Entre os inúmeros caminhos do cinema nos
anos 80, uma das linhas-mestras decisivas são
os grandes filmes monumentais, as grandes obras excessivas
e barrocas que brotam em todos os cantos, respondendo
ao fim da era clássica com uma complicação
dos procedimentos, uma dilatação dos planos,
uma artificialidade na composição, nos
cenários e na cor. E, muitas vezes, a própria
duração do filme acresce a esse excesso.
Fazem parte dessa história O Portal do Paraíso,
de Michael Cimino, Era uma Vez na América,
de Sergio Leone, os filmes de Hans-Jürgen Syberberg,
os de Raul Ruiz, etc. O Sapato de Cetim, adaptação
da dificílima e enorme peça de Paul Claudel,
pertence totalmente a essa história, com suas
6h50 de duração, composição
de câmera feita através de tableaux-vivants,
cenografia estilizada, vocalização declamada,
e uma incrível sensação de impossibilidade
e separação entre os corpos que se inicia
com o filme e só nos abandona ao final da projeção
decadentismo a toda prova. O Sapato de Cetim,
primeira co-produção de Oliveira com a
França, é o primeiro resultado de uma
voga maior fora de Portugal do cinema de Oliveira, uma
voga capitaneada em grande parte pela revista Cahiers
du Cinéma, que elegera Francisca como
filme do ano em 1981 e desde o final da década
de 70 já propagandeava a estética intransigente
do realizador de Benilde e Amor de Perdição.
A peça de Claudel aparece um pouco por acaso
no processo: Oliveira é encarregado de escolher
uma obra francesa para transpor para a tela, e conversando
com Jacques Parsi chega a dois nomes: La Chartreuse
de Parme, romance de Stendhal, e Le Soulier de
satin, peça de Claudel, considerada sua obra-prima.
Sabe-se lá se porque o romance de Stendhal já
tivesse sido adaptado (por Christian-Jacque em 1948,
estrelando Gérard Philippe e Maria Casarès)
ou porque a peça de Claudel tratava da Península
Ibérica, mas Claudel é o escolhido. E
ao invés de tentar nivelar os excessos do original,
regrá-lo ou retirar-lhe as excentricidades, Manoel
de Oliveira trata de amplificá-las.
Um primeiro plano de ouro: ante-sala de um teatro, as
pessoas passam tranqüilamente enquanto assistimos
aos créditos; aos poucos, o tempo vai passando
e somos lentamente transportados até a sala propriamente
dita, enquanto as pessoas vão tomando seus lugares;
um zoom continua delimitando cada vez mais a visão
que temos do ambiente completo, enquanto no palco um
apresentador começa a falar; então, uma
tela começa a exibir imagens projetadas de um
homem num barco, e nesse momento o zoom já está
tão aproximado que em breve tudo que poderemos
ver é a imagem que está na tela, até
que a câmera faça um movimento de 180º
e filme a platéia e as luzes do projetor de cinema.
Onde estamos, o que Manoel de Oliveira nos diz? O movimento
de câmera corresponde a uma descrição
metafórica do projeto, ou seja, de colocar a
câmera num palco e, de tão perto, fazer
crer que o teatro pode se disfarçar de cinema?
Não. O próprio movimento final, que sai
da tela para a platéia, já nos dá
a indicação. Oliveira vai mais longe:
a saída não é fazer um ou outro
mas imbricar um no outro a ponto de eles tornarem-se
indissociáveis, fazer cinema através do
teatro e fazer teatro através do cinema ao mesmo
tempo. Se a seqüência final do filme faz
operação parecida, servindo como uma espécie
de moldura para o filme em suas relações
com o palco, todos os planos entre o primeiro e o último
também têm suas maneiras de fazer alusão
à imbricação entre esses dois mundos.
Mais discreta, é certo, mas não menos
contundente: as paredes pintadas que servem de fundo,
o mar de papel, os jardins artificiais nos evocam o
tempo todo a encenação teatral, e ao mesmo
tempo dão todo o encantamento de um projeto que
beira o alucinado por sua distância total da produção
corrente (de outrora como de hoje).
O Sapato de Cetim é montado a partir de
um amor impossível entre o jesuíta Don
Rodrigue e Doña Prouhèze, um amor que
só se realiza à distância. De fato,
só há uma única cena do filme,
em 410 minutos, em que os amados partilham o mesmo plano.
Ela acontece no fim do "Terceiro dia", ou
ato, quando, em Mogador, Prouhèze vem ao navio
de Rodrigue a pedido de seu segundo marido, Camille,
oferecendo-se em troca do ataque a Mogador. Rodrigue,
não podendo aceitar, nega o pedido. Prouhèze
volta então para queimar no incêndio da
cidade, mas deixa Doña Sept-épées
(Dona Sete-Espadas), sua filha, para ser protegida e
criada por Don Rodrigue. O amor nunca concretizado,
ele deverá ser vivido transversalmente através
de cartas, de memórias ou mesmo de uma filha,
cosmicamente parecida com Rodrigue. A totalidade final
não é jamais realizada. E esta também
é a lógica do panorama geral, político
da Península Ibérica, em que o Rei Filipe
busca a unificação de todo o mundo abaixo
de sua coroa, só para perceber seu mundo inteiro
ruindo. Um tal desejo de totalidade, de concretização
de todas as melhores virtualidades do mundo num aqui-agora
único, só poderia ter resposta estética
nessa mise-en-scène do excesso aqui orquestrada
por Oliveira, levando a cabo tanto o seu desejo de texto
(sua fixação de quinze anos pela idéia
de adaptação/transposição;
a partir de O Meu Caso, são outros os
critérios que passam a ordenar o cinema do autor
de Porto da Minha Infância e Um Filme
Falado) quanto sua idéia do cinema como fixação
do teatro.
Falamos no começo em monumento, e é disso
que se trata. O Sapato de Cetim tem toda uma
maneira própria de ser ritmado, a palavra
o centro da estética do filme, como nos cinco
filmes de amores frustrados entoada, em um plano
para cada cena quase sempre, com elipses meio turvas
na passagem de uma cena para outra, num alongamento
temporal que faz parecer que todos os tempos cabem ali
(de fato, a peça de Claudel deforma o tempo histórico
para melhor adequá-lo ao tempo emocional da história,
mas isso é apenas uma coincidência de dois
processos diferentes). Hierático dos momentos
mais protocolares até os mais íntimos,
O Sapato de Cetim é guiado inteiramente
por uma espécie de sentimento meta-religioso,
como se todo esse tributo ao excesso e à incompletude
fosse uma oferenda a um deus escondido. Na verdade,
até o título do filme é uma oferenda
a santo: é Doña Prouhèze, que coloca
seu sapatinho diante do altar da Virgem Maria, dizendo:
"Quando eu quiser rumar para o mal, que seja com
um pé manco!" A armação é
de Claudel, mas Oliveira a ratifica, criando seus planos,
como diz Charles Tesson, pensando cada um de seus planos
inteiramente a partir de uma posição do
espectador1. Como Bresson, como Dreyer,
um filme inteiramente suturado incluindo o espectador
dá sempre a sensação que estamos
diante de uma ausência, que a presença
de um deus viria preencher. Já que mencionamos
Dreyer, é impossível deixar de mencionar
uma trama íntima do cinema em sua tentativa de
transpor o teatro, e levada à perfeição
com esses dois cineastas. A tradução do
teatro para o cinema que é operada em Ordet,
em Gertrud, em Dois Seres, em Dias
de Ira, e também em Benilde e O
Sapato de Cetim, é a utilização
dos enquadramentos e dos movimentos operados pela câmera,
que desenham de forma direta o espaço a ser enfatizado,
recortando o visível. Tendo em mente os movimentos
operados por Dreyer e aqueles realizados por Oliveira,
"recortados" aparecem como a palavra certa,
na maneira de chamar a atenção para determinado
traço, de utilizar o zoom para sair do plano
geral e entrar num médio e vice-versa (algo semelhante
pode ser visto no mais recente filme de Hong Sang-Soo,
Conto de Cinema, com propósito totalmente
diferente).
Resta o tempo de projeção, desgastante
para qualquer mortal, mas recompensador a cada instante,
e preferencialmente se visto no mesmo dia, em seqüência.
Quando deixamos a sala da sala, é como se tivéssemos
saído de um campo de batalha, extenuados pelas
sete horas de golpes, estratégias e intensidades.
Há os mortos, os desertores e os sobreviventes.
Os veteranos, esses guardarão para sempre o gosto
de uma das experiências mais singulares de cinema
em toda sua vida.
Ruy Gardnier
1. "Une
odyssée de la passion", in Cahiers du Cinéma
nº379
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