INTRODUÇÃO
À FILMOGRAFIA:
Publicar uma filmografia crítica de Manoel
de Oliveira tem uma razão bastante natural. Por
mais que já houvesse muitos textos escritos na
revista (como se pôde conferir na lista
de textos linkados na cobertura da Mostra) e praticamente
todos os redatores que acompanharam a retrospectiva
já tivessem visto pelo menos uma dezena de filmes
do diretor homenageado, uma das coisas que a ocasião
recente trouxe de novidade (além, é claro,
dos filmes que eram inéditos para nós)
foi a visão em conjunto aqui significando
um conjunto da redação, que assistia aos
filmes quase todos em bando, e da obra de Oliveira propriamente
dita. A filmografia crítica que propomos é
quase o nosso tributo ao "conjunto da obra"
de Manoel de Oliveira. Houve a necessidade de responder
individualmente a cada um dos filmes que nunca tínhamos
visto (incluindo os curtas-metragens a que tivemos acesso)
e também a iniciativa não propriamente
ambiciosa, mas simplesmente educada (pois se trata,
em grande medida, de agradecer enfaticamente a essa
oportunidade) de fazer um inventário completo
da nossa recepção aos filmes apresentados
na retrospectiva. Essa resposta filme-a-filme apareceu
como uma espécie de obrigação para
a pauta: registrar todos os passos de uma peregrinação
ao longo dessa obra tão extensa e maravilhosa.
E ainda ficarão faltando algumas pistas que nos
foram "negadas": uma meia-dúzia de
curtas, os dois médias-metragens de 1983 (Lisboa
Cultural e Nice, À Propos de Jean Vigo)
e, principalmente, o longa-metragem O Meu Caso
(1986) são os filmes de Oliveira que não
vieram para a Mostra, e por esse motivo estão
de fora da filmografia aqui comentada. Mas podem ter
certeza: o dia em que chegar a feliz ocasião
de preencher a lacuna acima, essa filmografia ainda
ficará completa.
***
DOURO, FAINA FLUVIAL, 1931, Portugal
Douro, Faina Fluvial é o filme que
testemunha o début de Manoel de Oliveira
no cinema. Como primeiro impulso, ele vira sua câmera
para a cidade que o viu nascer (o mundo que ele conhecia
bem), criando uma sinfonia à semelhança
das sinfonias de cidades que proliferaram nos anos 20.
Sua orquestração encadeia imagens com
enorme rapidez, a partir de movimento internos e grafismos,
numa montagem que remete às teorizações
dos soviéticos. Impregnado do modernismo vanguardista
da época, o filme faz uma cartografia dinâmico-afetiva
do Porto, acompanhando as relações de
trabalho estabelecidas a partir da presença primordial
do rio Douro. Grandes close-ups, máquinas
a todo vapor, braços empenhados num incansável
labor, a atividade da pesca, a venda de produtos e a
circulação de mercadorias se alternam
neste mapeamento da fisiologia econômico-social
da cidade, alimentada principalmente por um bairro operário.
Os pequenos feitos diários dos trabalhadores
encontram-se documentados com simplicidade e o ecossistema
que estes formam com o rio e a terra que os alimenta
vai tomando forma através da cuidadosa relação
tecida entre os planos. Esta montagem, tomada como específico
fílmico, foi realizada pelo próprio Manoel
de Oliveira na mesa de bilhar da casa do seu pai cena
que vemos belamente reconstituída em Porto
da Minha Infância. O filme ganhou posteriormente
uma trilha original e sua montagem foi refeita, para
se ajustar em alguns pontos ao som. Oliveira ainda voltaria
a ele algumas vezes, tanto em termos de manipulação
do material (a última foi em 1994, quando o filme
foi restaurado e ele buscou restituir-lhe sua montagem
primeira), quanto de retomada "temática"
(Aniki-Bobó, O Pintor e a Cidade,
Porto da Minha Infância). Douro, Faina
Fluvial, ainda que bastante diverso do estilo que
viria a caracterizar posteriormente a obra de Oliveira,
posa como uma declaração de princípios,
definindo como primordial na relação do
realizador com o cinema (que nesse momento era para
ele uma atividade de interesse entre outras) a presença
de tudo o que o rodeia: sua terra, sua cultura, sua
língua. (Tatiana Monassa)
HULHA BRANCA, Portugal, 1932
Ao filmar a empresa hidroelétrica que seu
pai construiu, Oliveira confirmou a inquieta experimentação
que apresentara em Douro, Faina Fluvial exploração
de todos os ângulos de câmera que lhe parecem
possíveis, musicalização da montagem,
fragmentação gráfica do espaço
e evidenciou sua vocação estética
para a apreensão de uma beleza imantada do tempo,
da natureza e sua transformação pelo homem.
As águas represadas pela pesada engenharia acham
sempre uma brecha, escapam por entre as pedras e pelas
fissuras das paredes de cimento. A montagem não
deixa o curso se estagnar; o livre escoamento de imagens
se assume uma obrigação estética
diante daquele fluir. Já ali não resta
dúvida: Manoel de Oliveira é um poeta
do fluxo, um pensador mobilista, um cineasta "sem
grande esforço". Hulha Branca, com
sua rusticidade encantadora, faz parte do conjunto de
filmes-experimento que Oliveira rodou a título
de cinegrafista autodidata e montou sobre sua mesa de
sinuca. (Luiz Carlos Oliveira Jr.)
PORTUGAL JÁ FAZ AUTOMÓVEIS, Portugal,
1938
Como tudo em Oliveira, este filme é sobre
uma paixão. Quem o conhece só de ver seus
filmes recentes não desconfia, mas Oliveira é
amante da velocidade, tendo até disputado, na
juventude, corridas automobilísticas pilotando
o que hoje se chamam as "baratinhas". Ele
chegou a vencer um famoso circuito realizado no Alto
da Boa Vista, no Rio de Janeiro, um evento marcado pelos
diversos acidentes nas curvas perigosas. Portugal
Já Faz Automóveis, mesmo que desprovido
de um encanto cinematográfico mais evidente,
revela-se uma pérola justamente por entregar
essa faceta juvenil-desportista do diretor, e também
por ser um estudo menos sobre a velocidade e a dinâmica
envolvidas no automobilismo e mais sobre a plástica
do carro e sua fabricação (interesse pelo
processo produtivo que retornaria, sobretudo, em O
Pão). É um filme sobre design;
o interesse na forma dos automóveis a forma
que eles adquirem e a forma com que são concebidos
é seu grande "motor". Partindo de
um tal ponto de vista sobre a produção,
a etapa chave do filme se dá na montagem, que
valoriza o fragmento ou a peça justamente
na sua maneira de se articular com o todo. Pequeno filme
científico verdadeiro documento sobre a passagem
do modelo fordista para a produção personalizada
(os carros eram feitos sob medida para os pilotos)
e espécime ancestral de campanha publicitária,
Portugal Já Faz Automóveis está
longe de ser irrelevante na filmografia de Oliveira.
(L.C.O.Jr.)
FAMALICÃO, Portugal, 1940
Classificado pelo próprio Oliveira como "um
filme menor", Famalicão faz parte
de uma série de curtas documentários que
ele realiza entre as duas primeiras décadas de
sua carreira, sendo a maioria sob convite de amigos
ou empresas, e que ele aceita para se manter em atividade.
Destes, porém, talvez seja o filme que, em retrospecto,
mais antecipa aspectos de várias obsessões
do diretor no futuro, notadamente a figura de Camilo
Castelo Branco, escritor do século XIX fundamental
na sua obra do final dos anos setenta. Aqui, Camilo tem
sua casa visitada por Oliveira neste filme-propaganda
da região do título, antecipando especialmente
O dia do desespero (1992), espécie de
filme biográfico que se passa todo no espaço
desta casa-museu. Chama a atenção, em
especial, a presença nos dois filmes, com seus
cinquenta anos de intervalo, de um mesmo plano:
o da cadeira de balanço na qual Camilo suicidou-se,
balançando vazia. Mas, além da referência
à figura do escritor, há outros aspectos
que chamam a atenção, como o retrato que
o diretor faz das três principais indústrias
da região (muito parecidos com o que já
tínhamos visto em Hulha Branca e Portugal
Já Faz Automóveis, veríamos
ainda depois em O Pão, e que parece muito
revelador de um aspecto de processo-fluxo do qual trato
com mais cuidado no texto do glossário). E, ainda,
Famalicão é talvez o mais abertamente
engraçado dos filmes de Oliveira, com a locução
de Vasco Santana criando um jogo de fina ironia com
as imagens que mostra, ironia esta que revela a muito
subestimada irreverência do realizador. A notar
ainda uma das primeiras seqüências, que envolve
uma carroça e um posto de gasolina, que une vários
destes aspectos com a preocupação constante
de Oliveira com a relação entre modernidade
e tradição. (Eduardo Valente)
ANIKI-BÓBÓ, Portugal, 1942
Praticamente ignorado à sua época,
o primeiro longa-metragem de Oliveira já meio
que desfruta hoje de uma aura mítica: antecessor
da estética e de parte da temática neo-realista,
conto moral universalmente eficaz, inocência dos
primeiros clássicos associada a uma modernidade
precoce... O fato é que Aniki-Bóbó
é um dos filmes mais doces da história
do cinema. E já revela aquilo que Oliveira seria
pelo resto da carreira: uma criança com sede
de vida, com sede de mistério. Os personagens
são mirins, mas o peso do enredo é adulto,
com todos os planos se colocando numa altura que corresponde
ao alcance (moral e visual) dos personagens, sempre
atirados a situações que impõem
escolhas. Um filme montado por raccords de olhar
("Um plano deve ser sempre um ponto de vista",
diria Oliveira décadas depois). Quem viu o filme
jamais esquecerá da cena em que, no meio da noite,
um menino sobe ao telhado da menina de que gosta para
lhe entregar a boneca apanhada digamos, indevidamente
na "montra das tentações".
A cidade do Porto já se mostra o espaço
poético que seria reverenciado em filmes como
O Pintor e a Cidade e Porto da Minha Infância.
As crianças se afobam na busca de seus desejos,
e um intervalo de duas décadas se intrometeria
até o longa-metragem seguinte (Acto da Primavera),
mas o tempo em Aniki-Bóbó se move
sem pressa, a atmosfera é tranqüila, não
há nuvens tapando a claridade: o cinema de Oliveira
vive uma bela manhã de sol. (L.C.O.Jr.)
O PINTOR E A CIDADE, Portugal, 1956
A imagem sintética de uma "proto-imagem"
do cinema, um trem em movimento, é um tema visual
recorrente em O Pintor e a Cidade. Primeiro trabalho
a cores de Manoel de Oliveira, este é, segundo
o próprio, o filme que proporcionou sua mudança
de reflexão sobre o cinema cujo ponto fundamental
teria sido "a
descoberta do tempo". E o tempo, que torna
possível o movimento (quase matéria-prima
do cinema) é justamente o que afasta as imagens
de trem filmadas por Oliveira das pintadas por António
Cruz, o pintor que ele acompanha pela cidade do Porto.
Este parece ser o início da misteriosa pictorialidade
que percorre as imagens de diretor, assim como sua profunda
noção de temporalidade da imagem. Se o
trem, como registrado por António Cruz e por
Oliveira, parece ser de fato o mesmo trem (em cores,
em composição, em impressão imagética,
no som que não escolhe as imagens para sonorizar),
a película e seu movimento irão acusar
a natureza diferente da sua relação com
o real. O Porto das maravilhosas aquarelas de Cruz,
no seu realismo impressionista, alterna-se com o Porto
de Manoel, que cuida de também retratar o pintor
no seu ofício. Escolher um lugar, estabelecer
a tela e então tornar materialidade em cores
o que se testemunha do mundo. Se, em termos de princípios,
a câmera dos irmãos Lumière não
diferia muito dos pincéis impressionistas contemporâneos
seus, a câmera de Oliveira dança valsa
com os quadros de António Cruz. Filmar uma imagem
estática, a de um quadro, pintar uma imagem em
movimento, a de um trem, filmar o movimento, a técnica
do pintor e sua relação com a cidade,
relacionar-se com a cidade familiar e com as imagens
possíveis de decalcar dela. Criar, nos interstícios
disto tudo, um fascínio inexplicável pela
imaterialidade da imagem cinematográfica. O encanto
pela sua fugacidade. E o discernimento de que a permanência
pode alterar sua percepção. Porque, se
a montagem é o específico fílmico,
então o tempo é seu princípio organizador.
Tempo das imagens, tempos da cidade, que Manoel de Oliveira
maneja com perfeição. (T.M.)
ACTO DA PRIMAVERA, Portugal, 1963
O tom declamatório e choroso dos camponeses
que encenam o auto da paixão começa a
hipnotizar num dado momento do filme, mas em Acto
da Primavera estamos diante de um cinema bastante
materialista. Não porque incorpora a dialética
ou interroga o homem segundo um condicionamento social;
não é um materialismo histórico,
e sim cinematográfico, ou seja, de uma relação
do dispositivo com os corpos e o espaço que estes
ocupam (relação que Straub importaria
para o seio de seu cinema). O conceito é levado
ao extremo: a frontalidade dos planos e a laconicidade
da decupagem chegam a ser impositivas em alguns momentos.
Há uma maneira simples e direta de filmar as
coisas que lembra muito Pasolini (e não seria
exagero dizer que Acto da Primavera e O Evangelho
Segundo São Mateus são os dois mais
belos filmes sobre a paixão de Cristo). Se um
grupo de pessoas corre para a direita, uma breve panorâmica
o acompanha, e depois há o corte para que um
plano igualmente descritivo quase demasiadamente descritivo
complete o registro do deslocamento. São corpos,
antes de personagens, o que interessa a Oliveira neste
filme. A encenação se flagra: no mesmo
ano de O Desprezo, Oliveira roda um plano com
uma câmera de cinema apontada para nós
(e todos lembram como termina o plano de abertura da
obra-prima de Godard). No final, imagens de bombardeio
nuclear e flagelo humano remetem ao início de
Hiroshima Mon Amour. Com isso citamos mais uma
referência típica do cinema moderno, e
não à toa: Acto da Primavera é
mais facilmente analisado no contexto do que se produzia
no supra-sumo do cinema de autor dos anos 60 do que
na obra anterior e posterior ao filme do próprio
Oliveira. (L.C.O.Jr.)
A CAÇA, Portugal, 1963
Em 1963, dois filmes e dois lados totalmente diferentes
de Manoel de Oliveira. Há o Oliveira de Acto
da Primavera, com sua preocupação
pelas camadas de tempo que se sobrepõem umas
às outras na idade de cada coisa que compõe
o filme (pessoas, jornais, a peça, o costume,
a terra), e há o Oliveira de A Caça,
com seus 21 minutos de êxtase que se prestam a
contar um conto cruel sobre a humanidade. Na verdade,
o começo do filme até sugere um leve filme
sobre jovens travessos, como Les Mistons e Os
Incompreendidos. Dois moleques provocam os habitantes
do vilarejo, e em seguida vão à mata brincar
de caçar. Num momento de desatenção,
um deles começa a afundar na areia movediça,
enquanto o outro, sem saber o que fazer, sai para pedir
ajuda às mesmas pessoas de quem tinha caçoado
momentos antes. É logo arregimentada, então,
uma corrente humana para retirar o menino da lama. No
entanto, o homem que organiza tudo só tem uma
das mãos... e não pode ajudar na corrente.
Esse momento de impossibilidade de ajudar não
deixa de lembrar o final de Um Filme Falado,
em que o capitão cioso não percebe que
ainda há gente em sua embarcação.
Mas aqui é outro tema que parece povoar a estrutura
simbólica do filme. Três signos de cooperação
humana, do "ajudar ao próximo", e os
três signos trabalham com um sinal negativo em
algum dos elos da cadeia. Primeiro, é o menino
que, ao invés de ajudar por medo de não
saber fazer, mas talvez principalmente pelo medo de
ele mesmo morrer , foge. Em seguida, o fato de ele
procurar para ajudá-lo aqueles a quem ele (sempre,
imagina-se) atrapalhou com suas travessuras de criança.
Por fim, a impossibilidade física do gesto de
benevolência para o maneta que organiza a corrente.
Covardia/incapacidade, falta de reciprocidade, falta
de meios para praticar o bem. Como em Viridiana,
de Buñuel, parece que mesmo os gestos mais nobres
não têm sua concretização
a não ser em resultados nefastos, e a separação
entre homem e homem, a falta de cooperação
entre as pessoas está inscrita no código
genético de cada um de nós. Não
é simplesmente que o homem quer ser o lobo do
homem, é que não há outra opção.
O humor negro do fim do filme obrigou até a um
segundo final, mais afável, menos pessimista,
como aliás Os Esquecidos de Buñuel,
que não acaba de forma muito mais agradável.
Buñuel é mencionado aqui duas vezes, e
isso não é por acaso: se há algum
cineasta com quem essa obra mais se relacione, é
ele, que sempre soube rir da seriedade que os homens
acham que têm. (Ruy Gardnier)
O PÃO, Portugal, 1964
Em 1959, Manoel de Oliveira filma O Pão,
um quase longa-metragem de 58 minutos, registrando o
processo da produção do pão, da
plantação e da colheita do trigo até
o transporte e o comércio. Cinco anos depois,
Oliveira retoma O Pão e o filme é
cortado pela metade de sua duração, sua
trilha sonora é retirada e a narração
também. "Do ponto de vista artístico,
prefiro a versão curta", diz o cineasta.
E, mesmo que tenhamos apenas visto a versão curta,
não podemos deixar de concordar com Oliveira.
Pois o processo de lapidação em ação
entre uma versão e outra tem o único objetivo
de tirar do filme tudo que não seja absolutamente
necessário para fazer do filme um fluxo de
produção. Podemos pensar em poucos
filmes que chegaram a um nível tal de depuração,
LArgent de Robert Bresson, As Flores de Xangai
de Hou Hsiao-hsien todos vieram depois! Como nos outros
filmes, Manoel de Oliveira consegue algo muito poucas
vezes conseguido: a idéia de que as imagens,
tomadas por si só e nos sons originais dos planos,
acabam criando uma espécie de música toda
própria, uma abstração e um hipnotismo
próprios da imagem que, longe de nos desprender
do conteúdo social e orgânico das imagens
que estamos vendo, serve para nos engajar ainda mais
no discurso. Cada plano, isoladamente, responde por
uma parte das atividades sociais que envolvem o pão.
A montagem tratará de ligá-los não
de um ponto de vista cronológico, nem tampouco
a partir de um acompanhamento da logística da
produção. A montagem acabará fazendo
de O Pão não um documentário
sobre uma prática humana uma das mais decisivas!
, mas um tratado sobre a transmissão e a passagem,
e talvez principalmente um filme-ensaio sobre a velocidade
e a criação de linhas de fuga, os ciclos
humanos transformando-se em ciclos naturais e a percepção
se instaurando do ponto de vista da eternidade. Uma
jóia inestimável, esse pão! (R.G.)
AS PINTURAS DO MEU IRMÃO JÚLIO, Portugal,
1959-65
O irmão Júlio do título é
Júlio dos Reis Pereira, irmão do escritor
José Régio. Num registro que oscila do
documental ao sentimental, sugerindo em alguns momentos
imagens oníricas, vemos suas pinturas ocuparem
toda a extensão do quadro cinematográfico.
A câmera passeia por elas, sugerindo recorrências
de temas e conexões entre figuras, ao som das
palavras de José Régio no exílio.
Sua arte confunde-se com a do seu irmão, pois
ambas confluem num espaço de memória familiar:
a casa onde nasceram. E enquanto as palavras de José
ganharam o mundo (ou pelo menos parte do mundo que fala
o português), as pinturas de seu irmão
ficaram confinadas a um restrito circuito, muitas delas
guardadas ali. O afeto que une estas duas artes movimenta
a câmera e o interesse de Manoel de Oliveira pelas
manifestações culturais que (in)formam
um povo. As Pinturas do Meu Irmão Júlio
fazia originalmente parte de um vasto projeto de Oliveira
intitulado O Palco de Um Povo, que seria um grande
apanhado de autos, trechos de literatura portuguesa,
documentários sobre artistas e outras manifestações
culturais... Mas este filme, tal como pensado, não
foi a cabo. Faziam também parte deste projeto
Acto da Primavera e O Pão. (T.M.)
O PASSADO E O PRESENTE, Portugal, 1971
Um estranho encontro de muitas possibilidades de
cinema, este longa de Manoel de Oliveira não
impressiona como outros tantos realizados por ele neste
período, não só por não
soar como um percussor de um movimento cinematográfico
(tal qual Aniki-bóbó ou Acto
da Primavera), mas também por carecer de
uma força maior no que é encenado, como
se faltasse aqui um pouco da paixão ou de uma
crença maior naquilo que nos é imposto
por imagem-atores-cena, fatores tão importantes
à obra do diretor português. O Passado
e o Presente flerta mais com os chamados cinemas
novos em erupção na década de 60,
chegando a ter tons quase buñuelescos na forma
de empunhar seu olhar aos atores. Trabalhando uma mise-en-scène
pouco comum à sua obra, com uma porção
de planos-seqüência em que a câmera
procura pelos personagens dentro de cena a todo custo,
planos que impressionam visualmente pelo domínio
assim como impressiona seu trabalho com a câmera
na mão em Acto da Primavera com que
executa tudo, sempre com um rigor bastante forte, chegando
em momentos a lembrar Fassbinder. Há diversos
planos longos que impressionam, assim como toda a seqüência
inicial dos créditos, e o uso da marcha nupcial
como elemento que norteia o filme, já firmando
nesta época o talento de Manoel em arquitetar
as entradas e saídas da música em sua
obra. Talvez o que cause o tom de filme menor aqui seja
que ao empenhar-se tanto sobre uma câmera em constante
movimento, Oliveira terminou por trair parte daquilo
que é mais forte em seu cinema, que são
os atores, sua forma de impor postura e diálogos
a eles, que terminam quase esvaziados, salvo um ou outro
momento. Ainda assim, o resultado passa longe do indigno.
(Guilherme Martins)
BENILDE OU A VIRGEM MÃE, Portugal, 1974
Entre as poucas influências cinematográficas
que Manoel de Oliveira enumera em suas entrevistas,
aparece freqüentemente o nome de Carl Theodor Dreyer.
Vendo Benilde, imagina-se logo o porquê:
a mulher tomada como ao mesmo tempo mártir e
bruxa (Dias de Ira, Dois Seres, A Paixão
de Joana dArc), claro, mas acima de tudo a mise-en-scène
de um homem que pensou profundamente nas relações
de passagem do teatro para o cinema (os dois primeiros
filmes citados, Ordet, Gertrud), não
tentando buscar um "específico cinematográfico"
(um termo que Oliveira sempre utilizou com deboche),
mas tentando trabalhar no meio dos dois. Benilde
é adaptado de uma peça de José
Régio, não tão longe da Srta.
Julie de Strindberg. Ao som de uma assombrosa (no
sentido literal e no metafórico) música
de Olivier Messiaen, a câmera começa atrás
do set de filmagem, registrando os tapumes, as telas
de proteção, os pedestais de luz, até
chegar ao interior da casa, de onde só sairá
quando, ao final, a câmera fizer o movimento inverso.
Benilde é bem uma relação
do dentro com o fora: num belo dia, a bela e plácida
Benilde revela que não pode mais se casar pois
foi consagrada com a divina concepção,
arruinando assim a trajetória preconcebida (e
desejada por todas as partes) do casamento com o primo.
Tudo dentro da casa, tudo dentro da família.
Resta, no entanto, apenas uma informação
de fora, mas uma informação decisiva:
medonhos uivos dados pelo louco da região, que
habita num celeiro ao lado. Seria o louco a figura divina
(simbologia persistente desde os tempos da Grécia)
que teria escolhido Benilde para a santa concepção?
Manoel de Oliveira prefere apenas dar pistas, mas jamais
fechar um raciocínio. Resta que Benilde é
o primeiro filme em que Oliveira tem a clara consciência
de que o cinema tem a excelente qualidade passiva de
fixação, e de que portanto sua concretização
máxima é fixar as outras artes particularmente
o teatro. Nasce com esse filme uma obsessão que
dominará a obra do diretor português até
meados dos anos 80: uma preocupação em
transpor/transcriar textos de outras artes (Francisca
e Amor de Perdição no romance,
Benilde e O Sapato de Cetim no teatro),
fazendo do texto o elemento estético mais forte
a fixar, e ao qual todos os outros (movimentos de câmera,
posicionamento e interpretação dos atores)
deveriam se acrescer, mas jamais contrastar. (R.G.)
AMOR DE PERDIÇÃO, Portugal, 1978
Um mergulho dentro da obra de Camilo Castelo Branco,
um dos autores a quem Oliveira dedicou parte de sua
obra. Amor de Perdição, inclusive,
forma uma espécie de dístico com Francisca
(este baseado em Agustina Bessa-Luís), em que
dedica um personagem ao escritor romântico. O
olhar de Manoel sobre o romance de Castelo Branco é
bastante particular, a começar por sua opção
pela longuíssima duração, fazendo
um filme de quatro horas para um livro de cerca de cento
e cinqüenta páginas, no qual a essência
do romance e todo o peso de sua impossibilidade de se
consumar têm seu tempo arrastado, como se Manoel
enxergasse que a única forma de se aproximar
do impacto e do peso da obra de Castelo Branco fosse
esticando o próprio filme, aumentando de certa
forma a proximidade com o que é vivido pelos
personagens. Manoel exerce um de seus trabalhos mais
expressivos de encenação, tomando caminhos
arriscados, realizando planos-seqüência fixos
e até um aparente uso de zoom, filmando a arquitetura
dos espaços com uma vitalidade única.
Há um punhado de planos dignos de constar numa
antologia dos melhores já feitos, com reenquadramentos
sensacionais, um exímio trabalho de extras, momentos
em que Manoel simplesmente acompanha de uma longa distância
o movimentar de um personagem e a partir de um movimento
contrário vai revelando todo um cenário
arquitetado. A força e impacto da fatalidade
do que se encena aqui é algo raro, mesmo entre
os grandes do cinema. (G.M.)
FRANCISCA, Portugal, 1981
À época de Francisca, Manoel
de Oliveira falava sobretudo numa arte da renúncia
ao construir seus filmes baseados em textos literários
ou teatrais. Naturalmente, a renúncia a que ele
se referia era recusar a tendência natural do
processo de transposição cinematográfica
de adicionar à obra original uma série
de dados que dariam uma maior naturalidade à
fruição do filme. Mas em Francisca,
mais do que em todos os outros filmes de O Passado
e o Presente até O Sapato de Cetim
filmes em que se adaptava a obra quase que por completo
, há um nível de escolha dos episódios
a narrar e dos episódios a deixar de fora, ou
então a mencionar exclusivamente pelos intertítulos.
Isso acaba criando um regime de elipses muito rico,
e nos obriga a pensar em toda uma série de momentos
que ficaram de fora. Por exemplo, de que forma teria
trabalhado José Augusto para Fanny cair desesperadamente
apaixonada por ele a ponto de se deixar raptar? Quando
teriam começado as cartas de Fanny para Camilo
que destruiriam finalmente toda a esperança que
José Augusto tinha na virtude de sua amada? Quais
artimanhas teria Camilo orquestrado para desestruturar
a relação entre o amigo/rival e sua amada/confidente?
É curioso que toda a orquestração
dos planos nos seja negada: temos apenas o anúncio
do programa ("Gerar um anjo na plenitude do martírio",
diz José Augusto a Camilo quando decide fazer
Fanny se apaixonar por ele) e o resultado dos ardis.
"A deusa do amor costuma gostar da malícia.
O remédio contra a malícia é deixar.
É sofrer", diz Fanny jogada ao chão,
admoestada pelo tapa do marido. Instruções
para um programa louco, auto-destrutivo, que combina
com os humores de uma geração cética
propensa a "paixões funestas", como
dizem os intertítulos de abertura do filme. Se
há um corpo que consegue encarnar na tela toda
a loucura e, ao mesmo tempo, a fragilidade de tal aposta,
é o de Teresa Meneses, inteiramente construída
para padecer num mundo em que sua existência é
impossível. Mas, de alguma forma, ao fim do filme
tanto José Augusto quanto Camilo são decifrados.
Fanny, Francisca, ela não. Ela permanece um mistério
que não só dá nome ao filme como
o mantém vivo, como diria o próprio Oliveira
(numa outra ocasião, sobre um outro assunto)
"em sua ausência de explicação".
(R.G.)
O SAPATO DE CETIM, Le Soulier de Satin, Portugal/França,
1985
Com seus opulentos 415 minutos, O Sapato de Cetim
é o monumento que encerra na filmografia
de Manoel de Oliveira uma fase começada dez anos
antes com Benilde ou a Virgem Mãe. Trata-se
de uma fase em que a adaptação de uma
obra (teatral ou literária) rende uma profunda
reflexão sobre que lugar o cinema deve ocupar
nessa operação de transposição
textual geralmente é um lugar intersticial,
que afirma a semelhança das formas de expressão
ao mesmo tempo em que sublinha suas diferenças
fundamentais. De um modo geral, o que muda nos filmes
a partir dos anos 90, quanto a essa questão da
adaptação, é que Oliveira raramente
tem se empenhado somente na adaptação
de uma obra, mesmo que em todas suas nuances
e possibilidades, passando a preferir a imbricação
quando não a mise en âbyme de
diversos textos, memórias ou obras de qualquer
natureza em um só filme (A Divina Comédia,
por exemplo, mescla Dante a Dostoievski, Nietzsche e
José Régio, enquanto Vou para Casa
transita de Shakespeare a Joyce e Godard em questão
de minutos, sempre se aliando a dados da trajetória
pessoal do diretor). Mas antes de se tornar um adaptador
infiel (o que não o impede de fazer filmes como
O Quinto Império ou Palavra e Utopia),
Oliveira garantiu o lugar grandioso da empreitada de
O Sapato de Cetim: não havia mesmo outro
modo de encerrar aquela etapa de sua carreira, marcada
por uma grande obstinação formalista,
senão por intermédio de uma experiência
radical como essa. O texto de Paul Claudel é
levado à tela na íntegra, nenhuma linha
fica de fora (rigor que demonstra o respeito do diretor
pela palavra), a ponto de Oliveira dizer que a decupagem
do filme é o próprio livro do escritor
francês (ver Manoel de Oliveira, livro
da Cosac Naify, p. 67). Essa decupagem consiste basicamente
em deslumbrantes planos-seqüência na maioria
das vezes com câmera fixa ou que se movimenta
minimamente (e entre os elegantes carrinhos laterais
e a sideração de um zoom que parece
levar-nos ao além, fica registrado um domínio
completo sobre a escritura em jogo), embora haja passagens
incríveis em que o cenário se desmonta
e se remonta diante da câmera, sem falar no primeiro
e no último planos do filme, tours de force
totalizantes que curto-circuitam cinema e teatro. A
partir de um determinado momento, os trompe lils
que compõem o cenário de fundo de todos
os planos do filme começam a parecer mais reais
que os personagens à frente deles, fantasmas
tanto de uma História imutável como de
uma fábula indecifrável. O principal substrato
de Oliveira lá se encontra: o peso da História,
os amantes "separados pela Via Láctea",
a guerra perdida, o amor e o cinema como experiências
essencialmente insólitas. Mas O Sapato de
Cetim é uma viagem de descobrimento, é
um novo continente no qual podemos passar o dia com
o detalhe de que este continente nada mais é
do que a imagem projetada por alguma lanterna mágica
gigantesca. Mesmo que o tempo diegético seja
o passado histórico mais precisamente o chamado
Século de Ouro da Península Ibérica
, a sensação de se transportar a um universo
imaterial se torna cada vez mais forte ao longo do filme.
(L.C.O.Jr.)
OS CANIBAIS, Portugal/França/Alemanha/Itália/Suíça,
1988
A expressão "obra-prima" pode ser
aplicada a diversos títulos da filmografia de
Manoel de Oliveira. Uma delas, sem qualquer sombra de
dúvida, seria Os Canibais. A abordagem
original do diretor fica clara desde as seqüências
que abrem essa adaptação do romance de
Álvaro Carvalhal, concebida como uma ópera
inteiramente cantada, com música e libreto de
João Paes. Quando as personagens chegam em automóveis
contemporâneos a um cenário que localizaria
posteriormente a ação durante o século
XIX, Oliveira deixa patente que não se propõe
somente a narrar uma história de tons líricos.
À medida que vai se desenvolvendo o romance entre
o Visconde de Aveleda (Luis Miguel Cintra) e Margarida
(Leonor Silveira), uma franca sensação
de estranhamento domina o ar, seja na forma ritualizada
pela qual as personagens transitam perante a câmera,
seja no tom sutilmente irônico presente nos diálogos
e na forma através da qual estes vão sendo
cantados. A partir da meia-hora final, entretanto, toda
a ironia e a sutileza cedem lugar a um tom de deboche
e non-sense crescentes, despidos de qualquer
medo de atingir os píncaros do ridículo
durante as últimas seqüências. Estas,
sem dúvida, concebidas com uma cara-de-pau de
fazer inveja e pôr no chinelo mesmo os momentos
mais escrachados dos irmãos Farrelly. É
acima de tudo essa conclusão genial que faz de
Os Canibais um momento ímpar e inigualável
da história do cinema e que deixa claro que,
além de seus outros inúmeros méritos,
Manoel de Oliveira é também um grandessíssimo
sacana. (Gilberto Silva Jr.)
NON OU A VÃ GLÓRIA DE MANDAR, Portugal/França/Espanha,
1990
Non ou a vã glória de mandar é
o filme que marca o início dos anos 90 na obra
de Manoel de Oliveira e de sua prolífica produção
de um filme por ano. O filme começa num longo
plano de uma árvore em contra-plongée,
ao som de uma música sincopada, um quê
épica, um quê trágica. A câmera
circunda a árvore, que permanece sempre no centro
do quadro, e não vemos o chão, de forma
que esta paisagem africana aparece soberana e absoluta
contra o céu anil. Como a Árvore da Vida
bíblica, ela está ali em sua posição
central a zelar pelos homens e oferecer seus frutos
e folhas para os povos; num Jardim do Éden já
tomado pela guerra, ela assiste à expulsão
dos homens do paraíso, por sua sede de poder
e conhecimento. Esta imagem-síntese abre espaço
para todas as reflexões que o filme empreende.
Em 1974, em plena Revolução dos Cravos,
um jipe de soldados portugueses dirige-se ao acampamento
que os aguarda para uma campanha de combate a rebeliões
numa "colônia ultramarina" de África.
Começam a conversar descontraidamente sobre sua
missão e logo enveredam por discussões
profundas em torno do patriotismo e do ser português.
O Alferes Cabrita narra então aos soldados campanhas
militares portuguesas que não apenas figuram
de antecedentes históricos para a batalha que
enfrentarão, como definem a própria construção
de Portugal como nação, assim como sua
anima pátria. As palavras do Alferes ganham
representações histórico-ritualísticas
(que remetem num certo sentido a Acto da Primavera),
nas quais os personagens são encarnados pelos
próprios soldados. Assim sendo, somos envolvidos
por um sutil questionamento da primazia dos países
europeus sobre o resto do mundo (o eurocentrismo e sua
lógica interna) e pelo enraizamento dos descobrimentos
e das expansões territoriais portugueses na cultura
do país. A escolha do Alferes pela narração
de uma "grandeza" pátria advinda de
derrotas que marcam posição central na
História e na mitologia da nação
portuguesa faz surgir a imagem de um país que
repousa sua dignidade num sentimento trágico
único (que o próprio conceito intraduzível
de saudade encarna). Aprendemos então o projeto
do Quinto Império do rei D. Sebastião,
no seu ímpeto expansionista e imperialista (sobre
o qual O Quinto Império Ontem como Hoje
se detém), o Mito do Encoberto (retomado em Um
Filme Falado), que o envolve, e outras passagens,
como narradas por Camões, além da reflexão
do Pe. Antônio Vieira sobre o "non",
esta palavra terrível que residiria na origem
de todo ímpeto de guerra. Mas Manoel de Oliveira
reserva a tudo isto um olhar muito menos glorioso e
triunfalista do que qualquer patriotismo gostaria. A
encenação simples e "pobre"
de batalhas e eventos, que estamos acostumados a ver
de forma grandiosa nos filmes hollywoodianos, intui
uma fisicalidade quase trivial. A guerra é feita
de pessoas, que, fracas ou fortes, têm que portar
armas, vestimentas e aparatos, e que sentem medo e saudade
e seu sucesso depende sempre de condições
circunstanciais. O que vemos, por fim, é a morte:
o grito desesperado de dor de um africano, os leitos
repletos de homens invalidados, a vermelhidão
do sangue do Alferes. Considere-se toda a aura da História,
os mitos e lendas, a guerra por fim é isto. E,
por que não dizer, vã. (T.M.)
A DIVINA COMÉDIA, Portugal/França/Suíça,
1991
Bastaria a lembrança dos embates verbais entre
o Profeta (Luís Miguel Cintra) e o Filósofo
(Mário Viegas) para fazer de A Divina Comédia
um dos momentos inesquecíveis da carreira
de seu diretor. Não obstante, assim como Dante
no poema que dá título a este filme, Manoel
de Oliveira, à sua maneira bem pessoal, faz aqui
um breve inventário sobre a existência
humana. Tendo como cenário um asilo de loucos
onde cada interno encarna em sua pretensa insanidade
um personagem em particular, repetindo um universo bíblico
ou literário, Oliveira parte de um longo referencial
de obras literárias (Dostoievski), filosóficas
(Nietzsche) ou religiosas (Bíblia) para criar
um universo fascinante que expõe, reflete e debocha
sobre as mais diversas facetas da condição
humana. O que em mãos menos talentosas, ou mais
pretensiosas, poderia se concretizar em uma tediosa
e infinita catarata de referências eruditas, aqui
transforma-se, graças ao humor e à inteligência
de Manoel de Oliveira, numa de suas obras mais espirituosas
e, por que não, divertidas. O diretor apropria-se
de textos alheios com uma intimidade tamanha que acaba
por torná-los uma criação própria.
Faz também aqui um de seus mais preciosos trabalhos
de encenação, criando planos econômicos
na movimentação da câmera, porem
riquíssimos na apresentação de
detalhes. A Divina Comédia pode até
não se pretender como tal, mas não seria
exagero afirmar que ela possa ser vista como uma criação
que, parcialmente, sintetiza aspectos cruciais do espírito
de toda a obra anterior e posterior de Manoel de Oliveira.
(G.S.Jr.)
O DIA DO DESESPERO, Portugal/França,1992
Falar da morte como um gesto do corpo. Um suicídio
como um pulso. Filmar atores para falar dos mortos e
silêncios para intuir a vida. Mortos-vivos, objetos
encharcados de alma. Oliveira filma na própria
casa de Camilo Castelo Branco a narrativa de seu suicídio
sabe que um filme antes de tudo precisa saber habitar
a verdade-casa que o conduz. Manoel de Oliveira se debruça
na paixão levada ao extremo do consumo da vida,
do limite da vivacidade que se eleva a precipício
e faz isso a partir dos objetos que testemunharam, condicionaram,
narraram esse gesto. Desesperar-se aqui como esse ato
de explosão do corpo e do espírito, um
deixar de esperar, de se deixar no tempo O Dia
do Desespero tem sua secura e sua vivacidade justamente
nessa costura entre o inanimado contido na vida e o
animado pulsante na ausência. Um ensaio sobre
uma paixão que consome a si mesma e se interrompe,
abruptamente de uma vida capaz de gerar um sentimento
que a si mesma não abarca. A cadeira que se move,
a cortina que se fecha e se abre dando partida aos eventos
ou interrompendo a palavra, a roda da carroça
(plano divino, que é o tempo a prosseguir e a
se repetir a diferença e a repetição
que se enlevam no caminho que leva a casa onde se vive)
são pistas dessa reconstituição
poética. O Dia do Desespero é mais
do que um filme sobre Camilo Castelo Branco ou de descrição
de eventos pulsantes, é um filme que se esforça
antes de tudo para encontrar um fantasma, uma sombra
possível, um eco abismado como um respiro, que
intua na imagem e nas palavras o movimento desse extravasar
do corpo/gesto que é a morte voluntária,
que é a morte desejada. O desespero, gesto maior
como a alegria, é, assim, em Oliveira, a erupção
do espírito/corpo para além do teatro
da cena; algo que o cinema, por mais que se esforce,
só pode tentar encontrar em pegadas. (Felipe
Bragança)
VALE ABRAÃO, Portugal/França/Suíça,
1993
Se nada em Manoel de Oliveira é simples,
claro que ao se debruçar sobre Madame Bovary,
de Flaubert, não se poderia esperar que ele "simplesmente"
adaptasse o livro (como se isso fosse empreitada
simples, em si mesmo). Pois ele escolhe um dos trajetos
mais peculiares de sua obra: propõe à
escritora Agustina Bessa-Luís que escreva um
romance inspirado pelo clássico francês,
que se passasse em Portugal, nos dias correntes, e ele
se dedicaria, então, a adaptar este romance ao
cinema depois. Para além da prova de uma relação
de confiança e confluência de visões
artísticas raras, esta proposta permite ainda
a Oliveira brincar de forma rara com a noção
de adaptação, onde ele entra como o terceiro
vértice de uma troca de interpretações
do mundo, que se não bastasse a pessoas diferentes,
cria ainda um jogo masculino-feminino vibrante entre
Ema Bovary-Flaubert-Agustina-Manoel. O resultado é
um dos filmes mais importantes dos anos 90, e que, curiosamente,
embora tenha sido o filme de Oliveira que mais gerou
atenção na crítica francesa desde
suas primeiras exibições por lá,
foi preterido na competição do Festival
de Cannes, tendo estreado na paralela Quinzena dos Realizadores
(de onde saiu consagrado). Apenas por curiosidade histórica,
vale dizer que naquele ano O Piano e Adeus,
Minha Concubina dividiram a Palma de Ouro, e a lista
de filmes concorrentes incluía títulos
da estirpe de Um dia de fúria, de Joel
Schumacher e Quem não herda... fica na mesma,
de Robert M. Young. Entre os cineastas que concorriam,
podemos lembrar ainda nomes historicamente relevantes
como Ricky Tognazzi, Roger Planchon, Bartabas e Elaine
Proctor. O tempo é mesmo o senhor da História.
(E.V.)
A CAIXA, Portugal/França, 1994
O fim da noite revela um policial bêbado que passa
pelas ruelas de Mouraria, bairro de Lisboa. Seguindo-o,
descobrimos o cenário sobre o qual A Caixa
vai se fixar: uma ruazinha de ladeira pela qual
passa uma infinidade de trabalhadores, logo cedo pela
manhã, dirigindo-se a seus ofícios muito
freneticamente. Essa primeira parte do filme, para além
de descrever a geografia física e humana daquele
espaço, situa também um tempo, ou melhor,
contrasta um tempo da mobilidade (a modernidade dos
atarefados homens de negócios que passam com
seus ternos e pastas pelas ruas centenárias de
um bairro lisboeta) com um tempo anacrônico, imóvel,
estagnado dos costumes dos pobres da cidade. A cidade
corre, e com ela correm os trabalhadores, mas as ruas
e os moradores ficam. Quando a aceleração
da ida para o trabalho pára, o cotidiano do lugar
dá as caras: o bar abre e os clientes aparecem
para tomar umazinha, uma vendedora de tremoços
aparece à frente do bar (aliás Isabel
Ruth), e um ceguinho se posta em frente a sua casa (aliás
Luís Miguel Cintra), esperando para coletar doações.
A caixa do título é justamente a que recolhe
os dinheiros que os transeuntes oferecem ao pobre homem.
Ocasião, então, para Manoel de Oliveira
voltar os olhos para os costumes e o imaginário
de um grupo social que rarissimamente apareceu em sua
filmografia: a classe baixa, especificamente os lúmpen
(desempregados, malandros e ociosos de toda espécie).
Putas, cafetões, pequenos meliantes, vizinhas
fofoqueiras. O tempo se inscreve firmemente no registro
desse tempo que parece deslocado no mundo moderno. Tanto
que a tal rua da Mouraria é transformada em quadro
(pela pintora interpretada por Julia Buisel, colaboradora
constante de Oliveira como continuísta) e visitada
pelas turistas apalermadas. Quando o dá lugar
a um barraco entre vizinhas, A Caixa parece se
transformar numa homenagem a Recordações
da Casa Amarela, de João César Monteiro,
filmado quatro anos antes. Comédia doce e pitoresca,
aproveitando o melhor de um humor sempre presente mas
dificilmente comentado no cinema de Oliveira. Se o cinema
de Manoel de Oliveira funciona ao longo dos anos 80
para fixar a arte (a literatura, o teatro), o cinema
que ele faz a partir dos anos 90 serve para curto-circuitar
os tempos da vivência e os tempos da História,
para fixar uma vivência que já é
anacrônica e que se esvai (criar uma iconografia
do viver das gentes da Mouraria) e ao mesmo tempo refletir
sobre o tempo que faz com que as coisas durem por um
certo tempo e se acabem. Entre o roubo da caixa e uma
discussão sobre quem tem o direito de ser pedinte
("Como tem uma caixa se não é ceguinho?"),
A Caixa revela uma mordacidade sobre a natureza
humana igualada apenas poucas vezes no cinema de Oliveira
(A Caça vem à mente). (R.G.)
O CONVENTO, Portugal/França,1995
A duas semanas do início das filmagens, um ator
francês é substituído por John Malkovich
(artimanha do destino só para que Oliveira pudesse
trabalhar com um ator americano que se lhe mostraria
ideal?). Malkovich assina o contrato com uma condição:
só falará em inglês. Pierre Hodgson,
que depois acompanharia as filmagens e escreveria um
diário publicado nos Cahiers du Cinéma
nΊ 488 (fevereiro de 1995), precisou traduzir o roteiro
às pressas para entregá-lo ao ator o quão
antes. Dessa turbulência de antevéspera,
começava a germinar uma obra que seria paradoxalmente
marcada pela serenidade (mesmo frente à "tentação
diabólica"). Lá pela metade do filme
há uma cena em que o professor Michael Padovich
(Malkovich) recebe de presente uma tradução
do Fausto de Goethe: O Convento é
uma adaptação infiel dessa obra. Porque
Oliveira não é fiel senão ao seu
interesse inabalável pelas mulheres, aqui representadas
por Leonor Silveira, no auge da sua beleza, e Catherine
Deneuve, que mais de uma década antes havia escapado
por pouco do elenco de Amor de Perdição.
Ao lado de um humor negro sendo exercitado minuto a
minuto, o que se vê em O Convento é
uma das encenações mais rígidas
de Oliveira. O elenco multinacional criou uma curiosa
necessidade de controle na direção: durante
as filmagens, Oliveira procurava em seu Macintosh as
traduções em francês e inglês
para cada fala contida no roteiro. Fazer um filme em
três línguas diferentes equivale a rodar
planos em que três camadas possíveis de
significação estão se acumulando
uma sobre a outra e é preciso administrá-las
todas. Oliveira não pretende nunca deixar que,
por ruído de comunicação, de uma
hora para outra se esteja fazendo um filme que não
é o seu. Mas falem o que quiserem os atores (e
suas falas são todas extraordinárias),
o principal personagem do filme é o convento,
é a praia a seu pé, é o espaço,
o labirinto monástico composto de grutas, pequenas
capelas e estreitos corredores que terminam numa enorme
falésia. Os corpos dos atores são inscritos
em cenários que se encarregam de metade do sentido
do filme. Os corpos se fundem ao cenário que
não à toa dá nome ao filme. As
esculturas do convento, sedimentadas que estão
pelos séculos, segredam alguma coisa em seu silêncio
soturno. Os muros, as cavernas e as pedras também
falam, mesmo que se reservem ao sono silencioso provocado
pela crosta de tempo em que se deitam. Auxiliado e fascinado
por Piedade (Leonor angelical ou fatal?), Padovich se
entrega aos estudos que justificam sua ida àquele
lugar, querendo provar que Shakespeare era um judeu
fugido da Inquisição espanhola. Deneuve,
por seu turno, se envolve com Baltar (Luís Miguel
Cintra fazendo ninguém menos que o Diabo), num
enredo que tem o catolicismo como medula. Casamento,
adultério, sedução, consentimento:
forças inextricáveis dentro do filme.
O casamento, no fundo, acaba salvo por seu latente esfacelamento
"pecaminoso", sobre o fundo histórico-exótico
daquela locação (Viagem à Itália?).
E no fim das contas, tudo pode ser estória de
pescador, coisa bastante humana e sujeita a devaneios.
O estilo de Oliveira, como em Vale Abraão,
se depura. A grandiosidade do enredo, a magnificência
da paisagem, o uso sempre inesperado da música,
tudo continua lá. Mas o registro se acalma, se
abranda. Uma mesma incandescência, contudo, persegue
a inspiração de Oliveira ao filmar as
mulheres. (L.C.O.Jr.)
PARTY, Portugal/França, 1996
Party é provavelmente o mais relaxado
dos filmes de Manoel de Oliveira. Espécie de
filme-descanso de uma leveza única na obra do
cineasta, tudo nele parece procurar um efeito de suspensão.
Este é o grande segredo: a despeito de sua aparência
de filme menor, Party esconde um dos maiores
exercícios/ensaios sobre o tempo de cena na obra
de Oliveira (questão central por toda sua obra).
Boa parte do filme é dedicado à perseguição
de Michel Piccoli a Leonor Silveira, e o trabalho de
Oliveira aqui valoriza a criação de intervalos
que permitam ao veterano ator (em um momento notável,
vale dizer) contemplar a musa maior do cinema do cineasta.
Há uma rara sincronia entre o olhar de Piccoli
e o olhar da câmera de Oliveira, ambos intoxicados
da mesma maneira pela figura da atriz. A arte do diretor
reside toda na teia de tempo erigida para permitir que
este olhar se sustente. O filme é sempre mais
forte quando Silveira e Piccoli estão sozinhos
na tela (e mais fraco nos momentos em que precisam mover
o mínimo de trama que existe para justificar
a ação). É quando o intervalo é
instituído e o tempo para a dança de olhares
perpetuado por estes dois grandes atores se estabelece
que percebemos a força de Party, decerto não
um Oliveira maior, mas ainda assim um exemplo de grande
cinema que com freqüência acaba sendo injustamente
deixado de lado dentro da sua filmografia. (Filipe Furtado)
VIAGEM AO PRINCÍPIO DO MUNDO, Portugal/França,
1997
A quase abstração do plano inicial de
Viagem ao Princípio do Mundo (a estrada
e suas linhas demarcatórias vistas em velocidade,
de um ponto de vista que olha pra trás) é
ponto de partida para uma viagem pessoal movida pela
memória. Manoel de Oliveira insere-se no filme
como o chauffeur que conduz os personagens Portugal
adentro, em busca da aldeia onde viveu o pai de Afonso
(Jean-Yves Gautier). Afonso é ator do filme que
Manoel (Marcello Mastroianni) está rodando em
Portugal e conta com a ajuda dos amigos Duarte (Diogo
Dória) e Judite (Leonor Silveira) para orientá-lo
na viagem. A aldeia remota, esse princípio do
mundo, no interior de um país que impulsionou
uma expansão sem precedentes, é um reduto
de memórias fantasmáticas, de um tempo
e um espaço ainda desconhecido para os personagens.
Duarte e Judite compartilham com Afonso o interesse
por estas imagens abstratas, frutos da vivência
de uma terceira pessoa. Manoel, alter-ego direto de
Oliveira, guarda uma identificação secreta
com elas, pois ele, que carrega já o peso da
idade, também viveu seu passado nas terras daquele
país e a viagem do amigo atrás das vivências
do pai atravessa as próprias lembranças
e marcos de sua vida pregressa, manchas quase esquecidas,
que se tornaram parte integrante da paisagem que o carro
percorre. E que ele, Manoel, trata de sublinhar, de
suspender pra fora da poeira. Permeia o filme uma fascinação
incrível com as imagens dos lugares pelos quais
passam os personagens. Os planos que olham pra trás,
de dentro do carro, denotam um movimento no interior
de um labirinto, se aprofundando em direção
a um útero da cultura-nação portuguesa.
Por fim, a sensação que temos é
de uma só memória, uma memória
atávica de uma terra em um tempo que já
se foi e que, de alguma forma, reflete ainda em todo
o presente. As histórias de Manoel, revividas
quando ele passa pelos sítios de sua juventude,
quase se fundem às narrativas que Afonso ouviu
do pai quando criança e agora repete aos companheiros,
em sua busca por lugares concretos onde ele possa repousá-las.
Viagem ao Princípio do Mundo, em sua fascinante
construção ficcional, é uma auto-biografia
indireta de Manoel de Oliveira, baseada numa história
vivida por João Bénard da Costa (personificado
no filme por Duarte), e ganha uma espécie de
"complemento oficial" quatro anos depois,
em Porto da Minha Infância, no qual ele
tematiza diretamente suas memórias. É
também o último filme de Mastroianni,
que morre pouco após as filmagens. (T.M.)
INQUIETUDE, Portugal/França/Suíça/Espanha,
1998
O desejo da imortalidade é o ponto soante que
faz de Inquietude algo muito além de um
justapor de narrativas curtas. A encenação
diretamente teatral, o drama romântico e a fábula
são aproximados em três episódios
ecoados entre si, numa habilidosa costura de registros
onde o narrar se faz como exercício de busca
e de farsa diante da vontade de uma vida infindável.
A imortalidade construída do gênio acadêmico,
a imortalidade trágica da heroína romântica,
a imortalidade condicional da mãe mítica
de Portugal são impulsos e condições
entrecruzadas, possibilidades do espírito em
se desdobrar para vencer a finitude. A Inquietude
de que fala o título é a persistência
do espírito diante do vazio mortuário,
é a possibilidade do eterno descoberto como um
pulso, um certo tempo em atuação. Dentro
do sentido de organismo em que todo o filme acontece
na tela, a brevidade das três narrativas só
vem corroborar a beleza dessa força fugaz: é
como se elas mesmas, as narrativas, passassem como sombras,
como precárias tentativas de dar eternidade aos
gestos. E é essa a graça do olhar no cinema
de Oliveira, é essa a divindade: um divino desencantamento,
alegre e admirado, diante do inevitável. Não
um desencantamento cômodo como alguns poderiam
pensar de maneira rasteira, mas um desencantamento que
é um convite à agitação
do espírito: A vida é vã. Resta-nos
se inquietar. (F.B.)
A CARTA, La Lettre, Portugal/França/Espanha,
1999
O olhar hipnótico de Chiara Mastroianni guia-nos
por um estranho interstício entre uma aristocracia
contemporânea (cujas cortes, conversas, polidez,
comedimento e cumprimentos perfeitamente alinhados nos
fazem pensar num tempo que parou dentro dos espaços
fechados em que esta circula) e um mundo moderno guiado
por uma dinâmica acelerada e por uma liberdade
cujos meandros parecem por vezes quase insondáveis.
Esta atmosfera de entre, na qual se passa A
Carta, é fruto principalmente da sagaz e
cuidadosa transposição feita por Manoel
de Oliveira do romance La Princesse de Clèves,
de Mme. De Lafayette, do século XVII para o século
XX. Mme. de Clèves (Chiara Mastroianni), educada
por sua mãe "à moda antiga",
cultiva um certo estoicismo, que a afasta, inclusive,
de um romantismo antiquado. Ela renuncia ao amor apaixonado
de François de Guise, rapaz da sua idade, para
casar-se com M. de Clèves e praticar o casamento
como obrigação social e moral e arte do
consentimento. Mas os sentimentos irrompem para ela
onde menos eram esperados. Um sutil sorriso revela que
a voz de Pedro Abrunhosa, cantor português de
jazz-rock em apresentação especial num
reduto freqüentado por pessoas de boa família
e amantes da boa arte, despertou nela o amor. Mme. de
Clèves cai então numa fenda entre o mundo
que habitava e este mundo que permeia as ruas de Paris
do ano de 1999. Seu profundo respeito pelos princípios
do casamento e firme esforço de preservação
de sua "honra feminina" levam-na à
reclusão e a buscar conforto com sua amiga religiosa
(personagem não-existente no romance). Abrunhosa
aproxima-se cada vez mais, com sua fama de bon-vivant
e seu jeito silencioso, um quê desajustado ao
tempo-espaço em que vive Mme. de Clèves.
Vivemos um estranhamento freqüente, que não
permite nos situarmos. O aparente elogio de valores
ultrapassados, frente a uma modernidade que suscita
desconfianças, revela, na verdade, a compreensão
da permanência profunda de um certo "conservadorismo"
do comportamento social. A conversa sobre a honra, a
fidelidade e o respeito, a despeito dos sentimentos
(que o romantismo ensinou a serem soberanos), entre
Mme. de Clèves e seu marido, é subitamente
interrompida por um jovem português imigrante
que pede dinheiro para voltar à sua terra, pois
na França só experimentou a miséria.
É como se bruscamente o presente de uma Europa
globalizada invadisse o universo sectário em
que vive a personagem, criando um curto-circuito entre
diferentes realidades que convivem lado-a-lado e chegam
mesmo a se confundir dentro de uma única pessoa.
Atormentada por seus ensejos que não podem se
consumar, Mme. de Clèves se exila na África,
para tentar retomar um sentido em sua vida através
de ajudas humanitárias. Todo o fardo de séculos
passados encontra a grande mácula do nosso momento
histórico; quem sabe, equacionados, eles produzam
alguma saída conjunta... Tudo isto faz de A
Carta, antes de mais nada, um filme sobre as implicações
do adaptar. Porque adaptar, além de configurar
uma transposição de formas expressivas,
é criar uma afirmação num tempo-espaço
presente. As cartelas empregadas no filme, que servem
em grande parte para "avançar" a história,
são em si intertítulos literários
que remetem à forma original da narrativa, enquanto
a composição visual do filme exacerba
toda a estética oliveiriana de um distanciamento
que contempla quase de fora do tempo os movimentos que
se dão entre os homens. E neste tempo sem tempo
em que vive este filme, nos perguntamos a todo instante
sobre as heranças que circulam na sociedade e
muitas vezes vêm nos habitar desde cedo. (T.M.)
PALAVRA E UTOPIA, Portugal/França/Espanha/Brasil,
2000
A palavra fricciona a imagem. A palavra cria o mundo.
E o mundo é o cinema. Palavra e Utopia
não é um filme histórico, nem biográfico.
Trata-se de um elogio à potência da instauração
de verdades, de reformulação de verdades
a partir da retórica e da arquitetura discursiva
não vista como farsa, mas como potência
do falso, do desvio do já dado como real. Padre
Antônio Vieira aparece menos como personagem do
que como acontecimento da língua portuguesa nesse
filme fundamental (quase didático) para o desvendamento
da obra de Oliveira. Ao mesmo tempo seco e divino, o
lugar-Padre Antônio Vieira é a imagem de
um discurso reflexivo e irônico, ciente de sua
finitude e vigoroso em sua força criativa. A
Palavra falada contra o oceano é uma imagem recorrente
do filme, a Palavra de encontro a vastidão inaudita.
Manoel de Oliveira faz da palavra em seu cinema uma
faísca que coloca em movimento, em desvio, a
eternidade já vista da imagem pronta é
como se as palavras, vistas como imagens e sonoridade,
pudessem secretar divergências, descaminhos diante
da cristalização do olhar que apenas contempla.
No cinema de Oliveira, a palavra enquanto elemento físico
de luz (cartelas) e de som (palavra dita), aparece como
catalisadora do impossível, da imaginação,
do inesperado. Utopias que (ainda que se findem em si
mesmas) fazem de seu sentido cênico a força
para a perpetuação do movimento da vida.
(F.B.)
VOU PARA CASA, Portugal/França, 2001
O mundo pondo-se em abismo. O mundo do rei, que sente
faltarem-lhe as forças, físicas e morais,
para conduzir seu reino, na peça Le Roi se
meurt. Em seguida, o mundo do ator Gilbert Valence,
interpretado magistralmente por Michel Piccoli, que
recebe a notícia da morte da filha, da esposa
e do genro num acidente de automóvel. Só,
ele deve amparar o neto pequeno e enfrentar as pressões
de um mundo que parece ameaçá-lo de todos
os lados, em sua dinâmica vertiginosa. Paris,
cidade de confluências culturais mil, das ruas
animadas por lojas, cafés e passantes os mais
variados, ilumina-se para celebrar a passagem de século
(e de milênio). É o tempo que anda e a
morte que está sempre à espreita. Gilbert
tenta preservar sua carreira de ator de teatro, assim
como o dia-a-dia tranqüilo que ele soube recuperar
após a tragédia da perda da família.
Mas em toda progressão, ainda que lenta, há
um momento de irrompimento. De súbito, em meio
à filmagem de uma adaptação de
Ulisses, de James Joyce, Gilbert sente o cansaço
se apoderar de seu corpo e de seu espírito e
deseja apenas retornar a algum aconchego possível.
A razão, a reger os comportamentos individuais
e o funcionamento social, entra em colapso e quase sucumbe
frente a outros imperativos humanos. Serge vê
o avô dirigir-se ao quarto, em busca de um conforto
acolhedor e percebe que seu apoio ruiu e que ele não
pode mais repousar sobre aquela fortaleza de experiência
e sabedoria. Talvez seja agora o avô que precise
dele. Seu mundo então se abisma também
e ele vem pra frente da imagem, observar singelamente
as perspectivas em brusco desalinho diante de si. Neste
belo retrato de um entrecruzamento de movimentos do
mundo e movimentos pessoais, Manoel de Oliveira insere
cuidadosamente reflexões suas sobre a globalização,
as lógicas da mídia e o ser do ator. Ao
contrário da desumanização dos
filmes de ação, sexo e violência,
movidos pelo lucro, o teatro, que se ergue todo em torno
do ator, permite a este um contato direto com seu público
(o tempo de uma experiência presente) e uma expressão
ampla em cena. Gilbert talvez consiga levar bem a vida
após o que se abateu sobre ela, porque no palco
tem sua força renovada. Vive tragédias,
inventando e reinventando minúcias de expressão.
Tem autoridade sobre o seu personagem e liberdade de
ação ética que o próprio
Manoel de Oliveira reivindica em relação
a seus atores. Vou para Casa conta ainda com
um excepcional trabalho de som, especialmente no que
tange a uma dialética entre o espaço interno
e o espaço externo. (T.M.)
PORTO DA MINHA INFÂNCIA, Portugal/França,
2001
Assim como O Dia do Desespero estava para Camilo
Castelo Branco, Porto da Minha Infância
está para a cidade do Porto, ambos sendo trabalhos
muito pessoais este até mesmo autobiográfico
aonde Manoel se aproxima destes assuntos (Camilo lá,
Porto aqui) de forma bastante particular, quase documentários.
Quase porque o documentário via Manoel só
pode se dar através de uma mescla de encenações,
imagens e de seus próprios depoimentos. Oliveira
reconstrói seu percurso e a partir dele constrói
seu olhar sobre o Porto, recheado de detalhes, mostrando
a cidade em sua funcionalidade estrutural e cultural.
Há no Porto ainda algo de fascinante que
é como Oliveira trabalha a imagem enquanto história,
visto que trata de maneira igual as mais variadas imagens
de diversos momentos, sejam eles os momentos encenados
ou não, sejam do começo ou do final do
século. Além de uma verdadeira coletânea
daquilo que de melhor há no cinema de Manoel
de Oliveira, com espaço para a arte como um todo,
participação de seus colaboradores mais
próximos, sejam atores (Leonor Silveira, Ricardo
Trepa, entre outros), escritores (Agustina Bessa-Luís,
sua eterna parceira de tantos projetos), muitos daqueles
que de alguma forma foram e são importantes para
Manoel. Há ainda a seqüência em que
ele retrata o momento em que a arte o tocou diretamente
pela primeira vez em um teatro: o retrato da peça
(Miss Diabo), além de sensacional enquanto
uma encenação, inclui o próprio
cineasta em cena, atuando e cantando. São muitos
os momentos regidos por Manoel que impressionam aqui
de forma muito forte "regidos" sendo uma
expressão importante, já que o próprio
cineasta abre o filme com o corpo de um maestro regendo
uma orquestra fora de cena, o que dentro de uma obra
autobiográfica não diz pouco. (G.M.)
O PRINCÍPIO DA INCERTEZA, Portugal/França,
2002
Quantos outros filmes de Manoel de Oliveira poderiam
igualmente se chamar O Princípio da Incerteza?
Muitos e nenhum: "Quando penso nesse filme,
esqueço todos os outros", disse Oliveira
à época do lançamento. Após
Porto da Minha Infância, ele realizou essa
que é uma das suas obras-primas dos últimos
anos. Um retorno aos "amores frustrados",
e possivelmente o mais belo elogio às duas musas
contemporâneas de seu cinema (Leonor Baldaque
e Leonor Silveira). De uma maneira muito curiosa, o
filme funciona como um balanço crítico
da parceria entre Manoel de Oliveira e Agustina Bessa-Luís:
O Princípio da Incerteza condensa todas
as formas femininas do cinema de Oliveira desde Francisca,
e através de Baldaque, neta da escritora, e de
Ricardo Trepa, neto do cineasta, ainda inscreve seus
autores na obra. Camila, que em sua passividade esconde
uma força terrível, revela alguma coisa
que, segundo Oliveira, Bessa-Luís desgosta em
si mesma, e Touro Azul, tipo esportivo, saudável,
adepto do automobilismo, lembra o diretor quando tinha
mais ou menos aquela idade. O filme é um encontro
mágico de forças distintas e de cores
singelas porém pregnantes a fotografia de Renato
Berta tem o encanto de destacar um vermelho em meio
a todo o resto e fazer uma tomada geral da cidade iluminada
funcionar como um espelho (mágico?) do céu
estrelado. Cada plano filmado da janela de um trem parece
conter o segredo de como se filma um tal deslocamento;
é como se ninguém nunca tivesse colocado
uma câmera na janela de um trem da forma devida.
Na cena do casamento, igualmente, a câmera escolhe
o ângulo ao mesmo tempo mais inusitado e ineditamente
mais apropriado: coloca-se no lugar que receberá
o bolo, à sua espera, mas sem abrir mão
de uma certa complacência diabólica. Anjo
e demônio estão lado a lado nesse filme.
Dreyer, Buñuel e Bresson são atravessados
por planos de discreta semelhança. Obra fascinantemente
ambígua como todos os sorrisos de Leonor Baldaque
, o filme recebeu uma continuação em
Espelho Mágico (2005). (L.C.O.Jr.)
UM FILME FALADO, Portugal/França/Itália,
2003
Num mundo sob a sombra de um Império centralizador
(ameaçado num certo 11 de Setembro), refazer
a viagem às Índias, na companhia de relatos
provenientes dos livros de História sobre grandes
acontecimentos das civilizações fundadoras
do Ocidente, é uma aventura incerta. O cruzeiro
que leva Rosa Maria e sua filha Maria Joana pelos grandes
pontos turísticos (que são também
marcos históricos) do Mediterrâneo reaviva
uma sensação de encantamento por uma vastidão
espacial e cultural, assim como de descoberta e desbravamento
do mundo. Um mundo cujo passado Rosa, professora de
História, conhece bem, mas só agora tem
a oportunidade de presenciar materialmente. E é
esta presença material que Manoel de Oliveira
tenta imprimir na imagem de seu filme. Os longos planos
sobre pedaços de monumentos, como o chão
de uma mesquita ou uma ruína grega, nos fixam
o olhar sobre um corpo que guarda marcas da História.
Uma matéria cuja alma (sua aura significante)
em muito ultrapassa sua existência física.
Preservar (e poder encontrar) todos estas célebres
construções, das quais muitas vezes apenas
ouvimos falar, é possibilitar que novas gerações
tomem conhecimento de tudo que as precedeu e possam,
munidas desta bagagem, refazer seus percursos e repensar
seu mundo, para definirem com clareza as direções
do futuro. Maria Joana escuta atentamente a mãe,
enquanto as histórias que ela conta vão
se presentificando diante dos seus olhos, revestindo
cada local por onde ela passa. Apreensiva pela explicação
da lógica da guerra ("uns querem tirar dos
outros"), a menina preocupa-se imediatamente com
a sua boneca árabe, que ela aprendeu a amar.
Em sua promessa infantil, de não deixar que nada
aconteça à boneca, Maria estabelece um
elo Ocidente-Oriente de natureza ética que contraria
não apenas um quase-atavismo histórico,
como todo o fluxo atual de pânico antiterrorista.
E, para resgatar a boneca, ela e sua mãe sucumbem
na explosão de uma bomba colocada no navio, muito
provavelmente quando atracaram num porto árabe.
O cruzeiro não se completa, o mundo está
em curto-circuito. O comandante, no barco salva-vidas,
permanece estático, na sua expressão de
choque e indignação por ter falhado no
seu dever de olhar por seus passageiros. As palavras,
antes abundantes, em diversas línguas, em conversas
as mais variadas sobre o passado e o presente nas
explicações de Rosa Maria, em suas conversas
com o pescador ou com o padre ortodoxo, nas falas-nação
na mesa de jantar junto ao comandante do navio agora
faltam. A perplexidade da incerteza absoluta da chegada,
ou do sucesso da empreitada se instala. Um Filme
Falado é o grande filme-testemunho de nossa
época. (T.M.)
O QUINTO IMPÉRIO ONTEM COMO HOJE, Portugal/França,
2004
O maravilhoso texto de José Régio, El
Rei Sebastião, narra os momentos anteriores
à batalha de Alcácer-Quibir, onde o Rei
desapareceu. Manoel de Oliveira, com sua mise-en-scène
sem igual, dá força às palavras
do texto graças também às inspiradas
interpretações de Luís Miguel Cintra
(como Simão, o sapateiro santo) e Ricardo Trepa
(como o Rei). Novamente a penumbra, e a simetria dos
enquadramentos a emoldurar o cenário que se descortina
misteriosamente a nossos olhos, revelando a mente conturbada
do rei. O mito do rei Sebastião é uma
constante nos filmes de Oliveira, desde a introdução
de O Sapato de Cetim, radical experiência
de sete horas de duração, até Palavra
e Utopia, nos sermões de Padre Antonio Vieira,
mas também em Non, A Vã Glória
de Mandar, sem contar as diversas citações
em outros filmes. Em O Quinto Império,
o mito é estudado com carinho, com um cuidado
especial para detalhes, e com uma generosidade rara
no que a câmera capta. Tomemos como exemplo a
cena em que os dois bobos da corte conversam aos joelhos
do rei. Quando eles saem de cena, a câmera permanece
à altura deles, tomando apenas a parte inferior
das pernas do rei, enquanto este fala. Oliveira ainda
nos presenteia com exemplos da mais fina sensibilidade,
seja na espada que cai em câmera lenta, seja na
escada que leva a mãe para seus aposentos, tomada
em contra-plongé, ou ainda na cara de
cera dos conselheiros congelados. Após um diálogo
belíssimo de 50 minutos entre o rei e o sapateiro,
só resta uma constatação: o rei
está louco, prendam o rei. (Sérgio Alpendre)
ESPELHO MÁGICO, Portugal, 2005
Se Espelho Mágico é uma continuação
da narrativa de O Princípio da Incerteza
no que diz respeito à continuação
da trajetória do Touro Azul, o filme é
ao mesmo tempo uma inversão dos papéis
das duas Leonor no que diz respeito ao status social,
à questão do dinheiro, da sacralidade
e da perfídia. Leonor Baldaque, que outrora interpretava
a santa diabólica, agora aceita dinheiro para
atividades excusas, no caso uma contrafação
sem maiores implicações. Leonor Silveira,
prostituta de luxo em O Princípio...,
agora é a rica que decide montar um teatrinho
sobre a riqueza da família da Virgem Maria para
saciar seu próprio ego e morrer em paz consigo
mesma. A esse teatro aristocrático da crença,
os plebeus respondem com um teatro pagão: Touro
Azul e Filipe Quinta pagam a Vicenta, uma moça
com ar virginal que precisa sustentar uma criança,
para que "interprete" uma aparição
da Virgem Maria para Alfreda. Mas nenhum dos teatros
de fato chega a funcionar. Antes que qualquer dos dois
pudesse de fato ser acionado, Alfreda cai doente, e
logo mergulha num coma. Se algumas das elipses dessa
parte final de Espelho Mágico terminam
por acavalar determinadas situações de
forma algo desajeitada, a compensação
vem logo a seguir, em duas seqüências primorosas.
Numa delas, a câmera assume um lugar impossível,
a visão subjetiva de Alfreda em coma, e registra
num ângulo totalmente enviesado a visita da comatosa
pela Praça de São Marcos em Veneza, pela
Igreja do Santo Sepulcro em Jerusalem e por uma parte
da Via Crucis, hoje transformada numa ladeira comercial.
A segunda é o epílogo, em que Filipe Quinta
e Vincenta estão sentados num banco, e o filho
dela corre, brincando pelo jardim, até que olha
para a câmera. Os créditos sobem com Bahia,
marido de Alfreda, regendo, entre bonachão e
sem jeito, uma pequena orquestra de jovens músicos.
Enésima formulação de Oliveira
sobre a importância da vida e a jovialidade mesmo
em idade avançada, mas nem por isso menos comovente.
Se a Graça não é alcançada,
resta a graça do bem viver. (R.G.)
DO VISÍVEL AO INVISÍVEL, Brasil, 2005
Mais recente trabalho do realizador, e até onde
conste, seu único realizado em suporte digital.
Filmado no Brasil, o filme remete ao início da
carreira de Oliveira por ser um curta feito por encomenda
- no caso, de Leon Cakoff, organizador da Mostra de
Cinema de SP, para um projeto de longa que unisse filmes
de vários realizadores sob o título geral de
Os Invisíveis. Oliveira faz, em oito minutos,
um jogo de desencontro entre duas pessoas em plena Avenida
Paulista: Leon Cakoff e Ricardo Trepa, interpretando
eles mesmos, se esbarram na rua e tentam conversar,
sendo constantemente interrompidos pelos seus celulares
que tocam. O que num primeiro olhar seria apenas
uma crítica (quase tola) à vida moderna,
logo dá a volta no espectador apressado, porque
será a partir da mesma ferramenta que os separa
que eles conseguirão a comunicação.
Ou seja: Oliveira continua professando a fé de
que, não importando a partir de que meios ou
em que tempo, a comunicação é possível.
Um trabalho claramente de realização apressada,
onde em especial os dois atores parecem bem pouco confortáveis
com suas "improvisações", mas
que possui ao menos um plano belíssimo: o que
mostra o fluxo dos carros da Avenida Paulista de forma
muito parecida com tantos planos dos rios portugueses
na obra de Oliveira. (E.V.)
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