NON OU A VÃ GLÓRIA DE MANDAR (1990)

Para um país cuja identidade nacional está primordialmente construída sob os feitos de glória cultivados em livros de história e em monumentos seculares, o sentido de filme-histórico ganha um sinal de contemporaneidade diferenciada. Todo cinema português contemporâneo é, em alguma medida, um filme histórico latente, em vias de saudade, de nostalgia de um país-república que é antes de tudo um fantasma de um império perdido e nunca reconstituído como corpo determinado.

Manoel de Oliveira sabe disso, pensa isso e faz, nesse amálgama de grande produção com filme pessoal, a crítica da narrativa histórica portuguesa através dos feitos cristalizados e dos afetos perdidos. Passando por Camões e pela ideologia da dominação colonial do pré-Revolução dos Cravos, Oliveira faz um movimento contrário ao de um cinema histórico de reprodução espetacular de batalhas ou efeitos: Oliveira aposta num estudo do poder como um teatro do extremo. Partindo da estrutura cênica da lendária batalha de Alcácer-Quibir, Oliveira desenha uma narrativa entremeada pela fala de um soldado setentista (Luis Miguel Cintra) e sua re-reprodução da palavra histórica. A glória mecanizada da batalha é pensada sob o sentido da derrota encontrando rimas no fracasso das guerras coloniais do século 20 e na derrota interminável e inesgotável do Rei Sebastião nunca-enterrado.

Pensando a guerra como um instrumento de discurso e o discurso submetido como um instrumento de guerra, Oliveira transforma o gesto da dominação em um território de embate de linguagens que vão do narrar o passado ao gestual característico de uma batalha de campo. Desinteressado de uma linearidade, o filme é como uma espécie de ensaio circular onde a glória portuguesa é rarefeita, desenhada em seu sentido trágico e fracassado, em sua secura obtusa.

NON, título e leit-motiv do filme, é a palavra-grafismo que carrega em sua estrutura a impossibilidade da fuga, do desvio. Oliveira fala da guerra como vontade e dominação do discurso, de uma crueldade que não se pode fissurar seja com a arte, seja com a imaginação, seja com a razão. De uma dureza e violência que não se pode esconder por trás de versos ou carnavais laudatórios.

A glória vã cantada nos Lusíadas é tomada por Oliveira pelo avesso, partindo da angústia de um soldado português perdido em território africano para chegar à narrativa épica dos grandes gestos portugueses como retratos secretos de sua própria decadência. A expansão territorial portuguesa é ao mesmo tempo o teatro heróico de uma nação em acúmulo de poder, mas também em si mesmo é a intuição de sua derrocada. O sebastianismo do Rei português nunca retornado é o estratagema do imaginário que desenha a figura dessa glória idealizada do impossível.

É impressionante a habilidade de Oliveira em fazer das batalhas um terreno ao mesmo tempo intenso e desglamurizado, de filmar o sangue e os gestos bruscos com a secura com que filma uma cotidianidade sem se render ao banal. Não há espetáculo desconectado de reflexão, não há convite a uma montanha-russa gráfica e cênica: a batalha, a guerra em NON é tão mais crível e verdadeira quanto mais costurada como um tabuleiro de xadrez sem encanto, desalmada.

As cores das bandeiras e dos uniformes contra o céu azul e o deserto formam um quadro de beleza dura, de cores pesadas e rijas, indicando naqueles corpos uma eternidade que é a eternidade não da invenção mas da cristalização pesada, do gesto duro do ferro, dos gritos de horror eternizados.

Não há Cavalgada das Valquírias nem beleza ambígua na violência para Oliveira. Há, sim, um ritual de solidão, de desertificação do discurso. Nesse sentido, a delicadeza da narrativa casual de Luis Miguel Cintra cria o espaço dessa singularidade possível/resistente em um lugar calcado para a homogeneização (militarização) dos atos. Mas uma singularização que não redime a dureza do gesto de dominação. Não há heroísmo na guerra, há loucura e um sentimento suicida de harmonia.

Uma harmonia pensada sob o signo de um poder unilateral e ordeiro, tipificado na figura do sebastianismo, tipificado na figura do triunfo nacional. Para Oliveira, cineasta da alma, do mistério e do exercício perene do teatro, não pode haver gesto mais cruel do que a vontade de resolução da vida, de término harmônico, de fim glorioso. Religioso, o Deus de Oliveira é um lugar de possibilidades, nunca uma ferramenta de acomodação do discurso. Para um cinema que cultiva a paixão pelo abismar-se e pela inquietude, não há nada mais terrível e cruel do que a certeza imutável da guerra, do ferro. Do NON.

"Terrível palavra é um Non. Não tem direito nem avesso. Por qualquer lado que o tomeis sempre soa e diz o mesmo.".


Felipe Bragança

 

 





Cena de batalha de Non ou a Vã Glória de Mandar (1990)