MALDITO CORAÇÃO
Asia Argento, The Heart Is Deceitful Above All Things, EUA, 2004

Asia sob a tempestade

De Asia Argento esperávamos sujeira, conteúdos escandalosos, intimidades que poderíamos ficar sem ver, entre outras coisas que ela coloca na frente da camêra e que costumam constranger os espíritos menos suscetíveis. Mas de Asia Argento não esperávamos sob hipótese alguma esse apuro de detalhes e esse cuidado com a imagem que aflora de forma assustadoramente rigorosa em Maldito Coração.
Não que seu primeiro filme, A Diva Escarlate, seja completamente destituído de interesse: havia nele uma forma curiosa com a qual a vida alimentava a ficção de forma tão próxima que o filme parecia muito com uma espécie de filme de Richard Lester com os Beatles adaptado para os tempos da geração blog por alguém que faz parte dessa geração. Mas, deixando-se ser trapaceada por seu próprio material, os instantâneos de materialidade bruta que faziam a graça do filme eram também sua insuficiência, ou a desculpa para um filme descosido em que as partes não compensavam a falta do todo. Em Maldito Coração, esses nacos existem, em toda sua força de instantes que valem por si mesmos e evocam um tipo de relação diferente daquela dos filmes "clássico-narrativos", mas existe um senso de ritmo e um cuidado sobre a distância em que se deve colocar a câmera, sobre criar com a câmera um espaço de construção de ponto de vista que é ao mesmo tempo um comentário e uma descrição. Tudo está perto demais, é impossível guardar reservas. Só que agora esse cinema da adesão completa não obedece mais ao glamour de uma garota fazendo pose de má, mas à história de uma maternidade impossível (a da própria Asia, bem entendido) transformada em história de terror.

Adaptado do livro homônimo e autobiográfico de J. T. LeRoy, o filme narra a infância do jovem Jeremiah, do momento em que sua mãe Sarah o retira de uma adorável e sadia casa de pais adotivos e leva-o para morar com ela em seu apartamento destruído. O que segue é uma verdadeira descida de Jeremiah ao inferno que inclui abuso sexual pelos namorados da mãe, uso prematuro de diversas drogas, inúmeros espancamentos, temporada de reclusão na casa de avós maníacos religiosos, entre outros maus tratos. O andamento do filme, no entanto, se desenvolve mais como um frenético road movie de aventura do que como um delicado drama sobre relações complicadas e traumas de infância. Ponto para Asia. Não é a maior das qualidades desse filme, mas há de se elogiar quando não se faz o enésimo filme sensível para mostrar como a vida é difícil, mas procura-se uma outra forma de lidar com a adversidade sem ser a vitimização das vítimas e a acusação dos algozes (nisso, mais do que no tema do filme, Maldito Coração é uma espécie de irmão de Tarnation, de Jonathan Caouette). Constata-se o óbvio que ainda nos espanta: a vida continua. Acumulando cena constrangedora a cena constrangedora na vida de Jeremiah, o filme acaba transformando-se, quase apesar de si mesmo, num grande tratado acerca da sobrevivência na selva dos costumes.

Jeremiah, quando sai da casa de seus pais adotivos, sai também de um registro para outro de América: ele deixa a funcional família que se propagandeia com o nome do país (american way) e desce às profundezas da família americana subterrânea, onde subterrânea não significa "escondida", mas sim eclipsada como aquilo que não se quer ver. Mas para Asia, no entanto, essa "descida aos infernos" não carrega somente caracteres negativos: esse inferno é também o lugar da liberdade, do rock'n'roll e da atitude (todos fora desse âmbito parecem ser anestesiados para responder a determinados padrões aceitáveis de sociabilidade, cf. a debilóide personagem de Winona Ryder). Maldito Coração começa como uma espécie de Glória às avessas para finalmente reavivar o espírito do filme de Cassavetes. Ambos são filmes sobre uma convivência difícil que apesar de tudo – e a custa de muito sofrimento e desentendimento – se transforma em relação de maternidade, mas uma maternidade que não se cristaliza na afável relação de pertencimento do colo materno, mas numa aprendizagem selvagem de posições que cria mais conflito para a mãe do que para a criança. A mãe Sarah dá a Jeremiah o inferno, mas ao mesmo tempo fornece a ele a arma contra ele, a revolta.

Mas o que faz Asia Argento mostrar que é mais do que unicamente a filha de um cineasta é um talento até então inimaginável para captar de forma sutil toda uma série de emoções do menino Jeremiah, que transborda completamente de emoções que ele não entende e de signos que ele não consegue interpretar. A esse respeito, convém lembrar talvez a cena mais impressionante do filme, que não corresponde a nenhum choque escandaloso senão o estético: no momento em que um dos namorados de Sarah embainha o cinto para espancar o menino, o filme corta inesperadamente audio e imagem para uma cena mezzo mórbida mezzo cretina de dois corvos vermelhos de computação gráfica, uma cena que irrompe na história abruptamente e nos retira do terreno objetivo dos fatos lastimáveis que acontecem a Jeremiah para nos instalar no terreno afetivo do personagem em seu sonho-delírio. Essa cena por si só serve para mostrar que o que interessa a Asia Argento é mais captar um determinado sentimento do que chocar o mundo. Tudo é filmado em fragmentos, como a responder – ou a ser, a emular na acepção mais forte do termo – à percepção de seu protagonista, um menino que não consegue dar conta de todo o universo de sentido em torno dele. Em fragmentos, em nacos, em instantes, Maldito Coração surpreende por sua tactilidade emergindo como tal na tela, em sensações físicas (todo mundo se remexe na cadeira em diversas ocasiões) mas também em puros momentos "do espírito" (Asia Argento tomar o lugar do ator que interpreta Jeremiah para encenar a cena em que, travestido de mulher, o menino é sodomizado pelo namorado de Sarah) que transformam esse filme num objeto de uma complexidade inesperada e de belezas que não serão facilmente esquecidas. Eis como Asia Argento consegue seu estatuto de maioridade artística e já pode viver longe da tutela do pai.

Ruy Gardnier

 

 





Jeremiah e sua mãe em Maldito Coração de Asia Argento