Nem
precisa matutar muito para concluir que a relação
de Manoel de Oliveira com sua cidade-fetiche, o Porto,
tem poucos paralelos no cinema contemporâneo.
Em toda sua obra, e em certos filmes mais incisivamente,
a experiência de morar naquela cidade, assim como
o sentimento que ela desperta, é o motor auto-suficiente
que move a criatividade do cineasta. Isso desde o primeiro
filme, o curta Douro, Faina Fluvial, que apanha
diversas atividades e diversos recantos típicos
da cidade simplesmente para embaralhá-los na
montagem e compor um pequeno jogo bastante gráfico
e bastante musical formado de fragmentos que se somam
indefinidamente, como uma exaustiva variação
em torno de um tema (que é o tema da cidade e
de sua vontade de apreendê-la mesmo em meio ao
efêmero, ao instante qualquer). Douro é
uma aceleração, um filme que, segundo
o próprio Oliveira, representa bem seu impulso
juvenil. Montado a partir de estilhaços de um
espaço ou de uma ação que parecem
sempre pedir uma duração maior, o filme
reflete sua pressa, sua vontade de se antecipar ao tempo,
ou melhor, de criar um tempo. Pois a montagem naqueles
moldes, esfacelando a continuidade do plano para introduzir
o conflito e o ritmo, justamente rejeita o tempo "oferecido"
pelo mundo e fabrica um outro tempo, obrigatoriamente
abstrato e impositivo. No tríptico que, observando
hoje, esse filme forma com os posteriores O Pintor
e a Cidade e Porto da Minha Infância,
dois estonteantes médias-metragens (jamais houve
necessidade de um longa para "explicar" o
Porto), fica clara a questão do tempo como definidora
daquilo que Oliveira expressa em relação
à sua cidade natal.
O Pintor e a Cidade, sob esse aspecto da passagem
do tempo e da não-permanência das coisas,
surge como o filme literalmente intermediário,
a experiência do meio, o caminho não exatamente
para a maturidade, mas para uma nova percepção
do tempo que se expressaria por completo em Porto
da Minha Infância uma aposta menos na sucessão
temporal do que na acumulação de épocas,
vozes e fatos. O signo pouco a pouco cede lugar ao traço,
que embora também exista no puro presente da
imagem preserva marcas que o remetem a um passado
indefinido, conseguindo se tornar uma coisa nova na
justa medida em que assume algo de primitivo na sua
constituição. A noção de
traço parece encontrar uma aplicação
ainda mais direta pela imediata associação
com a técnica na pintura, que implica outro
regime de percepção e de representação
do tempo, e que será justamente a ferramenta
de contaminação estética que caberá
como uma luva no filme que Oliveira fará reservando-se
a modesta posição de um artista que, a
exemplo dos pintores e dos poetas, se esforça
na retribuição de uma beleza que o espaço
em si já traz.
Conhecemos a equação godardiana plantada
em Histoire(s) du cinéma: "com Edouard
Manet começa a pintura moderna, ou seja, o cinematógrafo".
E o desdobramento da sentença permanece ainda
no terreno do já especulado: o cinema é
a pintura continuada por outros meios, Lumière
é o último pintor impressionista. Antes
de dotar o cinema de um parentesco digno e até
luxuoso, essa concepção darwiniana da
evolução das formas de representação
visual abre uma discussão não apenas sobre
o dispositivo cinematográfico em si, mas principalmente
sobre uma ou outra obra em particular. Como é
o caso de O Pintor e a Cidade, filme de aproximação
com uma ferramenta que Oliveira ainda não havia
experimentado, já que esse foi seu primeiro filme
colorido, feito com a intenção, acima
de tudo, de experimentar. Para ele, no entanto,
a cor e sua química vertiginosa não são
objetos de um desafio técnico: não se
trata de liberar a cor do toque, do artesanato, para
reverenciá-la na "solidão de sua
soberania automática" (cf. "Lumière
au grand jour", artigo de Jean-Pierre Rehm em Cahiers
du Cinéma nş 603). Muito pelo contrário:
Oliveira compara seu trabalho em O Pintor e a Cidade,
que podemos qualificar como contemplativo e intuitivo
(e a intuição, para ele, nada mais é
do que uma forma avançada de inteligência),
às aquarelas do pintor António Cruz. Quando
descobria a cor, e através dela a pregnância
do instante registrado, Oliveira expunha menos a mestria
de uma técnica calculada e bem-sucedida do que
a "alquimia aproximativa" que tanto ele quanto
o pintor tentavam equilibrar, pelo olhar e pela operação
manual, junto à luz natural da cidade. O automatismo
da câmera, sua capacidade objetiva, não
rende aqui senão um documentarismo fantástico,
uma presença alucinatória do real. Porque
sair do ateliê/estúdio para criar ao ar
livre não é necessariamente uma forma
de se reaproximar da natureza nua, ou da representação
"ao natural". Oliveira sabe disso desde que
realizou Aniki-Bobó basicamente em externas,
numa época em que nem se falava em neo-realismo
e mesmo que se falasse não viria ao caso, pois
o filme tinha em conta que, na sua estrutura, a pose
e o artifício não abririam mão
de seus acentos.
O Pintor e a Cidade, então, é feito
ao ar livre, mas se compõe de uma sucessão
de êxtases provocados por movimentos de conjunto
(de carros, de pessoas, de roupas no varal) e por eventos
cromáticos em alto relevo (a cor em alguns momentos
praticamente se desprende da figura e ganha autonomia).
Apesar de aberto e descontraído, o filme junta
cacos de uma predisposição teórica
que se vê diante de novos e estimulantes níveis
de investigação: a duração
como pedra de toque da imagem cinematográfica
("Eu descobri no Pintor e a Cidade que o
tempo é um elemento muito importante"),
o cinema e a pintura como gestos contíguos de
resposta figurativa ao espaço, a câmera
de cinema como o instrumento de uma promessa (ilusória?)
de arquivar a vida moderna à mesma medida que
viabiliza o reencontro afetivo entre o homem e a cidade.
Em suma, uma ciência experimental rumo à
abstração.
"É a primeira vez que eu volto as costas
a um cinema de montagem", disse Oliveira sobre
O Pintor e a Cidade. Mesmo? À montagem
como etapa soberana do processo criativo, sem dúvida.
Mas à montagem como um momento crucial na geração
de sentido, de jeito nenhum, essa continua lá
firme e forte. Por exemplo: a magnífica seqüência
em que curtos planos de estátuas de figuras históricas
importantes, que apontam o dedo para alguma direção,
são justapostos a planos gerais da população
que atravessa as ruas do Porto de modo a seguir como
que guiada por seus ancestrais o lado indicado pela
estátua. A História indica a direção
que o presente deve tomar; toda a relação
de Oliveira com o passado histórico parece se
precipitar ali. O presente obedece à História,
e esta nos chega pela montagem (a História não
é mesmo corte, mudança, heterogeneidade?).
A narrativa de O Pintor e a Cidade evolui como
uma soma de movimentos que se dispõem em blocos:
primeiro são mostrados os deslocamentos dos carros,
depois os das pessoas, do trem, das roupas no varal,
das águas no rio Douro... Até terminar
no movimento da cidade em si mesma, o movimento do próprio
espaço em mutação permanente: diversas
aquarelas de António Cruz, "tomadas"
noturnas de uma mesma visão panorâmica
da cidade, vão se revezando na tela por meio
de fusões. Vemos as luzes que se apagam e se
acendem, as construções que ficam no mesmo
lugar e aquelas que desaparecem para ceder lugar a outras,
o céu que "gira" para mostrar que o
mundo caminha ligeiro, não pára sequer
um segundo. Tudo conflui para a imagem final, uma tomada
geral parecida, mas desta vez feita com a câmera
de cinema, mostrando diversos letreiros luminosos que
colorem a cintilante paisagem noturna do Porto.
Fazendo jus à cidade que não cessa de
se transformar, o filme é um estudo, um
filme em processo assim como Douro, Faina Fluvial
e Porto da Minha Infância. Três mergulhos
na cidade do Porto, três reinvenções
daquele espaço que rechaçam, cada uma
à sua maneira, qualquer estaticidade ou coagulação
temporal. Não há o projeto de uma obra
futura a modelar previamente as imagens captadas; estas
desfrutam um frescor inaudito, uma leveza que só
o presente pode fornecer. Sempre que filma o passado,
Oliveira encontra o presente. Porto da Minha Infância
é o que mais enfatiza isso: uma experiência
do tempo como palimpsesto, sobreposição
de temporalidades que dão vida ao espaço.
É o tempo da memória individual, mas também
dos mitos de origem da cidade e do seu povo. O tempo
dos artistas, dos poetas que habitam e habitaram o Porto.
Uma ancestralidade que se dissolve no contemporâneo,
para que um passeio de carro possa se igualar à
navegação que uma pintura preserva e que
se pode ver da janela do automóvel.
Vemos a casa em que Oliveira passou a infância,
vemos ele jovem (interpretado pelo neto, Ricardo Trepa)
montando seus primeiros filmes sobre uma mesa de sinuca,
depois descobrindo os eflúvios da noite num bordel,
conhecendo "os caminhos da prostituição",
as paixões-relâmpago. Mas não é
apenas de romances de ocasião que se constrói
a cidade: há ainda os amores duradouros. Uma
história pessoal que se conta assim, junto à
cidade e suas obras de arte, pois Porto da Minha
Infância trata também de uma arqueologia
textual, um busca pelos rastros deixados por outros
artistas (antigos e recentes). Da mesma forma que há
trechos de Aniki-Bóbó, de 1942,
há a encenação de Paz dos Reis
(primeiro cineasta português) filmando a saída
dos operários de uma fábrica, sua tradução
da conhecida filmagem dos Lumière. O filme de
Oliveira e o primeiro filme feito em Portugal se interceptam,
se comunicam. Fagocitose afetiva do registro de Paz
dos Reis, aquela cena ilustra o desejo de condensação
que perpassa o filme (passado e presente juntos). Se
em O Pintor e a Cidade era filmado o movimento
do trem e depois o do carro, ou vice-versa, em Porto
da Minha Infância as duas trajetórias
cabem no mesmo plano, o trem atravessa a ponte de um
lado a outro da imagem enquanto o fluxo de carros segue
pela diagonal inferior do quadro. O Porto em 2001 obriga
essa fascinante simultaneidade de deslocamentos e de
velocidades somente Godard havia filmado esse duplo
tráfego urbano a dividir um mesmo plano de cinema
com tamanha beleza (Prenom Carmen). Tudo passa,
algumas coisas mais depressa que outras. E permanece
a capacidade de Oliveira construir um mundo (o
mundo) com apenas uma imagem: a luz do farol, ao final
de Porto da Minha Infância, pisca como
um vaga-lume. Tememos a possibilidade dela não
voltar a acender, ao mesmo tempo em que temos a certeza
de que ela sempre guiará as embarcações.
Luiz Carlos Oliveira Jr.
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