Para
quem acompanhou a retrospectiva Manoel de Oliveira,
a sensação ao término da última
Mostra de São Paulo foi diferente de todas as
outras vezes. Primeiro porque esse acompanhamento exigiu
certa dedicação, certa disciplina e mesmo
certa exclusividade. Dias inteiros na Cinemateca Brasileira,
como na memorável tarde em que passaram a obra-prima
Acto da Primavera e as duas sessões de
curtas-metragens; filmes longuíssimos, que impunham,
pela duração e pela impressão de
plenitude, um fechamento precoce da conta do dia (a
que assistir após as sete horas de puro maravilhamento
de O Sapato de Cetim?); visitas a salas deslocadas
da espinha dorsal da Mostra – a grade de programação
nem sempre favoreceu os admiradores de Oliveira – e
por aí vai. Às vezes tratava-se de um
verdadeiro tour de force espectatorial, uma aventura
que extrapolava a cinefilia. Uma arte da entrega. Era
preciso ter vontade de conhecer tudo, ver e ouvir tudo
– o que não significa ser o homem mais culto,
nem o mais ambicioso, mas simplesmente o mais paciente
e mais bem disposto (mental e também fisicamente).
Em última análise, como diria o próprio
Oliveira a respeito do impulso artístico, era
preciso ter uma "vontade de céu", ou
almejar um "golpe d’asa" (desejo inalcançável
do poeta Mario de Sá-Carneiro, que Oliveira cita
na entrevista contida no livro da Cosac Naify). Vontade
que, para nós, espectadores do mais antigo cineasta
vivo, se traduzia em vôos tão serenos quanto
vertiginosos. Algumas sessões levavam ao cume
esse paradoxo: o que é Amor de Perdição
além da odisséia romântica mais
sóbria e mais inebriante de todos os tempos?
E O Princípio da Incerteza, aquele conto
diabólico a que nos conduzem as asas de anjos
delicados?
Mas o grande diferencial dessa edição
da Mostra estava mesmo no fato de que, encerrada sua
intensa jornada, perdurava a inqualificável satisfação
de ter recapitulado toda a história do cinema
tão-somente através de uma obra individual.
Assistir, de forma sistemática, a praticamente
tudo que Manoel de Oliveira vem filmando desde 1931
equivale a processar uma visão total do cinema.
Vimos Lumière e a fascinação pela
multidão que atravessa uma rua, Ruttmann e a
moderna sinfonia urbana (Douro, Faina Fluvial),
Eisenstein, Vertov e a montagem-rei (Douro, Faina
Fluvial novamente), Chaplin e um neo-realismo avant
la lettre (Aniki-bobó), Straub, Godard,
Pasolini e toda a modernidade cinematográfica
se expressando por uma "inocência" poética
que o cinema só seria capaz de encontrar depois
de muito esforço e muita bagagem (Acto da
Primavera), os complexos artifícios de um
formalismo fundado na auto-reflexividade do espetáculo
(Benilde ou a Virgem Mãe, Francisca,
O Sapato de Cetim), a experiência espectral
e tateante que advém da relação
de amor entre um "homem com uma câmera"
e a cidade em que vive (O Pintor e a Cidade,
Porto da Minha Infância), a precisão
tranqüila de uma estética que se atrela
ao mínimo para dizer o máximo (O Dia
do Desespero, O Convento, A Carta),
a doçura de relatos que transbordam todas as
conhecidas declarações de amor ao cinema
(Viagem ao Princípio do Mundo, Inquietude,
Vou para Casa). Com Oliveira, vimos também
Mizoguchi, Dreyer, Bresson, Buñuel... Vimos tudo.
E, principalmente, nos nutrimos da força de filmes
que escapam à trajetória do cinema e até
à de seu autor, obras não submissas ao
tempo e ao lugar em que são produzidas: Non
ou a Vã Glória de Mandar, Vale
Abraão, O Princípio da Incerteza,
Um Filme Falado, O Quinto Império.
Nada faltou nesses quinze dias – a não ser O
Meu Caso (1986), único longa-metragem a ficar
de fora da Mostra, sem falar na quase ausência
de O Passado e o Presente, que só chegou
para a repescagem.
Quando o assunto é Manoel de Oliveira, contudo,
ver nunca é o suficiente. O cinema para ele parece
ser menos uma arte – o que, dependendo das opções
individuais, pode implicar uma limitação
estetizante – do que uma forma do pensamento. Daí
ele sempre preferir "pensar o cinema" a deduzi-lo
ou qualificá-lo. Não definimos a vida,
então nada de definição do que
é cinema. E nada de sentenças fechadas
que busquem dar conta do cinema de Oliveira. Sua filmografia,
monumental e humilde ao mesmo tempo, dificulta toda
tentativa de sistematização, não
apenas pela variedade de registros, mas também
pelos hiatos produtivos (nada especial entre 1931 e
1942, recesso absoluto entre 1942 e 1956, apenas um
longa-metragem entre 1956 e 1972) e até pelos
distintos contextos históricos e individuais
em que muitos filmes foram concebidos.
Se o cinema de Oliveira é uma matéria
do pensamento, seu fechamento como objeto jamais se
mostrará possível. Ele não faz
filmes-objeto, filmes redondos. Porque o pensamento
é justamente o informe, o lugar do mistério,
de onde saem as mais sublimes e também as mais
torpes idéias sem que possamos achar uma explicação
precisa para isso. Encarar o cinema dessa forma, portanto,
nada mais é do que lhe resguardar uma premissa
de mistério, de inacabado. De onde saem os filmes
de Oliveira? A memória é sua caixa de
ferramentas na mesma medida dos filmes que viu e das
histórias que leu e ouviu. Cinema cerebral não
por ser difícil ou exaltar a racionalidade, mas
por refletir uma anatomia retorcida, redobrada sobre
si mesma – memória, sonhos, sentimentos, suposições,
tudo se encosta. Eis porque vimos tanto nessa retrospectiva
e, ainda assim, temos a sensação de estar
engatinhando no cinema de Oliveira. Ainda faltou muito
para que chegássemos ao término de alguma
viagem; faltou-nos o "golpe d’asa". Mas mesmo
assim estivemos nas nuvens.
Luiz Carlos Oliveira Jr.
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