Já
acontecia desde Edward Mãos de Tesoura,
mas naquele momento preferíamos nem perceber.
Mas desde O Planeta dos Macacos é impossível
deixar de notar. Por que os personagens mais interessantes,
exóticos, originais de seus filmes sempre terminavam
o filme sozinhos, de alguma forma reencontrados mas
ainda assim sozinhos, sem par? Que seja Helena
Bonham-Carter que tenha feito a personagem na refilmagem
do filme de Franklin Schaeffner e que seja novamente
ela que coloque sua voz em função da personagem
epônima deste A Noiva-Cadáver, isso
só nos facilita a resposta: Tim Burton cria esses
personagens e não quer partilhá-los com
ninguém, com o único intuito, bastante
egoísta aliás, de que eles sejam sempre
dele. Esse amor reúne um Pingüim,
uma macaca, um dono de fábrica de chocolate,
um ermitão com mãos de tesoura, e agora
produz sua mais bela cria: uma noiva que morre ainda
virgem, sem conseguir consumar o seu casamento. Perfeita
sintonia entre o soturno e o adorável, entre
o socialmente aceitável e aquilo que é
feito para poucos, o igual e o diferente, a noiva-cadáver
existe entre ternura e solidão, de um lado, e
olhos sendo jogados longe por vermes e braços
saindo do corpo, do outro. A estética de Tim
Burton se articula também entre esses dois pólos,
e o fato de que ele consegue impor um estilo muito característico
e para além de óbvio (soturno, "para
poucos") e fazer seus filmes circularem no mesmo
circuito das fábulas da Disney (nada mais socialmente
aceitável) é inacreditável: o mesmo
que imaginar Lewis Carrol funcionando junto com LaFontaine
ou a Valentina junto com a Mônica de Maurício
de Souza.
A Noiva-Cadáver também funciona
entre dois pólos. Inicialmente, o filme é
um relato convencional porém adorável
sobre a passagem da inocência à responsabilidade,
uma passagem à idade adulta. Victor é
filho de uma família nova-rica que vai se casar
por arranjo com Victoria, filha de uma família
de aristocratas arruinados, que veem no casamento a
chance de voltar ao belo estilo de vida anterior. Os
dois jovens sonham, no entanto, com um casamento por
amor, e um encontro fortuito faz com que eles acabem
apaixonados um pelo outro. No outro pólo, há
o mundo frio da Inglaterra vitoriana, explicitado pela
ausência quase total de cor nos planos do "mundo
dos vivos", dos casamentos por interesse, da reprodução
dos códigos sociais que impedem a vida encantada,
calorosa que os dois jovens buscam. A resposta a esse
mundo frio será justamente o mundo dos mortos,
com suas cores quentes, com sua música agitada,
com seus personagens adoráveis e com um senso
de comunidade que parece faltar aos vivos do lado de
cima. O "mundo real" de Tim Burton é
sempre feito de tédio e repetição
estúpida de modos de vida sem brilho. Se há
alguma salvação, ela reside na imaginação:
na fábrica de Charlie, num mundo de macacos,
na montanha que cobre a cidade, e aqui no mundo dos
mortos. Quem vai fazer a ponte e dar ao jovem Victor
a chance de uma vida diferente é esse ser sobrenatural,
fantástico e encantador que é a Noiva-Cadáver.
Imaginemos Victor casado antes de conhecer sua noiva
do além: sua delicadeza seria transformada em
fraqueza e, talvez até por covardia, o casamento
poderia naufragar na mesmice; depois da passagem pelo
além, Victor não ganha só a chance
de rever sua vida, mas também a de quebrar os
protocolos (subir ao quarto da noiva não-cadáver,
por exemplo) e armar ardis para conseguir seus objetivos
(voltar ao mundo dos vivos), até conseguir, por
fim, retornar à sua amada. A Noiva-Cadáver
não é só um conto de passagem à
idade adulta, mas é também, e indissociavelmente,
uma fábula burtoniana sobre a necessidade
de ter acesso a um mundo fantástico (dado pelos
relatos de terror, pelo conto de fadas, por tudo aquilo
que se conta às crianças à fogueira
antes de dormir) para aquecer nosso mundo cotidiano.
Se no nível narrativo a discussão gira
em torno exatamente da necessidade desse suplemento
de mundo, no nível da composição
estética é o próprio filme que
vem suprir essa necessidade. Tim Burton é um
cineasta do artifício, do estúdio, do
ilusório dentro do real. Já não
bastava ter feito, numa das épocas mais pressionadas
por um verismo documental da filmagem, um grande blockbuster
feito inteiramente em estúdio com cenários
que tinham cara de cenários (Batman, o Retorno);
era preciso, como já outrora (O Estranho Mundo
de Jack), recorrer também ao mundo do cinema
de animação. Se o cinema de estúdio
carrega consigo a característica de tentar reconstruir
inteiramente um mundo, a animação tem
petição de princípio, porque mesmo
o espaço precisa ser construído e configurado.
A animação é então um terreno
privilegiado para Tim Burton com sua demiurgia, com
seu desejo de criação de mundos, de fazer
do quadrado mágico do plano cinematográfico
algo que só diga respeito a ele mesmo. É
natural que o estilo visual de A Noiva-Cadáver,
em sua excentricidade, em sua depuração
visual, no uso de cores, num misto de delicadeza de
traço e extravagância das escolhas, lembre
os outros filmes de Burton (não especialmente
O Estranho Mundo de Jack). Mas aqui, como em
poucos outros Burton, o traço dos personagens
combina com a duração do filme, que combina
com a adesão ao musical como formato econômico
(intriga rápida, leveza de ritmo) e hoje anacrônico
(tão anacrônico quanto associar o terror
ao conto de fadas, por exemplo), que por sua vez combina
com a excentricidade socialmente desgarrada mas adorável
do estillo do próprio Burton. Se no nível
narrativo há a demanda para a criação
de um mundo da fantasia, no nível estilístico
Burton responde criando sua própria oferta, fornecendo
um desses mundos a nós.
Ver um filme de Tim Burton é talvez especialmente
agora, quando ele consolida sua estética e produz
dois filmes no ano (o outro, quase tão belo quanto,
é A Fantástica Fábrica de Chocolate)
participar de um capítulo de uma das mais
interessantes aventuras do cinema contemporâneo.
O combustível que faz com que sua estética
ganhe vida não é a fofura de suas fábulas
nem a esquisitice de seus personagens, e tampouco a
beleza de seus filmes, embora evidente, é uma
beleza exatamente confortável a disparidade
das cores e dos gestos de Charlie em A Fantástica
Fábrica..., as violências feitas à
integridade do corpo da noiva-cadáver. O que
mais encanta nesse cinema sufocante é a energia
que Burton devota à criação desses
mundos. "Jack, c'est moi", poderia dizer Tim
Burton. Não sendo capaz de oferecer natais, ele
faz os halloweens mais belos que se pode fazer. Seus
bombons são alcoólicos, suas bonecas de
pano são trituradas, o amor de seus personagens
é sem fundo e a própria inserção
dele dentro do cinema envolve uma defasagem (uma vez
que o cinema ao qual ele sempre se refere é o
cinema do passado, um cinema que hoje não existe
mais a não ser em seus próprios filmes).
Assim, quando nasce o momento de comprometer-se, a única
possibilidade para Burton era criar uma pretendente,
uma musa que orbigatoriamente teria que sair desse mundo
de Halloween de Jack, dos esgotos de Gotham City, das
profundezas dos contos de fadas. Na hora de criar uma
noiva, ele tinha que criar uma noiva cadáver.
E, naturalmente, deixar ela sem par no filme para que
ela pudesse ser só sua. O corpo se transforma
em borboletas, que sobem para o céu. Não
qualquer céu, mas o céu do criador daquele
mundo. E o demiurgo, todos sabemos, é Tim Burton.
Ruy Gardnier
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