OS PRODUTORES
Susan Stroman, The Producers, EUA, 2005

Não deixa de ser, não somente curioso, mas também essencial para uma análise, considerar que, assim como na versão original, Primavera Para Hitler (1968), que marcava a estréia na direção cinematográfica de Mel Brooks, até então com longa experiência como roteirista de televisão, em Os Produtores temos o primeiro filme assinado pela encenadora e coreógrafa teatral Susan Stroman. Além da trajetória singular que cumpre o texto escrito por Brooks – um filme, produção de pequeno porte, cuja permanência no imaginário ao longo dos tempo leva seu autor a transformá-lo, mais de 30 anos depois, em um musical gigantesco, como não poderia deixar de ser nos moldes da Broadway, e que retorna ao cinema absorvendo esse novo formato – fica claro observar eu ambas as versões refletem essencialmente as linguagens dos meios a que seus diretores se dedicavam antes de dirigi-los.

Voltando ao filme de 68, vemos que Mel Brooks concebeu a maior parte das seqüências de deu debut cinematográfico como esquetes cômicos de TV. Isso fica marcante já na primeira cena, que traz o encontro entre o produtor picareta Max Bialystock (Zero Mostel) e o contador Leo Bloom (Gene Wilder): diálogos ágeis e uma câmera que pouco se movimenta confinada a um cenário exíguo. Esse expediente se repete diversas vezes ao longo do filme. Tudo parece compensar, não somente a pouca experiência de Brooks com o cinema - aparentemente desejando não se arriscar, trabalhando ao máximo com uma linguagem que domina - mas também um orçamento limitado da produção.

Susan Stroman, por sua vez, faz de Os Produtores, que dirigira no palco seguindo roteiro, concepção e trilha de canções assinadas por Brooks, uma transposição do espetáculo musical de forma quase sempre literal. A maior parte do tempo, Stroman mimetiza com a câmera o ponto de vista de um espectador de teatro, na certa considerando num registro correspondente as limitações que parecem ter regido a direção de Brooks em Primavera Para Hitler. O que se faz mais surpreendente é que, contrariando a norma quase universal de que a opção pelo que se convencionou chamar de “teatro filmado” via de regra resultaria em uma realização limitada, e por isso pouco eficaz, sob o ponto de vista cinematográfico, no caso específico de Os Produtores isso acaba pesando mais que positivamente para o resultado final. O filme consegue reproduzir de forma rara a sensação de se assistir a um musical no teatro. Sobra espaço para as atuações e números musicais fluírem com naturalidade. Câmera e cortes da montagem respeitam as coreografias, por sinal sempre relativamente simples e que visam mais um efeito cômico que o impacto virtuosístico de números criados, por exemplo, por um Bob Fosse. Desse modo, pensando-o estritamente como musical, temos um resultado bastante mais eficiente do que o atingido por Chicago (2002) de Rob Marshall, onde enquadramentos e montagem simplesmente mutilavam o efeito conjunto das coreografias e os passos dos dançarinos.

Não há, entretanto, como negar, que o filme demora um pouco a dizer ao que veio. Após um número de abertura curioso, passado na porta de um teatro e que traz à memória a primeira seqüência de My Fair Lady, temos uma reprodução quase literal do primeiro contato entre Bialystock e Bloom (agora Nathan Lane e Matthew Broderick, repetindo os papéis do teatro). Para quem conhece o original, paira um clima de deja vu no ár. Não somente do roteiro, mas também na composição de Broderick que copia de forma gritante os trejeitos criados por Gene Wilder. Nathan Lane, por sua vez, se não faz um Bialystock de todo novo, já tem ao menos um jogo de cintura suficiente para não se assombrar pelo fantasma de seu predecessor, pois já compusera anteriormente em versões para o palco personagens consagrados por Zero Mostel: os protagonistas de Um Violinista no Telhado e Um Escravo das Arábias em Roma. Mas logo ao fim dessa longa cena, surge o número musical “We Can Do It” e Os produtores começa a definir sua própria identidade.

O número seguinte, quando Leo Bloom assume sua liberação da vida medíocre de contador – assim como Matthew Broderick, que a partir daí manifesta, em especial nas seqüências musicais, seu talento cômico - e declara “I Wanna Be a Producer” é ao mesmo tempo o mais interessante e o que melhor define o espírito do filme. Sua fonte de inspiração são as coreografias criadas nos anos 30 pelo gênio Busby Berkeley, em especial as do filme Rua 42 (1933), só que Stroman não tem a pretensão de reproduzi-la de forma pomposa. Há sempre algum elemento desajeitado e distoante - aqui uma corista feiosa que nunca consegue coordenar seus passos – a lembrar que estamos diante de uma comédia, distante conscientemente do glamour original. Como esse, os demais números reproduzem, sem deboche escancarado, mas utilizando uma linguagem de pastiche que perfaz uma homenagem bem-humorada, diversos momentos de cinema e teatro musicais. Se já citamos My Fair Lady e Busby Berkeley, vemos daí por diante a memória de Vitor ou Vitória? em “Keep it Gay”, Marilyn Monroe em Os Homens Preferem as Louras na apresentação de Ulla (Uma Thurman), A Chorus Line na seleção do intérprete de Hitler, terminando em Bob Fosse com “Prisioners of Love”. Sem contar o dueto no qual Broderick e Thurman dançam à maneira de Fred Astaire e Ginger Rogers desprovidos, como era de se esperar, da leveza de suas matrizes, mas mantendo uma graça à sua própria maneira.

Pensando o filme mais estritamente em sua porção comédia, Os Produtores preserva fielmente o espírito de Primavera para Hitler, aprimorando por vezes alguns de seus aspectos. O filme de 68, por sua curta duração (90 min) e por sua estrutura de esquetes, apresentava personagens e situações que deixavam claramente a impressão de que poderiam render algo mais. É o que a nova versão consegue fazer, explorando de forma bem mais engraçada figuras como o escritor nazista Franz Liebkind (recriado de forma hilária por Will Ferrell, o maior ator cômico de nossos tempos) e o diretor Roger De Bris (Gary Beach, em outra composiçao admirável). Espertamente, por outro lado, foram eliminadas as referências datadas, como o LSD do primeiro filme, engraçadíssimo mas com os dois pés fincados nos anos 60. Se então já era bastante corajoso o fato de Brooks fazer humor com elementos de nazismo e exploração de velhinhas, a ditadura do politicamente correto que assombra os EUA a partir da década de 90 tornaria temerária uma possível regressão quanto ao humor grosseiro que caracteriza o autor. Mas, felizmente, ainda estão aí, às vezes até de forma ampliada, os nazistas, as bichonas e Ulla, a assumida quintessência da mulher-objeto. E as velhinhas rendem número musical mais original de Os Produtores: a impagável dança dos andadores, criada a partir de uma breve piada de fundo de cena já presente em A Última Loucura de Mel Brooks (1976).

Um certo anticlimax, que não chega a ofuscar os méritos do filme, surge nos 20 minutos finais de Os Produtores. Após a apresentação da peça as situações que levam à conclusão do filme parecem por vezes um pouco alongadas. Mas não há como não se render ao número de Bialystock na cadeia, onde Nathan Lane dá asas a sua genialidade recriando todo o filme em poucos minutos. Se um gosto de pieguice parece estar sugerido no final do julgamento com a canção “’Till Him”, fica também o clima de uma ambigiudade no estilo de Billy Wilder – que já estivera presente em outros momentos do filme, como no escritório dos contadores, reminiscência de Se Meu Apartamento Falasse – com um Bloom que guarda certos elementos do Jack Lemmon de Quanto Mais Quente Melhor. É com essa prazerosa sucessão de momentos altos (muitos) e medianos (poucos) que Os Produtores consegue ser a melhor comédia musical que o cinema apresentou desde 1982, ano em que Blake Edwards nos trouxe Vitor ou Vitória?.


Gilberto Silva Jr.