Feira das Vaidades, de
Mira Nair
Vanity Fair, Inglaterra/EUA, 2004
A ascensão e queda da alpinista social Becky Sharp que,
de origem pobre, filha de pais artistas, procura entrar
na restrita sociedade aristocrática inglesa do início
do século XIX (em pé de guerra com a burguesia cada
vez mais fortalecida), é possivelmente o romance mais
conhecido de William Makepeace Thackeray, também autor
de Barry Lyndon. Na adaptação para o cinema de
A Feira das Vaidades realizada por Mira Nair,
contudo, o senso trágico do escritor - que nasce do
conflito entre o valor individual e a sociedade arcaica
que privilegia o berço - se dilui no romance açucarado,
da mesma forma que a ironia fina e implacável que revela
a hipocrisia do ambiente cede lugar à carnavalização
dos cenários, das roupas e dos gestos. Nair, de fato,
estereotipa como ninguém sua Índia natal, em seqüências
grotescas cujo mau gosto somente é comparável ao dos
planos "artísticos" que pretendem resumir as idéias
contidas no filme (o pavão dos créditos iniciais, as
folhas de árvore no chão reviradas pelo vento, o teatro
de marionetes com que brinca a ainda criança Becky),
mas que guardam como sentido nada além da cafonice.
(Paulo Ricardo de Almeida)
Maria Bethânia – Música É Perfume,
de Georges Gachot
França/Suíça, 2005
Antes de ver o filme, uma passada na loja de discos
em frente. Alguns DVDs de Maria Bethânia à
venda. Atravessamos a rua, e o filme de Georges Gachot
funciona muito mais como um possível making-of
de um espetáculo – a turnê do disco Brasileirinho
–, ou seja, um extra de DVD, do que como um filme como
estamos acostumados a ver no cinema (ou seja, não
é nenhum Don’t Look Back, Year of the
Horse ou Gimme Shelter). Como não
poderia deixar de ser, todos os momentos com Maria Bethânia
cantando ou falando são adoráveis,. assim
como algumas participações especiais:
Dona Canô, Caetano Veloso. Mas toda hora em que
o diretor foge da cartilha institucional do documentário
musical ele se estrepa bem. O filme já começa,
por exemplo, mostrando meninos de rua e garis, ambos
negros, nas areias do Arpoador. Mais tarde, veremos
pessoas simples pegando ônibus do trabalho para
casa, populares tomando o bondinho de Santa Tereza,
um plano de um bar que é também uma barbearia,
ou planos das favelas cariocas. Maria Bethânia,
cantora das massas? MB, expressão profunda do
povo brasileiro, último avatar do populismo?
Ou então era simplesmente Gachot selecionando
momentos de sua bela viagem ao Brasil com sua câmera
turística? Preferimos achar, contra tudo isso,
que é – e a ausência de ricos ou de luxo
nas ruas, e/ou de burgueses empetecados passando pelas
ruas engarrafadas de ipanema só comprova isso
– simplesmente o apelo de quem quer vender uma determinada
imagem exótica do país para fora. É
o que os olhares estrangeiros querem? Daremos exatamente
isso. Nenhum elemento decifrador da música de
Maria Bethânia – embora o produtor Jaime Alem
dê um testemunho precioso sobre seu trabalho com
ela – e apenas uma ratificação da imagem
do país para olhos turísticos, mas o encantamento
da cantora ainda resiste a esse Música É
Perfume. (Ruy Gardnier)
Mergulho Radical, de John Stockwell
Into the Blue, EUA, 2005
Embora observar as habilidades de cineastas-artesões
seja sempre interessante, pouco atrai em Mergulho
Radical - à parte o fato do material que
o originou ser um filme de Peter Yates, O Fundo do
Mar. O ambiente das profundezas do mar e as excentricidades
à sua volta dão o tom na primeira metade,
com a câmera se deixando seduzir por mergulhos
longos dentro d’água e efeitos bastante estranhos
sendo utilizados para dar um aspecto mais exótico
para o fundo do mar. Stockwell não compromete,
mas também não impressiona no ato de encenar,
deixando que as paisagens o carreguem, vez ou outra
apostando no elenco como um acompanhamento cômico
para as imagens que propõe. Acontece que, em
dado momento, o filme sofre uma virada drástica
de tom e forma, com o cineasta abandonando o mar e abraçando
as perseguições e reviravoltas da trama.
O que poderia ser uma injeção de vida
num filme até então em tom morno, apresenta
um cineasta bem menos seguro, perdido com os tempos,
acima de tudo. Preocupado em caminhar com o roteiro
cheio de viradas, Stockwell sequer é capaz de
encenar as repentinas e constantes mudanças da
trama de forma compreensível. Incapaz de montar
dois planos que demonstrem algum grau de interesse em
terem sido rodados, fica difícil nutrir qualquer
emoção por este filme. (Guilherme Martins)
Quase Um Segredo, de Jacob Aaron Estes.
Mean Creek, 2004, EUA
A frase "guinchar como um porco" é
dita em Quase Um Segredo. Trata-se de referência
à cena de Amargo Pesadelo, na qual o personagem
de Ned Beatty, descendo o rio com os amigos, acaba estuprado
por dois caipiras. O primeiro longa-metragem de Jacob
Aaron Estes guarda com o filme de John Boorman, entretanto,
apenas a presença do curso d’água, uma
vez que, se neste a violência inerente à
natureza desperta nos homens os instintos mais brutais
adormecidos por milênios de civilização,
naquele as crueldades praticadas pelos jovens protagonistas
nascem espontaneamente – por assim dizer, do fundo da
alma. Ao contrário dos adolescentes de Larry
Clarke (cujo Bully possui a mesma trama a respeito
do grupo de amigos que deseja se livrar do outro indesejável),
que constróem seus próprios códigos
de conduta, de moral e de comportamento para não
entrarem no mundo dos adultos, os de Jacob Aaron Estes
somente reproduzem em escala microscópica a sordidez
da realidade que os cerca, fruto da omissão de
pais irresponsáveis. Enquanto em Clark a juventude
confronta e se rebela contra os adultos, em Quase
um Segredo submete-se a eles: no lugar da força
libertadora do sexo sugerida por Ken Park, resta
a culpa, gerada pela força da Lei e pela vida
em sociedade. (Paulo Ricardo de Almeida)
Quem Somos Nós?, de Mark Vicente, William
Arntz e
Betsy Chasse
What the bleep do we (k)now!?, EUA, 2004
Estruturado entre ficção e documentário
– na verdade alguns depoimentos de cientistas – este
longa se propõe como um estudo sobre a existência
do mundo, a partir de um ponto de vista científico.
Diversos efeitos de imagem tentam aproximar o olhar
humano comum a um olhar vindo da ciência – através
de partes da imagem que congelam, animações
que se misturam, elementos que se fundem em cena, etc.
Toda a ficção parece montada de forma
a reforçar o discurso dos cientistas, com a lógica
de aplicar à vida real estas noções
de física. Só que é tudo encaixado
de tal forma que a ficção em si daria
conta de boa parte destas noções, ou ao
menos a parte delas que realmente parece interessar
– como se os cineastas se intimidassem diante do diálogo
dos cientistas. O mais curioso da ficção
aqui usada é ver como algo que deveria soar como
um exemplo prático de uma teoria, soa como qualquer
coisa menos algo em que se acredite. É tudo filmado
com alguma distância, usando momentos de texturas
mais granuladas, como se se buscasse aproximar a encenação
de uma visão documental. As opções
de encenação no entanto são tudo
menos próximas de uma idéia de cinema
direto, com fades, closes, travellings e afins.
Exceção feita a existência de uns
poucos trechos do depoimento de um cientista específico,
que possui tanta noção de fala e postura
de câmera (gesticulando, sempre consciente de
onde está a lente) que chega a ser cativante,
há muito, muito pouco aqui. E para um filme que
se propõe fazer pensar, Quem Somos nós?
é na verdade um filme que não permite
pensar, apresentando todo o seu discurso e teoria de
forma mastigada e verborrágica, com os teóricos
falando ininterruptamente, sem nos dar chance de respirar.
(Guilherme Martins)
Sou Feia Mas Tô na Moda, de Denise Garcia
Brasil, 2005
Denise Garcia revela duas grandes qualidades neste
trabalho: primeiro de tudo, um olhar sobre o universo
escolhido (o funk) que não tenta enquadrá-lo
vindo nem de cima ("piedoso"), nem debaixo
("endeusador"). A segunda qualidade, que é
claramente uma conseqüência desta primeira,
é a de conseguir extrair daqueles que entrevista
uma intimidade e uma confiança que levam aos
melhores momentos do filme. Atirando para vários
lados ao mesmo tempo (contar uma breve história
do funk no Rio de Janeiro, mapear a geografia
da criação deste hoje, traçar os
paralelos do movimento com a questão social,
cultural e de gêneros), o filme consegue na sua
curta duração dar conta de quase todos
eles satisfatoriamente (o que não é desafio
pequeno). E em dois momentos, mostra que é muito
mais do que apenas uma reportagem bem realizada, ao
esticar o tempo do plano e buscar sentidos políticos
neste movimento (quando Cidinho e Doca cantam à
capela o "Rap da Felicidade", e quando o taxista
de Gana escuta o funk no seu rádio do
carro, em Londres). São belos momentos que providenciam
a cereja no topo deste documentário que é
ainda um libelo pela produção independente,
fruto do desejo de falar de algo mesmo que não
haja intere$$e direto de patrocinadores no tema. (Eduardo
Valente)
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