A NOIVA-CADÁVER
Tim Burton e Mike Johnson, Corpse Bride, EUA, 2005

Já acontecia desde Edward Mãos de Tesoura, mas naquele momento preferíamos nem perceber. Mas desde O Planeta dos Macacos é impossível deixar de notar. Por que os personagens mais interessantes, exóticos, originais de seus filmes sempre terminavam o filme sozinhos, de alguma forma reencontrados mas ainda assim sozinhos, sem par? Que seja Helena Bonham-Carter que tenha feito a personagem na refilmagem do filme de Franklin Schaeffner e que seja novamente ela que coloque sua voz em função da personagem epônima deste A Noiva-Cadáver, isso só nos facilita a resposta: Tim Burton cria esses personagens e não quer partilhá-los com ninguém, com o único intuito, bastante egoísta aliás, de que eles sejam sempre dele. Esse amor reúne um Pingüim, uma macaca, um dono de fábrica de chocolate, um ermitão com mãos de tesoura, e agora produz sua mais bela cria: uma noiva que morre ainda virgem, sem conseguir consumar o seu casamento. Perfeita sintonia entre o soturno e o adorável, entre o socialmente aceitável e aquilo que é feito para poucos, o igual e o diferente, a noiva-cadáver existe entre ternura e solidão, de um lado, e olhos sendo jogados longe por vermes e braços saindo do corpo, do outro. A estética de Tim Burton se articula também entre esses dois pólos, e o fato de que ele consegue impor um estilo muito característico e para além de óbvio (soturno, "para poucos") e fazer seus filmes circularem no mesmo circuito das fábulas da Disney (nada mais socialmente aceitável) é inacreditável: o mesmo que imaginar Lewis Carrol funcionando junto com LaFontaine ou a Valentina junto com a Mônica de Maurício de Souza.

A Noiva-Cadáver também funciona entre dois pólos. Inicialmente, o filme é um relato convencional porém adorável sobre a passagem da inocência à responsabilidade, uma passagem à idade adulta. Victor é filho de uma família nova-rica que vai se casar por arranjo com Victoria, filha de uma família de aristocratas arruinados, que veem no casamento a chance de voltar ao belo estilo de vida anterior. Os dois jovens sonham, no entanto, com um casamento por amor, e um encontro fortuito faz com que eles acabem apaixonados um pelo outro. No outro pólo, há o mundo frio da Inglaterra vitoriana, explicitado pela ausência quase total de cor nos planos do "mundo dos vivos", dos casamentos por interesse, da reprodução dos códigos sociais que impedem a vida encantada, calorosa que os dois jovens buscam. A resposta a esse mundo frio será justamente o mundo dos mortos, com suas cores quentes, com sua música agitada, com seus personagens adoráveis e com um senso de comunidade que parece faltar aos vivos do lado de cima. O "mundo real" de Tim Burton é sempre feito de tédio e repetição estúpida de modos de vida sem brilho. Se há alguma salvação, ela reside na imaginação: na fábrica de Charlie, num mundo de macacos, na montanha que cobre a cidade, e aqui no mundo dos mortos. Quem vai fazer a ponte e dar ao jovem Victor a chance de uma vida diferente é esse ser sobrenatural, fantástico e encantador que é a Noiva-Cadáver. Imaginemos Victor casado antes de conhecer sua noiva do além: sua delicadeza seria transformada em fraqueza e, talvez até por covardia, o casamento poderia naufragar na mesmice; depois da passagem pelo além, Victor não ganha só a chance de rever sua vida, mas também a de quebrar os protocolos (subir ao quarto da noiva não-cadáver, por exemplo) e armar ardis para conseguir seus objetivos (voltar ao mundo dos vivos), até conseguir, por fim, retornar à sua amada. A Noiva-Cadáver não é só um conto de passagem à idade adulta, mas é também, e indissociavelmente, uma fábula burtoniana sobre a necessidade de ter acesso a um mundo fantástico (dado pelos relatos de terror, pelo conto de fadas, por tudo aquilo que se conta às crianças à fogueira antes de dormir) para aquecer nosso mundo cotidiano.

Se no nível narrativo a discussão gira em torno exatamente da necessidade desse suplemento de mundo, no nível da composição estética é o próprio filme que vem suprir essa necessidade. Tim Burton é um cineasta do artifício, do estúdio, do ilusório dentro do real. Já não bastava ter feito, numa das épocas mais pressionadas por um verismo documental da filmagem, um grande blockbuster feito inteiramente em estúdio com cenários que tinham cara de cenários (Batman, o Retorno); era preciso, como já outrora (O Estranho Mundo de Jack), recorrer também ao mundo do cinema de animação. Se o cinema de estúdio carrega consigo a característica de tentar reconstruir inteiramente um mundo, a animação tem petição de princípio, porque mesmo o espaço precisa ser construído e configurado. A animação é então um terreno privilegiado para Tim Burton com sua demiurgia, com seu desejo de criação de mundos, de fazer do quadrado mágico do plano cinematográfico algo que só diga respeito a ele mesmo. É natural que o estilo visual de A Noiva-Cadáver, em sua excentricidade, em sua depuração visual, no uso de cores, num misto de delicadeza de traço e extravagância das escolhas, lembre os outros filmes de Burton (não especialmente O Estranho Mundo de Jack). Mas aqui, como em poucos outros Burton, o traço dos personagens combina com a duração do filme, que combina com a adesão ao musical como formato econômico (intriga rápida, leveza de ritmo) e hoje anacrônico (tão anacrônico quanto associar o terror ao conto de fadas, por exemplo), que por sua vez combina com a excentricidade socialmente desgarrada mas adorável do estillo do próprio Burton. Se no nível narrativo há a demanda para a criação de um mundo da fantasia, no nível estilístico Burton responde criando sua própria oferta, fornecendo um desses mundos a nós.

Ver um filme de Tim Burton é – talvez especialmente agora, quando ele consolida sua estética e produz dois filmes no ano (o outro, quase tão belo quanto, é A Fantástica Fábrica de Chocolate) – participar de um capítulo de uma das mais interessantes aventuras do cinema contemporâneo. O combustível que faz com que sua estética ganhe vida não é a fofura de suas fábulas nem a esquisitice de seus personagens, e tampouco a beleza de seus filmes, embora evidente, é uma beleza exatamente confortável – a disparidade das cores e dos gestos de Charlie em A Fantástica Fábrica..., as violências feitas à integridade do corpo da noiva-cadáver. O que mais encanta nesse cinema sufocante é a energia que Burton devota à criação desses mundos. "Jack, c'est moi", poderia dizer Tim Burton. Não sendo capaz de oferecer natais, ele faz os halloweens mais belos que se pode fazer. Seus bombons são alcoólicos, suas bonecas de pano são trituradas, o amor de seus personagens é sem fundo e a própria inserção dele dentro do cinema envolve uma defasagem (uma vez que o cinema ao qual ele sempre se refere é o cinema do passado, um cinema que hoje não existe mais a não ser em seus próprios filmes). Assim, quando nasce o momento de comprometer-se, a única possibilidade para Burton era criar uma pretendente, uma musa que orbigatoriamente teria que sair desse mundo de Halloween de Jack, dos esgotos de Gotham City, das profundezas dos contos de fadas. Na hora de criar uma noiva, ele tinha que criar uma noiva cadáver. E, naturalmente, deixar ela sem par no filme para que ela pudesse ser só sua. O corpo se transforma em borboletas, que sobem para o céu. Não qualquer céu, mas o céu do criador daquele mundo. E o demiurgo, todos sabemos, é Tim Burton.

Ruy Gardnier