O
primeiro plano em que aparece em cena David Spritz (Nicolas
Cage), protagonista de O Sol de Cada Manhã,
indica que o personagem embarcará numa viagem
de auto-ajuda. Assim como acontece nos rankings
de vendas de livro, este filão parece se tornar
cada vez mais recorrente no cinema americano - só
entre os mais recentes filmes, podemos citar Palavras
de Amor e Impulsividade como exemplos dos
mais distintos espectros deste cinema (um, abraçando-o
sem medo, o outro esboçando uma auto-crítica
deste processo). Claro que esta necessidade contemporânea
de achar satisfação pessoal num mundo
que cada vez mais leva à alienação
dos afetos, possui uma ressonância que mais do
que o justifica como impulso recorrente.
Para o espectador atento, esta viagem de avaliação
de sua própria trajetória, lembrará
muito a do personagem de Jack Nicholson em As Confissões
de Schmidt: um ponto de partida familiar (aqui,
a iminente morte do pai, lá a morte da esposa),
a mesma narração em off supostamente
irônica (mas, de fato, diluidora), a mesma trilha
sonora irritantemente hipersignificativa, o mesmo clima
de observação cool e distanciada
de uma estrutura pessoal, familiar e nacional decadente.
Tudo isso desperta bem pouco interesse, a princípio.
No entanto, na medida em que o filme se encaminha ao
seu desfecho, Gore Verbinski começa a mostrar
suas verdadeiras intenções – e embora
isso não torne a fruição do seu
filme mais agradável, inegavelmente a possibilidade
de sua inserção numa determinada história
da construção da auto-imagem americana
através do cinema permite uma ou duas observações
no mínimo curiosas.
O que fica claro, desde o começo, é que
no trajeto deste homem está em jogo todo o ideal
do sucesso norte-americano. Curiosa esta escolha de
sua profissão, então: o homem do tempo
da TV, que não é meteorologista, não
tem nenhum grande talento específico, e por isso
é reconhecido nas ruas, mas nada respeitado.
Para traçar o retrato deste Homo Americanus da
primeira década do século XXI, Verbinski
infelizmente apela às mesmas generalizações
de seu universo pessoal: o fracasso no casamento, a
distância dos filhos, o desprezo dos colegas de
trabalho. Trata-se do caminho mais fácil para
construir a alienação, mas ao mesmo tempo
ela dilui o seu verdadeiro drama: a impossibilidade
de retirar do seu aparente sucesso alguma satisfação.
Enquanto se questiona como membro desta sociedade, seu
caminho começa a se cruzar com o de uma série
de personagens-símbolo da alienação
no cinema americano (num trajeto onde, surpreendentemente,
ele vai dialogar até com o Travis Bickle de Taxi
Driver). Só que onde ele se posiciona mais
claramente é logo depois do Lester Burnham de
Beleza Americana: dentro da trajetória
do pai de família americano ficcional, depois
da idealização, da colocação
em crise, do elogio da disfuncionalidade, e da ironia
distanciada, David Spritz se revela no final a vingança
do americano médio. A diferença do ponto
de vista é clara: ao contrário do "refinado"
olhar do respeitado diretor de teatro inglês (Sam
Mendes), distante e irônico, temos aqui a visão
do artesão americano mediano (Gore Verbinski
– que estreou com O Ratinho Encrenqueiro, e foi
encontrar o sucesso de público dirigindo filmes
como O Chamado e Piratas do Caribe).
De fato, no final do filme fica claro que a necessidade
de auto-afirmação de Spritz perante o
pai é exatamente a mesma dos EUA perante a Inglaterra,
a Europa e suas origens no Velho Mundo (não por
acaso o pai, um intelectual vencedor do Prêmio
Pulitzer, é interpretado pelo inglês Michael
Caine). Neste sentido, David Spritz é a atualização
da mesma velha questão retratada, por exemplo,
no Vamos à América (Ruggles
of Red Gap) de Leo McCarey, em 1935: se lá
o mordomo inglês se rende ao espírito democrata
da América e despreza seus rituais de classe,
numa afirmação americana de sua auto-imagem
pós-Primeira Guerra (o filme tem uma primeira
versão em 1918), aqui temos a necessidade atual
da nação constantemente vilanizada na
sua "baixa cultura" de afirmar que sua premência
mundial não precisa ser apenas bélica.
Entre a Brigada 47 e o Bob Esponja na parada onde o
filme termina (entre o "heroísmo americano"
e a cultura de massas), a trajetória deste homem
comum, médio, medíocre mesmo, seria "quite
an American accomplishment". Aceitar-se pelo que
é, esta é a receita do livro de auto-ajuda
versão Gore Verbinski. E aí percebemos
o porquê da infantilização do personagem
e dos seus dramas: porque aceitar a validade desta falta
de complexidade é o que realmente está
em jogo aqui. Interessante como filme? Não exatamente.
Mas, como declaração de princípios,
certamente. Esperemos somente que, feita a análise,
venha logo o Piratas do Caribe 2 (próximo
filme de Verbinski), para voltarmos ao que realmente
os EUA nos dão de único.
Eduardo Valente
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