Asia
sob a tempestade
De Asia Argento esperávamos sujeira, conteúdos
escandalosos, intimidades que poderíamos ficar
sem ver, entre outras coisas que ela coloca na frente
da camêra e que costumam constranger os espíritos
menos suscetíveis. Mas de Asia Argento não
esperávamos sob hipótese alguma esse apuro
de detalhes e esse cuidado com a imagem que aflora de
forma assustadoramente rigorosa em Maldito Coração.
Não que seu primeiro filme, A Diva Escarlate,
seja completamente destituído de interesse: havia
nele uma forma curiosa com a qual a vida alimentava
a ficção de forma tão próxima
que o filme parecia muito com uma espécie de
filme de Richard Lester com os Beatles adaptado para
os tempos da geração blog por alguém
que faz parte dessa geração. Mas, deixando-se
ser trapaceada por seu próprio material, os instantâneos
de materialidade bruta que faziam a graça do
filme eram também sua insuficiência, ou
a desculpa para um filme descosido em que as partes
não compensavam a falta do todo. Em Maldito
Coração, esses nacos existem,
em toda sua força de instantes que valem por
si mesmos e evocam um tipo de relação
diferente daquela dos filmes "clássico-narrativos",
mas existe um senso de ritmo e um cuidado sobre a distância
em que se deve colocar a câmera, sobre criar com
a câmera um espaço de construção
de ponto de vista que é ao mesmo tempo um comentário
e uma descrição. Tudo está perto
demais, é impossível guardar reservas.
Só que agora esse cinema da adesão completa
não obedece mais ao glamour de uma garota fazendo
pose de má, mas à história de uma
maternidade impossível (a da própria Asia,
bem entendido) transformada em história de terror.
Adaptado do livro homônimo e autobiográfico
de J. T. LeRoy, o filme narra a infância do jovem
Jeremiah, do momento em que sua mãe Sarah o retira
de uma adorável e sadia casa de pais adotivos
e leva-o para morar com ela em seu apartamento destruído.
O que segue é uma verdadeira descida de Jeremiah
ao inferno que inclui abuso sexual pelos namorados da
mãe, uso prematuro de diversas drogas, inúmeros
espancamentos, temporada de reclusão na casa
de avós maníacos religiosos, entre outros
maus tratos. O andamento do filme, no entanto, se desenvolve
mais como um frenético road movie de aventura
do que como um delicado drama sobre relações
complicadas e traumas de infância. Ponto para
Asia. Não é a maior das qualidades desse
filme, mas há de se elogiar quando não
se faz o enésimo filme sensível para mostrar
como a vida é difícil, mas procura-se
uma outra forma de lidar com a adversidade sem ser a
vitimização das vítimas e a acusação
dos algozes (nisso, mais do que no tema do filme, Maldito
Coração é uma espécie
de irmão de Tarnation, de Jonathan Caouette).
Constata-se o óbvio que ainda nos espanta: a
vida continua. Acumulando cena constrangedora a cena
constrangedora na vida de Jeremiah, o filme acaba transformando-se,
quase apesar de si mesmo, num grande tratado acerca
da sobrevivência na selva dos costumes.
Jeremiah, quando sai da casa de seus pais adotivos,
sai também de um registro para outro de América:
ele deixa a funcional família que se propagandeia
com o nome do país (american way) e desce
às profundezas da família americana subterrânea,
onde subterrânea não significa "escondida",
mas sim eclipsada como aquilo que não se quer
ver. Mas para Asia, no entanto, essa "descida aos
infernos" não carrega somente caracteres
negativos: esse inferno é também o lugar
da liberdade, do rock'n'roll e da atitude (todos fora
desse âmbito parecem ser anestesiados para responder
a determinados padrões aceitáveis de sociabilidade,
cf. a debilóide personagem de Winona Ryder).
Maldito Coração
começa como uma espécie de Glória
às avessas para finalmente reavivar o espírito
do filme de Cassavetes. Ambos são filmes sobre
uma convivência difícil que apesar de tudo
e a custa de muito sofrimento e desentendimento
se transforma em relação de maternidade,
mas uma maternidade que não se cristaliza na
afável relação de pertencimento
do colo materno, mas numa aprendizagem selvagem de posições
que cria mais conflito para a mãe do que para
a criança. A mãe Sarah dá a Jeremiah
o inferno, mas ao mesmo tempo fornece a ele a arma contra
ele, a revolta.
Mas o que faz Asia Argento mostrar que é mais
do que unicamente a filha de um cineasta é um
talento até então inimaginável
para captar de forma sutil toda uma série de
emoções do menino Jeremiah, que transborda
completamente de emoções que ele não
entende e de signos que ele não consegue interpretar.
A esse respeito, convém lembrar talvez a cena
mais impressionante do filme, que não corresponde
a nenhum choque escandaloso senão o estético:
no momento em que um dos namorados de Sarah embainha
o cinto para espancar o menino, o filme corta inesperadamente
audio e imagem para uma cena mezzo mórbida
mezzo cretina de dois corvos vermelhos de computação
gráfica, uma cena que irrompe na história
abruptamente e nos retira do terreno objetivo dos fatos
lastimáveis que acontecem a Jeremiah para nos
instalar no terreno afetivo do personagem em seu sonho-delírio.
Essa cena por si só serve para mostrar que o
que interessa a Asia Argento é mais captar um
determinado sentimento do que chocar o mundo. Tudo é
filmado em fragmentos, como a responder ou a
ser, a emular na acepção mais forte do
termo à percepção de seu
protagonista, um menino que não consegue dar
conta de todo o universo de sentido em torno dele. Em
fragmentos, em nacos, em instantes, Maldito
Coração surpreende por sua
tactilidade emergindo como tal na tela, em sensações
físicas (todo mundo se remexe na cadeira em diversas
ocasiões) mas também em puros momentos
"do espírito" (Asia Argento tomar o
lugar do ator que interpreta Jeremiah para encenar a
cena em que, travestido de mulher, o menino é
sodomizado pelo namorado de Sarah) que transformam esse
filme num objeto de uma complexidade inesperada e de
belezas que não serão facilmente esquecidas.
Eis como Asia Argento consegue seu estatuto de maioridade
artística e já pode viver longe da tutela
do pai.
Ruy Gardnier
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