KING KONG
Peter Jackson, King Kong, Nova Zelândia/EUA, 2005

Dois personagens são determinantes em King Kong. E, curiosamente, não são a loura e o gorila. Na verdade, as duas figuras em questão são mais "importantes" porque são os portadores dos dois elementos estruturais do filme. O primeiro e mais previsível é, claro, Carl Denham (Jack Black, que de certa forma é também uma metáfora, ou alter ego, do próprio Peter Jackson, igualmente um ex-gordinho, que perdeu muitos e muitos quilos), o cineasta. Nele está o traço de determinação, de predestinação e profecia que a história assume desde seus primeiros momentos. O filme dele – e a aventura que para realizá-lo seria necessária – parece estar desde sempre destinado ao resultado que produz. O tempo todo, o que parece mover o diretor não é "a curiosidade apesar do medo", como sugere o imediato do navio a respeito de seu capitão (e da alma humana). Ele parece saber o que acontecerá mais à frente, parece "destinado a" ou "marcado para" encontrar Kong, aprisioná-lo, levá-lo para a civilização, ser o responsável pela réplica do gorila contra ela e assistir à tréplica da civilização ao animal, da cultura contra a natureza.

É nesse personagem que se manifesta o traço mais externo de uma das duas formas pelas quais o filme tenta opor animal a homem, ou melhor, macaco a homem. Em Denham fica demarcado a dualidade civilização x primitivismo. Ele é um cineasta, um índice de modernidade em seu tempo – e, nesse sentido, é um dos motivos filosóficos para o filme ser um filme de época, embora menos importante do que a clara motivação de situá-lo nos anos 30 para que pudesse ser feita a cena dos biplanos que sobrevoam o Empire State Building. Na versão de King Kong dos anos 70 (de 1976, feita pelo mesmo John Guillermin de Inferno na Torre e de alguns filmes de Tarzan) é o petróleo que importa. Era o índice de modernização de então. King Kong se transforma em ícone de potência, de uma potência pela qual a civilização moderna lutava (na crise política do combustível fóssil daquela década). Na versão de Jackson está impressa toda a obsessão dele pelo filme original, de 1933 (ano em que se passa seu filme, aliás, em um claro jogo de metalinguagem). É o cineasta obcecado que se movimenta para fazer um filme, impulsionado pelo olhar de descobridor, de descortinador. É a modernização como espetáculo (e não o contrário, como no Denham original, o que pensa Kong como "a oitava maravilha do mundo") o que está em jogo (nesse sentido, o King Kong de Jackson se aproxima de O Aviador, de Scorsese).

Mas ele olhar descortinador de Denham não é um olhar etnográfico. Não é de uma documentação, da idéia de "descobrimento" que se está falando. O Denham (do filme) de 1933 era um herdeiro da noção de bestiário, de circo. Daí ele produzir uma modernização do espetáculo e daí o ato de trazer Kong para a cidade é uma reconquista da imagem espetacular, de uma inocência naturalista típica do século XIX. O King Kong de 1933 opõe o freak (no estilo Barnon) à máquina (da nova revolução industrial). O Denham de Jackson, não. A operação dele é motivada pela tese do filme: homem e animal são duas faces da mesma moeda. Para provar isso, Jackson dá a seu cineasta um roteiro. Por isso ele sempre parece saber seu próximo passo e talvez nisso a escalação de Jack Black tenha mais outro movimento de coerência: Denham não é apenas alívio cômico (embora seja central seu papel como tal), é também a subversão da lógica que o cerca, de ordenações, de imposições (Black, não se pode esquecer, foi o professor que formatou em moldes disciplinares algo anárquico como o rock‘n’roll). Sua função no filme, então, é a de levar o primal, o antigo, o pré-histórico, ao encontro da civilização burguesa que se modernizava nos anos 30. E essa civilização é formatada em índices bastante claros de diferença em relação ao ambiente da ilha: é Nova York (o índice mais claro da cultura ocidental, como cidade-evento), é Nova York no inverno (com neve, um índice de diferença em relação à ilha e também um índice de norte do mundo, de que se está falando de um antropocentrismo eurocêntrico), é Nova York no inverno e com a crise da Grande Depressão (o que dá à cidade ares capazes, em tese, de compreender uma ação primal).

Esse terceiro elemento, aliás, é digno de nota: Jackson que explorar uma noção estranha de anomia. Ele inicia seu filme propondo uma explosão da solidariedade mecânica em um ambiente de crise: só há espaço na metrópole em crise econômica para a solidariedade aos muito próximos, aos familiares, aos grandes amigos. Aos outros, o institucional, o sofrimento. Esse é o primeiro elemento com o qual ele quer aproximar homem de animal.

Mas o argumento do diretor é muito estranho, porque ele alimenta o lado contrário de sua oposição: ele quer mostrar que há especularidade entre homem e animal mostrando que o animal é tão humano quanto o homem (o que faz pela humanização de Kong) e que o homem é tão animalesco quanto a fera (mostrando seu comportamento doentio). Mas utiliza traços de aculturamento poderosos para justamente provar a animalidade do homem. Ele não demonstra a animalidade do homem e sim, pelo contrário, o quanto ele é aculturado, humano. É porque usa uma noção inocente de "humanismo", de humano e desumano, que comete esse equívoco.

Mas o segundo personagem central do filme está mais escondido. Ele funciona mais como uma metonímia, uma pequena parte que quer conter o todo, uma substituição do tipo personagem pela trama. É... o grumete do navio, Jimmy (Jamie Bell, o menino de Billy Elliot, outra associação curiosa a se pensar na relação entre o rapaz e a relação entre natureza e cultura). O misterioso jovem igualmente vindo não se sabe de onde (como Kong), que tem um comportamento contra-cultural (ele rouba, é anti-social etc.) e que está sendo aculturado. Mas sua posição é mais determinante porque é por meio dele que entra no filme a citação a Coração de Trevas, de Joseph Conrad, que se tornará o espectro que ronda o filme. Mais que isso, o livro tornar-se-á a própria metáfora em torno da qual o filme se estrutura.

Ora, Jackson propõe, como mostrei acima, uma semiologia baseada na contradição natureza x cultura. Mais que isso, no desejo de confundir os laços entre animal e homem. Seu desejo é demonstrar a humanidade do gorila. Ele quer fazer dele o personagem mais humano de sua história, mostrá-lo como produtor/executor de uma cultura (no sentido de zivilisation) própria, mais primitiva, mas existente. E é neste ponto que a semiose, a própria construção simbólica, o trai. Jackson quer que Conrad o ajude a demonstrar que o gorila é humano. Para tal, ele usa Heart of Darkness como estrutura modelar de uma saga de demonstração de que o homem é primal, animalesco, selvagem, que sua cultura é um mito e que sua ação é, por vezes, pura selvageria.

Essa operação, entretanto, não se sustenta logicamente. Obviamente, não estou aqui cobrando lógica em sentido estrito de um filme em que um gorila de sete metros de altura se apaixona por uma loura. Trata-se, claro, de uma questão de lógica interna. Jackson mostra clara paixão pelo filme que refilma. Ele gosta do espetáculo. E quer dar a ele as cores de "modernização" como a conhece, a de reconstituição com elementos de realismo de um espaço fantasioso. Ele quer que King Kong pareça real, pareça perfeitamente crível. Fez isso em O Senhor dos Anéis. Mas tem uma intenção a mais além dessa, a de dar a King Kong conteúdo metafórico mais elaborado do que o fabular. Parece fascinado pelo que fez Ang Lee em seu Hulk, que ganhou cores de conflito edípico. Quer fazer um espetáculo-mas-com-profundidade. Para isso, para mostrar a dicotomia darwinista que tenta trazer para o filme, opera uma construção insustentável: tenta demonstrar que o gorila é humano não pelo gorila e sim pelo homem (mas, afinal, por que Jackson quer tanto provar isso?).

Daí a composição com coração de trevas e daí o mergulho obcecado dos marinheiros na ilha. Eles são movidos por uma estranha solidariedade heróica, mas, ao mesmo tempo, por um roteiro: eles querem saber o que há ali, querem vencer o antigo, ocidentais, caçadores que são. A busca pela bela Ann Darrow, aliás, é o momento mais determinante para essa operação. É o mergulho de homens civilizados em um ambiente de negação de sua civilidade. Mas são homens dispostos a agir primalmente. Aqui Jackson se trai: não é nem tanto a capacidade de engenharia (planejamento) de Kong o que sobressai, mas sim a engenharia de capacidades (máquinas, drogas etc.) do homem. É a cultura que vence a batalha, não porque há um homem primitivo por trás dela e sim porque ela é estratégica.

Mas não bastasse trazer Conrad à força para sua obra, Jackson também traz Tristão. Isso porque ele cria uma história de amor também motivada por um roteiro: Ann e o escritor Jack Driscoll se amam porque nos é dito que se amam. Sua paixão é apresentada como um traço de caráter de ambos: ela, porque é atriz e mocinha, apaixona-se pelo bom e belo moço. Ele, porque é bom moço, apaixona-se pela mocinha. Entre os dois, entretanto, ar. O romance não tem história, não é construído. E essa é a maior falha dramatúrgica de Jackson. Faltou-lhe justificar a operação mais complexa do filme: o homem que, por amor, atira-se à selva e, depois, lança-se contra o gorila na cidade. Driscoll parece movido mais por sua solidariedade heróica, pelo fato de que é herói. É para provar seu "heroísmo real", aliás, que existe o personagem de Bruce Baxter, o ator canastrão (que de uma hora para outra vira herói e depois, volta a ser um moleirão, sem motivação aparente). Driscoll, então, salva a mocinha mais porque tem um programa, uma plataforma.

Essa ausência de profundidade do romance fortalece ainda mais a contradição da economia das solidariedades de Jackson. Da Grande Depressão, ele migra para uma Nova York de burguesia eufórica, capaz de ir a um espetáculo ver um gorila gigante para recuperar a auto-estima combalida pela crise. Ora, 1933 é o ano de implementação do New Deal de Roosevelt, a partir do projeto de Keynes, tudo baseado justemente na institucionalização dos laços de solidariedade americana. Mas de uma solidariedade orgânica, impessoal, baseada na idéia de distribuição de renda centrada no crescimento econômico de toda a economia. Mas isso não estava previsto para as relações pessoais e muito menos para a economia das paixões. A luta pelo outro até a morte continua sendo um elemento a ser pensado particularmente.

Por isso mesmo, o triângulo amoroso do filme é seu elemento mais incongruente. O gorila matava mulheres. Não mata Ann porque ela é uma mulher emancipada (não é esse o traço mais forte da mulher ocidental?), que não aceita seus arroubos de, para o filme, machismo. Para Jackson, King Kong é Fred Flintstone, é Homer Simpson. É um primata grosseiro, que quebra tudo em seu entorno e que só fica dócil quando está diante da contemplação, sentada. Kong é um couch potato. Fica sentado horas vendo um espetáculo de luz e cor à distância (como Flintstone e Simpson, que vêem a televisão). Só falta ao gorila uma cerveja. Pois Ann não aceita suas imposições. E é cumplice, já que cultua o espetáculo. Ela, então, parece estar interessada (como outra heroína clássica da época, Olivia Palito. O filme mais clássico de Popeye, aliás, Popeye the Sailor, é de... 1933), nos músculos de um de seus pretendentes e na índole bondosa do outro. É nos olhos doces da fera que ela encontra doçura. É nas ações do outro que encontra segurança. Mas nenhuma das três relações é trabalhada pelo filme.

A de Ann e Driscoll, como já disse, transforma-se em um esquema. No máximo, é uma paixão-fulminante-à-primeira-vista(ou lida, no caso da atriz leitora das peças do escritor)-com-cara-de-amor-de-cinema. No máximo é uma atração física apimentada pelo conteúdo idílico da viagem ao desconhecido. Os dois se apaixonam como se apaixonam integrantes de reality show de confinamento.

A de Ann e de Kong, também como já disse, igualmente transforma-se em um esquema. É o programa do filme. Programa vazio de humanização.

A de Driscoll e Kong é nula. Existe também apenas para que o filme oponha o traço monstruoso de Kong (porque, afinal, ele é incontrolável, já que ama e é incompreendido) à rigidez de caráter do escritor.


Alexandre Werneck