Não
deixa de ser, não somente curioso, mas também essencial
para uma análise, considerar que, assim como na versão
original, Primavera Para Hitler (1968), que marcava
a estréia na direção cinematográfica de Mel Brooks,
até então com longa experiência como roteirista de televisão,
em Os Produtores temos o primeiro filme assinado
pela encenadora e coreógrafa teatral Susan Stroman.
Além da trajetória singular que cumpre o texto escrito
por Brooks – um filme, produção de pequeno porte, cuja
permanência no imaginário ao longo dos tempo leva seu
autor a transformá-lo, mais de 30 anos depois, em um
musical gigantesco, como não poderia deixar de ser nos
moldes da Broadway, e que retorna ao cinema absorvendo
esse novo formato – fica claro observar eu ambas as
versões refletem essencialmente as linguagens dos meios
a que seus diretores se dedicavam antes de dirigi-los.
Voltando ao filme de 68, vemos que Mel Brooks concebeu
a maior parte das seqüências de deu debut cinematográfico
como esquetes cômicos de TV. Isso fica marcante já na
primeira cena, que traz o encontro entre o produtor
picareta Max Bialystock (Zero Mostel) e o contador Leo
Bloom (Gene Wilder): diálogos ágeis e uma câmera que
pouco se movimenta confinada a um cenário exíguo. Esse
expediente se repete diversas vezes ao longo do filme.
Tudo parece compensar, não somente a pouca experiência
de Brooks com o cinema - aparentemente desejando não
se arriscar, trabalhando ao máximo com uma linguagem
que domina - mas também um orçamento limitado da produção.
Susan Stroman, por sua vez, faz de Os Produtores,
que dirigira no palco seguindo roteiro, concepção e
trilha de canções assinadas por Brooks, uma transposição
do espetáculo musical de forma quase sempre literal.
A maior parte do tempo, Stroman mimetiza com a câmera
o ponto de vista de um espectador de teatro, na certa
considerando num registro correspondente as limitações
que parecem ter regido a direção de Brooks em Primavera
Para Hitler. O que se faz mais surpreendente é que,
contrariando a norma quase universal de que a opção
pelo que se convencionou chamar de “teatro filmado”
via de regra resultaria em uma realização limitada,
e por isso pouco eficaz, sob o ponto de vista cinematográfico,
no caso específico de Os Produtores isso acaba
pesando mais que positivamente para o resultado final.
O filme consegue reproduzir de forma rara a sensação
de se assistir a um musical no teatro. Sobra espaço
para as atuações e números musicais fluírem com naturalidade.
Câmera e cortes da montagem respeitam as coreografias,
por sinal sempre relativamente simples e que visam mais
um efeito cômico que o impacto virtuosístico de números
criados, por exemplo, por um Bob Fosse. Desse modo,
pensando-o estritamente como musical, temos um resultado
bastante mais eficiente do que o atingido por Chicago
(2002) de Rob Marshall, onde enquadramentos e montagem
simplesmente mutilavam o efeito conjunto das coreografias
e os passos dos dançarinos.
Não há, entretanto, como negar, que o filme demora um
pouco a dizer ao que veio. Após um número de abertura
curioso, passado na porta de um teatro e que traz à
memória a primeira seqüência de My Fair Lady,
temos uma reprodução quase literal do primeiro contato
entre Bialystock e Bloom (agora Nathan Lane e Matthew
Broderick, repetindo os papéis do teatro). Para quem
conhece o original, paira um clima de deja vu
no ár. Não somente do roteiro, mas também na composição
de Broderick que copia de forma gritante os trejeitos
criados por Gene Wilder. Nathan Lane, por sua vez, se
não faz um Bialystock de todo novo, já tem ao menos
um jogo de cintura suficiente para não se assombrar
pelo fantasma de seu predecessor, pois já compusera
anteriormente em versões para o palco personagens consagrados
por Zero Mostel: os protagonistas de Um Violinista
no Telhado e Um Escravo das Arábias em Roma.
Mas logo ao fim dessa longa cena, surge o número musical
“We Can Do It” e Os produtores começa a definir
sua própria identidade.
O número seguinte, quando Leo Bloom assume sua liberação
da vida medíocre de contador – assim como Matthew Broderick,
que a partir daí manifesta, em especial nas seqüências
musicais, seu talento cômico - e declara “I Wanna Be
a Producer” é ao mesmo tempo o mais interessante e o
que melhor define o espírito do filme. Sua fonte de
inspiração são as coreografias criadas nos anos 30 pelo
gênio Busby Berkeley, em especial as do filme Rua
42 (1933), só que Stroman não tem a pretensão de
reproduzi-la de forma pomposa. Há sempre algum elemento
desajeitado e distoante - aqui uma corista feiosa que
nunca consegue coordenar seus passos – a lembrar que
estamos diante de uma comédia, distante conscientemente
do glamour original. Como esse, os demais números reproduzem,
sem deboche escancarado, mas utilizando uma linguagem
de pastiche que perfaz uma homenagem bem-humorada, diversos
momentos de cinema e teatro musicais. Se já citamos
My Fair Lady e Busby Berkeley, vemos daí por
diante a memória de Vitor ou Vitória? em “Keep
it Gay”, Marilyn Monroe em Os Homens Preferem as
Louras na apresentação de Ulla (Uma Thurman), A
Chorus Line na seleção do intérprete de Hitler,
terminando em Bob Fosse com “Prisioners of Love”. Sem
contar o dueto no qual Broderick e Thurman dançam à
maneira de Fred Astaire e Ginger Rogers desprovidos,
como era de se esperar, da leveza de suas matrizes,
mas mantendo uma graça à sua própria maneira.
Pensando o filme mais estritamente em sua porção comédia,
Os Produtores preserva fielmente o espírito de
Primavera para Hitler, aprimorando por vezes
alguns de seus aspectos. O filme de 68, por sua curta
duração (90 min) e por sua estrutura de esquetes, apresentava
personagens e situações que deixavam claramente a impressão
de que poderiam render algo mais. É o que a nova versão
consegue fazer, explorando de forma bem mais engraçada
figuras como o escritor nazista Franz Liebkind (recriado
de forma hilária por Will Ferrell, o maior ator cômico
de nossos tempos) e o diretor Roger De Bris (Gary Beach,
em outra composiçao admirável). Espertamente, por outro
lado, foram eliminadas as referências datadas, como
o LSD do primeiro filme, engraçadíssimo mas com os dois
pés fincados nos anos 60. Se então já era bastante corajoso
o fato de Brooks fazer humor com elementos de nazismo
e exploração de velhinhas, a ditadura do politicamente
correto que assombra os EUA a partir da década de 90
tornaria temerária uma possível regressão quanto ao
humor grosseiro que caracteriza o autor. Mas, felizmente,
ainda estão aí, às vezes até de forma ampliada, os nazistas,
as bichonas e Ulla, a assumida quintessência da mulher-objeto.
E as velhinhas rendem número musical mais original de
Os Produtores: a impagável dança dos andadores,
criada a partir de uma breve piada de fundo de cena
já presente em A Última Loucura de Mel Brooks
(1976).
Um certo anticlimax, que não chega a ofuscar os méritos
do filme, surge nos 20 minutos finais de Os Produtores.
Após a apresentação da peça as situações que levam à
conclusão do filme parecem por vezes um pouco alongadas.
Mas não há como não se render ao número de Bialystock
na cadeia, onde Nathan Lane dá asas a sua genialidade
recriando todo o filme em poucos minutos. Se um gosto
de pieguice parece estar sugerido no final do julgamento
com a canção “’Till Him”, fica também o clima de uma
ambigiudade no estilo de Billy Wilder – que já estivera
presente em outros momentos do filme, como no escritório
dos contadores, reminiscência de Se Meu Apartamento
Falasse – com um Bloom que guarda certos elementos
do Jack Lemmon de Quanto Mais Quente Melhor.
É com essa prazerosa sucessão de momentos altos (muitos)
e medianos (poucos) que Os Produtores consegue
ser a melhor comédia musical que o cinema apresentou
desde 1982, ano em que Blake Edwards nos trouxe Vitor
ou Vitória?.
Gilberto Silva Jr.
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