O CINEASTA E A TELA

As imagens de Manoel de Oliveira presumem, cada uma delas, uma tela na qual irão se "alocar" a luz, a cor, o som e o corpo móvel ou estático de homens ou outros entes físicos, que carregam consigo auras de ordem não-material, como os sentimentos, a História e a Arte (em termos de "efeito"). Estas imagens inscrevem-se no interior de um quadro. Quadro que se fixa sobre uma cena ou sobre detalhes do mundo no entorno dos personagens. Se fixa como se tentasse capturar parte desta aura que emana da materialidade do mundo, mas que é cuidadosamente intuída por uma câmera preocupada prioritariamente com o registro, com a capacidade de imprimir imagem em película.

Estes "procedimentos" de composição imagética tornam-se mais evidentes (e talvez mais rígidos) a partir da década de 90, quando a obra de Oliveira ganha uma consistência diferente, em termos de unidade formal e constância produtiva. A impressão de suas imagens ganha uma expressa frontalidade, de ares extremamente pictóricos. Não uma frontalidade à maneira teatral, que pressuporia o ponto de vista de um espectador diante da organização de um palco clássico (ou de uma superfície plana perpendicular a este ponto de vista), mas correspondente a um ponto de vista qualquer que inspiraria uma pintura. Uma pintura que não se esforçaria para restituir a tridimensionalidade do espaço, pois a pouca profundidade de campo e uma grande distância focal são marcas características freqüentes desta imagem-pintura, que se "achata" com grande nitidez sobre a tela. (imagem 1)

Esta "tela", que se estabelece sobre uma realidade pró-fílmica, é profundamente independente da ação e do drama que ela por fim faz construir. É um quadro cinematográfico que passa ao largo do princípio do observador ativo de Pudovkin. O importante não é reconstituir para o espectador um acontecimento centrando-se sobre todos os seus aspectos significativos, elaborando uma decupagem que represente sempre o melhor ponto de vista para cada uma das "facetas" da ação que se desenrola e que melhor capte estes dados primordiais para a erguimento da narrativa. Para Oliveira, cada imagem é, sim, fruto de um ponto de vista, mas um ponto de vista que não diz respeito nem a uma câmera a serviço de uma narração invisível, nem a um personagem que estaria inserindo o espectador no filme por meio da identificação pelo olhar. (imagem 2) Os pontos de vista sobre uma mesma cena multiplicam-se pelo espaço sem serem "restituídos" a personagens (mesmo quando um contracampo revela tratar-se de alguém que olha algo). Não há curto-circuito entre o olhar da câmera, o olhar de um personagem e o olhar do espectador, pois o tempo alongado dos planos, a recusa do raccord perfeito, que garantiria uma montagem invisível, e a não-adequação de distâncias e ângulos com o posicionamento dos personagens na cena não permitem a criação de uma unidade espaço-temporal em perfeita continuidade. Temos o registro de planos relativamente estanques uns em relação aos outros e que dizem respeito a um ponto de vista possível frente a acontecimentos do mundo: estátuas, jardins, uma conversa entre duas pessoas... Um ponto de vista que um pintor poderia eleger para um quadro e que traduzisse as melhores escolhas para alguém preocupado em encontrar as linhas, os volumes, as distâncias e os tempos corretos para cada composição. Este quadro, que se movimenta e termina quando julga que é devido, de acordo com as dinâmicas próprias de sua potência de imagem, coloca-se então frente ao espectador para ser contemplado e indagado ativamente.

Manoel de Oliveira, ao "costurar" estes quadros, que são seus planos cinematográficos, dá unidade à sua narrativa, mas não à construção do seu espaço ficcional, que permanece lacunar. E é justamente nestas lacunas que se insere grande parte do mistério do seu cinema. Nelas ocorrem movimentos invisíveis, não-perceptíveis nas expressões plácidas dos seus atores, ou nos acontecimentos sem sobressaltos das tramas que se desenvolvem em conversas quase sempre profundas e turvas. Este algo que escapa, que se nos faz sensível no momento da projeção, é justamente a aura indefinível que atravessa os corpos que ele filma e que torna seu universo ficcional tão atraente quanto imperscrutável.

O que há de extremamente revolucionário nesta linguagem construída a partir de aparentes classicismos (de composição, de influência teatral na interpretação, etc.) é, principalmente, o rompimento com a "funcionalidade" da decupagem. Cada quadro busca um "efeito" da imagem na sua relação com o som. Calcado sobre fatos apresentados como concretos e plenamente observáveis, este conjunto expressivo (som e imagem) funda-se numa imaterialidade inerente e está fadado a sempre esvaecer como um fantasma. Mas se o registro do movimento pode nos fazer em certa medida reter o tempo, encarar diretamente fatos em sua difícil apreensão pode nos aproximar de um entendimento (afetivo) das coisas do mundo. E este "olhar objetivo", que pressupõem as imagens de Manoel de Oliveira, parece ser justamente o "olhar sem partido" que ele lança sobre o vasto mundo que o cerca. A religião, a literatura, a História, as Artes, as relações de classe, os comportamentos sentimentais, todos compõem seu "universo pessoal" e figuram em suas obras como "elementos naturais" do mundo, sobre os quais ele irá pintar. Pintar com impressões, não com julgamentos ou idéias. Com a impressão, dentro do esquema representativo dos filmes, de efeitos provocados por estes elementos, seja por sua simples existência ou pela observação de seus mecanismos em funcionamento.

Por fim, talvez o filme que mais explicite a composição de Oliveira seja O Pintor e a Cidade. Da mesma forma que o pintor escolhe onde posicionar sua tela para nela registrar o que ele vê e sente, Manoel escolhe onde posicionar sua câmera para registrar algo que possa dar a ver e sentir. Reunindo forças expressivas diversas, o cinema é, para ele, a arte que pode agrupar traços estéticos de outras artes, mas estará sempre fundado numa lógica de movimento interno que pressupõe a entrada de um espectador em sua organização plástica-significante. O filme espera que alguém o atravesse para (se) fazer sentido. O registro de um trem que passa em filme pode assemelhar-se em muito à imagem pintada deste trem, em intenção de registro e em composição, mas ele não intui o movimento e o tempo, ele os corporifica e, ao fazê-lo, abre-se para envolver um espectador e talvez convidá-lo para um outro plano e ainda outro. A tela de cinema, plana como a do cavalete, está preparada para pintar o mundo e, mais ainda, para sugerir abstrações e movimentos imateriais, incertezas das quais vivemos cheios – e que preenchem nossas vidas, sempre divididas entre a permanência e a evanescência.


Tatiana Monassa

 

 




1. O "tracejo" do fundo e da figura principal (Leonor Silveira)
se equivalem em importância na superfície planificada da tela cinematográfica. O volume dos corpos aqui é quase tão plano quanto sugeririam pinceladas numa tela de pintura.
(Inquietude, 1998)


2. A grande profundidade de foco não se traduz numa profundidade de campo que crie perspectiva no espaço. Cada plano é absoluto em sua composição pictórica e encarna um ponto de vista "não-personificado", que não admite variações
de perspectiva sobre o que é visto. O ponto a partir do qual
este "observador invisível", encarnado pela câmera, enxerga a cena a cada plano é fixo (em termos de "posicionamento", não
de imobilidade espacial), embora varie de plano para plano, multiplicando as "posições de observação". Esta é a clareza
com a qual Manoel de Oliveira busca chegar mais próximo de uma verdade. (O Princípio da Incerteza, 2002)


3. É como se cada quadro de Manoel de Oliveira buscasse
sempre o melhor ponto de vista para a finalidade expressiva
do plano em questão. (Um Filme Falado, 2003)