PARTY (1996)

Manoel de Oliveira, à maneira de Jean Renoir em seu célebre A Regra do Jogo e em diversos outros filmes, retrata, em Party, os jogos de amor da burguesia. Mas inicia seu filme com uma picardia muito especial para quem conhece seu filme imediatamente anterior, O Convento: um letreiro (na verdade a letra da canção que Irene Papas canta em grego, vertida para o português) informa que convém lembrar que à beira-mar é preciso cuidado, depois segue "À Beira do mar revolto as ondas vão-te apanhar e tu vais-te perder". Como no outro filme, que se encerra com os dizeres de advertência sobre os perigos de se acreditar em histórias do litoral, Party se envolve todo nesse envolvente simulacro lúdico, como se os personagens fossem meros joguetes. Aí entra a maestria do diretor. Seu filme trata de pessoas que se comportam primeiramente à maneira de fantoches, para depois, e só depois de alguns incômodos, desses que costumam ser dissimulados pela alta sociedade, se revelarem como pessoas, complexas e fascinantes.

Um casal (Leonor Silveira e Rogério Samora) reúne convidados chiques para uma festa no jardim de sua casa. Entre eles se encontra um casal (Irene Papas e Michel Piccoli), que passa boa parte da jornada na companhia do casal anfitrião. Falam de jogos de amor, das impossibilidades de se entender o sexo oposto, do infortúnio do mistério na vida de um casal. Michel e Leonor (os nomes dos personagens correspondem aos dos atores) somem por horas, alimentando as desconfianças de seus cônjuges. Na volta, a conversa adquire tons mais apimentados, as ironias dominam.

Oliveira filma os diálogos, como sempre, com interesse invulgar. Quer mesmo entender as provocações, os chistes trocados de lado a lado. A opção por um ator galhardeiro como Michel Piccoli já dá um sinal de que o filme enveredaria por uma vertente bem-humorada, e até mesmo zombeteira. Irene Papas seria o contraponto, o alicerce da alta sociedade, a mais clara representação de elegância. Leonor Silveira é mais uma vez a imagem da mulher a que todos aspiram, uma mulher sublime, e que homem algum deve menosprezar. Seu marido às vezes parece incorrer nesse erro. Por isso, a brecha está aberta, e é inevitável a aproximação de outros homens.

Na introdução do casal Michel/Irene, acontece também a introdução da língua francesa, que irá predominar no restante do filme. Rogério reclama da saia indecente de Leonor, ao que esta responde que o primeiro que a achar indecente vai lhe dizer que ela está encantadora. Surge Michel, dizendo exatamente isso em francês. Oliveira nos instaura no estopim para tudo que virá a seguir. Está aberta a temporada de caça, e Michel é daqueles caçadores insistentes, galanteador com uma forte pitada de sarcasmo. Irene conhece muito bem o seu marido, e sabe que quando ele some com Leonor, algo de muito sacana está fazendo. Rogério também sente a potencial traição, mas parece mais interessado em desviar sua atenção para os outros convidados, em especial para uma garota com uma saia muito mais curta que a de sua mulher.

Em um jantar de reencontro dos casais, cinco anos depois, o clima esquenta, e dá pra notar o quanto a relação de cada casal está desgastada. Mas talvez esse desgaste não seja definitivo, e a encenação de Oliveira, privilegiando os olhares entre eles, muitas vezes tendo que se desviar de portentosos objetos, um luxo exagerado a distanciá-los, demonstra que as relações podem ter sua sáida, desde que se abandone o trivial. E aqui, a conexão por vezes misteriosa que ocorre entre os filmes do diretor se dá de uma maneira bem inusitada. Em O Espelho Mágico, adaptado, como Party, de uma obra de Agustina Bessa-Luis, o marido diz à mesma Leonor Silveira: "até a eternidade faremos tudo, menos o trivial". Justamente o trivial, o piloto automático ligado por Rogério, que insistia em deixar em banho maria o relacionamento dele com Leonor.

Depois que os chistes se transformam em declarações adúlteras, Irene toma a dianteira na quebra do trivial, e praticamente deixa aberta a possibilidade de um ménage à trois. Michel recua diante dessa audácia e retorna à paz do matrimônio, impressionado com a nova faceta revelada por sua antiga esposa. Leonor, que resolve ficar, ouve do marido a sentença: "seria melhor que você tivessse ido embora, pois estou completamente falido". Segue um plano em que tudo é tomado pela escuridão. Nada se vê, e parece mesmo que o filme terminaria, com os créditos subindo vagarosamente. Mas o plano escuro se revela um contra-plano, assim que Leonor dá meia-volta, deixando-se iluminar pela luz fraca que vem de dentro da casa.

Trata-se de um efeito visto comumente nos filmes do diretor, desde Benilde, em que um personagem aparece na porta a ouvir a história. Ele estava lá o tempo todo, mas a luz só incide nele depois que ele dá um passo a frente. Em Amor de Perdição acontece na janela da casa vizinha, e em outro momento na prisão. Em O Dia do Desespero há uma cena parecida com a de Benilde, mas envolvendo o espectro de Camilo Castelo Branco, em um espaço emoldurado por uma cortina. Mas é em Francisca que o efeito tem o melhor uso: quando a personagem título está no leito de morte, em um longo plano em que só minutos depois percebemos a presença de seu marido, que estava ajoelhado, escondido na sombra, à beira da cama.

Em todos os seus filmes, seja com Renato Berta na fotografia (Party, O Princípio da Incerteza, O Espelho Mágico), ou com Mário Barroso (Vale Abraão, O Dia do Desespero, O Convento), ou Manuel Costa e Silva (Amor de Perdição), ou Elso Roque (Francisca, O Sapato de Cetim), a preocupação com a simetria do quadro, e com a pouca incidência de luz é absurda, e deixa suas imagens com uma identidade muito forte. Em Party, essa opção se encontra sobretudo na segunda parte, com o casarão de Leonor e Rogério fazendo às vezes de uma imensa cripta, onde os sentimentos adormecem até um estado letárgico.

Voltando ao contra-plano na escuridão: é justamente nesse estado letárgico que ele parecia mergulhado. Porém, com a revelação de que o filme ainda não havia terminado, e que Leonor estava no centro do plano, ouvimos sua resposta em um belo e cantado português: "É a coisa mais excitante que você me disse até hoje". Temos então mais um casal recuperado pela quebra do trivial. Mas Oliveira ainda nos reserva um verdadeiro momento Jerry Lewis, com o marido indo apanhar a mala dela que havia ficado na chuva. Primeiro ele escorrega ridiculamente, depois a mala se abre, espalhando todas as roupas, em seguida ele tem problemas para passar pela porta com o guarda-chuva. Depois, só um fechar de portas que sugere uma longa noite de sexo entre os dois, enquanto a chuva cai sem tréguas. Termina assim mais uma deliciosa subversão de Manoel de Oliveira.


Sérgio Alpendre

 

 





Rogério Samora, Leonor Silveira,
Michel Piccoli e Irene Papas em Party


Irene Papas, Michel Piccoli e Rogério Samora em Party