Quando
a voz de Eduardo Coutinho, no início de O
Fim e o Princípio, anuncia a proposta do
filme, estamos com as regras dadas. Diz o diretor que
quer histórias: não importa quem as conte,
desde que, seguindo o modelo de seus filmes, o narrador
seja performático. Seguindo um método
apenas parcialmente aleatório, escolhe uma cidade
da Paraíba como endereço de sua viagem.
Tanto faz se encontrará de cara auto-narradores,
como quer, ou se passará o filme inteiro procurando
por eles.
O Fim e O Princípio começa, assim,
como uma aventura – mas com resultado garantido. Cria
um solo de acasos para depois tentar atravessá-lo;
mas, se não atravessar, torna-se um filme prisioneiro
desses acasos. Nunca um filme de Coutinho, desde Cabra
Marcado para Morrer, tematizou tanto seu próprio
processo. Começamos a nos relacionar com as imagens
já sabendo que, para o bem ou para o mal, essas
são sobre a procura de um diretor por seu material.
Essa procura dá uma engasgada no começo,
mas, depois de eleger uma moradora de um povoado no
sertão como "relações públicas"
nos contatos iniciais com os entrevistados, Coutinho
encontra seu filme: um ou outro resiste a falar, mas,
aos poucos, vão se revelando. Contam da infância
com enxada na mão, sobre os namoros e casamentos,
até demonstrarem medo, ou ao menos consciência,
da morte não tão distante.
A maioria dos entrevistados é de pessoas idosas.
Dois deles acreditam que, quando o filme estiver pronto
e Coutinho retornar lá para exibi-lo, já
não estarão vivos para assistir. O próprio
diretor, incorporando a dúvida dos entrevistados,
vacila em uma despedida: "Se pudermos voltar aqui.....".
Se revela em mais de um momento que os sertanejos têm
pensamentos sólidos sobre a vida, praticando
uma filosofia na qual os conceitos são fundidos
à experiência real, O Fim e O Princípio
expõe, antes de mais nada, a postura de seu diretor
em seu espaço de filmagem. Nunca ouvimos tanto
a voz de Coutinho, nunca ele teve de intervir tanto
para arrancar palavras dos interlocutores, nunca sua
respiração foi tão audível,
nunca o jogo foi tão invertido. Se no final de
Peões, ele era questionado se queria ser
peão, respondendo com uma negativa, agora a inversão
é mais complexa. Quando um dos entrevistados
passa a ser entrevistador, perguntando se o diretor
acredita em Deus, Coutinho tenta escapar com meia resposta.
Diz que a questão, claro, é muito complexa.
Dentro de seu esquema de realização, essa
fuga da resposta é necessária.
Escreve-se muito que, se Coutinho extrai ótimos
depoimentos, como nenhum outro diretor de filmes-conversas
ou filmes-entrevistas, é por conta de suas perguntas.
Ele saberia interrogar na hora certa e a questão
precisa. Talvez seu ponto forte, mais que perguntar,
seja a habilidade para ouvir. Mais importante que suas
intervenções, às vezes até
banais, às vezes engasgadas, é sua disponibilidade
para escutar. Talvez seja essa generosidade de dar voz
sem inquerir demais que conquiste a confiança
de seus entrevistados. E parte desse êxito é
fruto da capacidade do diretor ser uma folha em branca
na qual as pessoas escrevem com suas vozes. Por isso,
Coutinho, quando perguntado se acredita em Deus, escapa.
Responder seria criar uma significação
para si, preencher a folha em branco e contaminar a
relação com quem fala.
Mantendo-se ainda mais como um ouvido que como entrevistador
propriamente dito, mesmo nesse filme tão próximo
dele quanto de seus interlocutores, Coutinho vai colhendo
os frutos da intimidade instantânea. Toda a força
emotiva de O Fim e O Princípio surge,
acima de tudo, pelo caráter aleatório
daqueles encontros. Quando um afeto brota em suas relações
temporárias e funcionais, já está
na hora da equipe sair dali e romper os laços
recém-criados. Essa ausência garantida
de antemão, mais que a presença (de equipe,
diretor, entrevistados), ressalta a impressão
de finitude. Alguns intuem que jamais verão Coutinho.
Esse "jamais", queira-se ou não, tem
estatuto de morte. De um nunca mais. De um desaparecimento.
Quando o diretor vai se despedir, portanto, há
uma despedida maior ali. Não se trata de um "até
logo", mas de um "adeus", ao menos até
a vida prove em contrário. Mas um adeus que,
quando chega às telas, "bergsonianamente",
presentifica os encontros do passado, fazendo da memória
uma eternização, portanto, parte de todos
os presentes a serem vividos.
Cléber Eduardo
|