Manoel
de Oliveira, à maneira de Jean Renoir em seu
célebre A Regra do Jogo e em diversos
outros filmes, retrata, em Party, os jogos de
amor da burguesia. Mas inicia seu filme com uma picardia
muito especial para quem conhece seu filme imediatamente
anterior, O Convento: um letreiro (na verdade
a letra da canção que Irene Papas canta
em grego, vertida para o português) informa que
convém lembrar que à beira-mar é
preciso cuidado, depois segue "À Beira do mar
revolto as ondas vão-te apanhar e tu vais-te
perder". Como no outro filme, que se encerra com os
dizeres de advertência sobre os perigos de se
acreditar em histórias do litoral, Party
se envolve todo nesse envolvente simulacro lúdico,
como se os personagens fossem meros joguetes. Aí
entra a maestria do diretor. Seu filme trata de pessoas
que se comportam primeiramente à maneira de fantoches,
para depois, e só depois de alguns incômodos,
desses que costumam ser dissimulados pela alta sociedade,
se revelarem como pessoas, complexas e fascinantes.
Um casal (Leonor Silveira e Rogério Samora) reúne
convidados chiques para uma festa no jardim de sua casa.
Entre eles se encontra um casal (Irene Papas e Michel
Piccoli), que passa boa parte da jornada na companhia
do casal anfitrião. Falam de jogos de amor, das
impossibilidades de se entender o sexo oposto, do infortúnio
do mistério na vida de um casal. Michel e Leonor
(os nomes dos personagens correspondem aos dos atores)
somem por horas, alimentando as desconfianças
de seus cônjuges. Na volta, a conversa adquire
tons mais apimentados, as ironias dominam.
Oliveira filma os diálogos, como sempre, com
interesse invulgar. Quer mesmo entender as provocações,
os chistes trocados de lado a lado. A opção
por um ator galhardeiro como Michel Piccoli já
dá um sinal de que o filme enveredaria por uma
vertente bem-humorada, e até mesmo zombeteira.
Irene Papas seria o contraponto, o alicerce da alta
sociedade, a mais clara representação
de elegância. Leonor Silveira é mais uma
vez a imagem da mulher a que todos aspiram, uma mulher
sublime, e que homem algum deve menosprezar. Seu marido
às vezes parece incorrer nesse erro. Por isso,
a brecha está aberta, e é inevitável
a aproximação de outros homens.
Na introdução do casal Michel/Irene, acontece
também a introdução da língua
francesa, que irá predominar no restante do filme.
Rogério reclama da saia indecente de Leonor,
ao que esta responde que o primeiro que a achar indecente
vai lhe dizer que ela está encantadora. Surge
Michel, dizendo exatamente isso em francês. Oliveira
nos instaura no estopim para tudo que virá a
seguir. Está aberta a temporada de caça,
e Michel é daqueles caçadores insistentes,
galanteador com uma forte pitada de sarcasmo. Irene
conhece muito bem o seu marido, e sabe que quando ele
some com Leonor, algo de muito sacana está fazendo.
Rogério também sente a potencial traição,
mas parece mais interessado em desviar sua atenção
para os outros convidados, em especial para uma garota
com uma saia muito mais curta que a de sua mulher.
Em um jantar de reencontro dos casais, cinco anos depois,
o clima esquenta, e dá pra notar o quanto a relação
de cada casal está desgastada. Mas talvez esse
desgaste não seja definitivo, e a encenação
de Oliveira, privilegiando os olhares entre eles, muitas
vezes tendo que se desviar de portentosos objetos, um
luxo exagerado a distanciá-los, demonstra que
as relações podem ter sua sáida,
desde que se abandone o trivial. E aqui, a conexão
por vezes misteriosa que ocorre entre os filmes do diretor
se dá de uma maneira bem inusitada. Em O Espelho
Mágico, adaptado, como Party, de uma
obra de Agustina Bessa-Luis, o marido diz à mesma
Leonor Silveira: "até a eternidade faremos tudo,
menos o trivial". Justamente o trivial, o piloto automático
ligado por Rogério, que insistia em deixar em
banho maria o relacionamento dele com Leonor.
Depois que os chistes se transformam em declarações
adúlteras, Irene toma a dianteira na quebra do
trivial, e praticamente deixa aberta a possibilidade
de um ménage à trois. Michel recua diante
dessa audácia e retorna à paz do matrimônio,
impressionado com a nova faceta revelada por sua antiga
esposa. Leonor, que resolve ficar, ouve do marido a
sentença: "seria melhor que você tivessse
ido embora, pois estou completamente falido". Segue
um plano em que tudo é tomado pela escuridão.
Nada se vê, e parece mesmo que o filme terminaria,
com os créditos subindo vagarosamente. Mas o
plano escuro se revela um contra-plano, assim que Leonor
dá meia-volta, deixando-se iluminar pela luz
fraca que vem de dentro da casa.
Trata-se de um efeito visto comumente nos filmes do
diretor, desde Benilde, em que um personagem
aparece na porta a ouvir a história. Ele estava
lá o tempo todo, mas a luz só incide nele
depois que ele dá um passo a frente. Em Amor
de Perdição acontece na janela da
casa vizinha, e em outro momento na prisão. Em
O Dia do Desespero há uma cena
parecida com a de Benilde, mas envolvendo o espectro
de Camilo Castelo Branco, em um espaço emoldurado
por uma cortina. Mas é em Francisca que
o efeito tem o melhor uso: quando a personagem título
está no leito de morte, em um longo plano em
que só minutos depois percebemos a presença
de seu marido, que estava ajoelhado, escondido na sombra,
à beira da cama.
Em todos os seus filmes, seja com Renato Berta na fotografia
(Party, O Princípio da Incerteza,
O Espelho Mágico), ou com Mário
Barroso (Vale Abraão, O Dia do Desespero,
O Convento), ou Manuel Costa e Silva (Amor
de Perdição), ou Elso Roque (Francisca,
O Sapato de Cetim), a preocupação
com a simetria do quadro, e com a pouca incidência
de luz é absurda, e deixa suas imagens com uma
identidade muito forte. Em Party, essa opção
se encontra sobretudo na segunda parte, com o casarão
de Leonor e Rogério fazendo às vezes de
uma imensa cripta, onde os sentimentos adormecem até
um estado letárgico.
Voltando ao contra-plano na escuridão: é
justamente nesse estado letárgico que ele parecia
mergulhado. Porém, com a revelação
de que o filme ainda não havia terminado, e que
Leonor estava no centro do plano, ouvimos sua resposta
em um belo e cantado português: "É a coisa
mais excitante que você me disse até hoje".
Temos então mais um casal recuperado pela quebra
do trivial. Mas Oliveira ainda nos reserva um verdadeiro
momento Jerry Lewis, com o marido indo apanhar a mala
dela que havia ficado na chuva. Primeiro ele escorrega
ridiculamente, depois a mala se abre, espalhando todas
as roupas, em seguida ele tem problemas para passar
pela porta com o guarda-chuva. Depois, só um
fechar de portas que sugere uma longa noite de sexo
entre os dois, enquanto a chuva cai sem tréguas.
Termina assim mais uma deliciosa subversão de
Manoel de Oliveira.
Sérgio Alpendre
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