Para
um país cuja identidade nacional está
primordialmente construída sob os feitos de glória
cultivados em livros de história e em monumentos
seculares, o sentido de filme-histórico ganha
um sinal de contemporaneidade diferenciada. Todo cinema
português contemporâneo é, em alguma
medida, um filme histórico latente, em vias de
saudade, de nostalgia de um país-república
que é antes de tudo um fantasma de um império
perdido e nunca reconstituído como corpo determinado.
Manoel de Oliveira sabe disso, pensa isso e faz, nesse
amálgama de grande produção com
filme pessoal, a crítica da narrativa histórica
portuguesa através dos feitos cristalizados e
dos afetos perdidos. Passando por Camões e pela
ideologia da dominação colonial do pré-Revolução
dos Cravos, Oliveira faz um movimento contrário
ao de um cinema histórico de reprodução
espetacular de batalhas ou efeitos: Oliveira aposta
num estudo do poder como um teatro do extremo. Partindo
da estrutura cênica da lendária batalha
de Alcácer-Quibir, Oliveira desenha uma narrativa
entremeada pela fala de um soldado setentista (Luis
Miguel Cintra) e sua re-reprodução da
palavra histórica. A glória mecanizada
da batalha é pensada sob o sentido da derrota
encontrando rimas no fracasso das guerras coloniais
do século 20 e na derrota interminável
e inesgotável do Rei Sebastião nunca-enterrado.
Pensando a guerra como um instrumento de discurso e
o discurso submetido como um instrumento de guerra,
Oliveira transforma o gesto da dominação
em um território de embate de linguagens que
vão do narrar o passado ao gestual característico
de uma batalha de campo. Desinteressado de uma linearidade,
o filme é como uma espécie de ensaio circular
onde a glória portuguesa é rarefeita,
desenhada em seu sentido trágico e fracassado,
em sua secura obtusa.
NON, título e leit-motiv do filme, é
a palavra-grafismo que carrega em sua estrutura a impossibilidade
da fuga, do desvio. Oliveira fala da guerra como vontade
e dominação do discurso, de uma crueldade
que não se pode fissurar seja com a arte, seja
com a imaginação, seja com a razão.
De uma dureza e violência que não se pode
esconder por trás de versos ou carnavais laudatórios.
A glória vã cantada nos Lusíadas
é tomada por Oliveira pelo avesso, partindo da
angústia de um soldado português perdido
em território africano para chegar à narrativa
épica dos grandes gestos portugueses como retratos
secretos de sua própria decadência. A expansão
territorial portuguesa é ao mesmo tempo o teatro
heróico de uma nação em acúmulo
de poder, mas também em si mesmo é a intuição
de sua derrocada. O sebastianismo do Rei português
nunca retornado é o estratagema do imaginário
que desenha a figura dessa glória idealizada
do impossível.
É impressionante a habilidade de Oliveira em
fazer das batalhas um terreno ao mesmo tempo intenso
e desglamurizado, de filmar o sangue e os gestos bruscos
com a secura com que filma uma cotidianidade sem se
render ao banal. Não há espetáculo
desconectado de reflexão, não há
convite a uma montanha-russa gráfica e cênica:
a batalha, a guerra em NON é tão mais
crível e verdadeira quanto mais costurada como
um tabuleiro de xadrez sem encanto, desalmada.
As cores das bandeiras e dos uniformes contra o céu
azul e o deserto formam um quadro de beleza dura, de
cores pesadas e rijas, indicando naqueles corpos uma
eternidade que é a eternidade não da invenção
mas da cristalização pesada, do gesto
duro do ferro, dos gritos de horror eternizados.
Não há Cavalgada das Valquírias
nem beleza ambígua na violência para Oliveira.
Há, sim, um ritual de solidão, de desertificação
do discurso. Nesse sentido, a delicadeza da narrativa
casual de Luis Miguel Cintra cria o espaço dessa
singularidade possível/resistente em um lugar
calcado para a homogeneização (militarização)
dos atos. Mas uma singularização que não
redime a dureza do gesto de dominação.
Não há heroísmo na guerra, há
loucura e um sentimento suicida de harmonia.
Uma harmonia pensada sob o signo de um poder unilateral
e ordeiro, tipificado na figura do sebastianismo, tipificado
na figura do triunfo nacional. Para Oliveira, cineasta
da alma, do mistério e do exercício perene
do teatro, não pode haver gesto mais cruel do
que a vontade de resolução da vida, de
término harmônico, de fim glorioso. Religioso,
o Deus de Oliveira é um lugar de possibilidades,
nunca uma ferramenta de acomodação do
discurso. Para um cinema que cultiva a paixão
pelo abismar-se e pela inquietude, não há
nada mais terrível e cruel do que a certeza imutável
da guerra, do ferro. Do NON.
"Terrível palavra é um Non. Não
tem direito nem avesso. Por qualquer lado que o tomeis
sempre soa e diz o mesmo.".
Felipe Bragança
|