Oliveira Jr.

 

 





Douro, Faina Fluvial: tempo da montagem


O Pintor e a Cidade: tempo de passagem


Porto da Minha Infância: sobreposição de tempos