Dois
personagens são determinantes em King Kong. E,
curiosamente, não são a loura e o gorila.
Na verdade, as duas figuras em questão são
mais "importantes" porque são os portadores
dos dois elementos estruturais do filme. O primeiro
e mais previsível é, claro, Carl Denham
(Jack Black, que de certa forma é também
uma metáfora, ou alter ego, do próprio
Peter Jackson, igualmente um ex-gordinho, que perdeu
muitos e muitos quilos), o cineasta. Nele está
o traço de determinação, de predestinação
e profecia que a história assume desde seus primeiros
momentos. O filme dele – e a aventura que para realizá-lo
seria necessária – parece estar desde sempre
destinado ao resultado que produz. O tempo todo, o que
parece mover o diretor não é "a curiosidade
apesar do medo", como sugere o imediato do navio
a respeito de seu capitão (e da alma humana).
Ele parece saber o que acontecerá mais à
frente, parece "destinado a" ou "marcado
para" encontrar Kong, aprisioná-lo, levá-lo
para a civilização, ser o responsável
pela réplica do gorila contra ela e assistir
à tréplica da civilização
ao animal, da cultura contra a natureza.
É nesse personagem que se manifesta o traço
mais externo de uma das duas formas pelas quais o filme
tenta opor animal a homem, ou melhor, macaco a homem.
Em Denham fica demarcado a dualidade civilização
x primitivismo. Ele é um cineasta, um índice
de modernidade em seu tempo – e, nesse sentido, é
um dos motivos filosóficos para o filme ser um
filme de época, embora menos importante do que
a clara motivação de situá-lo nos
anos 30 para que pudesse ser feita a cena dos biplanos
que sobrevoam o Empire State Building. Na versão
de King Kong dos anos 70 (de 1976, feita pelo mesmo
John Guillermin de Inferno na Torre e de alguns
filmes de Tarzan) é o petróleo
que importa. Era o índice de modernização
de então. King Kong se transforma em ícone
de potência, de uma potência pela qual a
civilização moderna lutava (na crise política
do combustível fóssil daquela década).
Na versão de Jackson está impressa toda
a obsessão dele pelo filme original, de 1933
(ano em que se passa seu filme, aliás, em um
claro jogo de metalinguagem). É o cineasta obcecado
que se movimenta para fazer um filme, impulsionado pelo
olhar de descobridor, de descortinador. É a modernização
como espetáculo (e não o contrário,
como no Denham original, o que pensa Kong como "a
oitava maravilha do mundo") o que está em
jogo (nesse sentido, o King Kong de Jackson se aproxima
de O Aviador, de Scorsese).
Mas ele olhar descortinador de Denham não é
um olhar etnográfico. Não é de
uma documentação, da idéia de "descobrimento"
que se está falando. O Denham (do filme) de 1933
era um herdeiro da noção de bestiário,
de circo. Daí ele produzir uma modernização
do espetáculo e daí o ato de trazer Kong
para a cidade é uma reconquista da imagem espetacular,
de uma inocência naturalista típica do
século XIX. O King Kong de 1933 opõe o
freak (no estilo Barnon) à máquina
(da nova revolução industrial). O Denham
de Jackson, não. A operação dele
é motivada pela tese do filme: homem e animal
são duas faces da mesma moeda. Para provar isso,
Jackson dá a seu cineasta um roteiro. Por isso
ele sempre parece saber seu próximo passo e talvez
nisso a escalação de Jack Black tenha
mais outro movimento de coerência: Denham não
é apenas alívio cômico (embora seja
central seu papel como tal), é também
a subversão da lógica que o cerca, de
ordenações, de imposições
(Black, não se pode esquecer, foi o professor
que formatou em moldes disciplinares algo anárquico
como o rock‘n’roll). Sua função
no filme, então, é a de levar o primal,
o antigo, o pré-histórico, ao encontro
da civilização burguesa que se modernizava
nos anos 30. E essa civilização é
formatada em índices bastante claros de diferença
em relação ao ambiente da ilha: é
Nova York (o índice mais claro da cultura ocidental,
como cidade-evento), é Nova York no inverno (com
neve, um índice de diferença em relação
à ilha e também um índice de norte
do mundo, de que se está falando de um antropocentrismo
eurocêntrico), é Nova York no inverno e
com a crise da Grande Depressão (o que dá
à cidade ares capazes, em tese, de compreender
uma ação primal).
Esse terceiro elemento, aliás, é digno
de nota: Jackson que explorar uma noção
estranha de anomia. Ele inicia seu filme propondo uma
explosão da solidariedade mecânica em um
ambiente de crise: só há espaço
na metrópole em crise econômica para a
solidariedade aos muito próximos, aos familiares,
aos grandes amigos. Aos outros, o institucional, o sofrimento.
Esse é o primeiro elemento com o qual ele quer
aproximar homem de animal.
Mas o argumento do diretor é muito estranho,
porque ele alimenta o lado contrário de sua oposição:
ele quer mostrar que há especularidade entre
homem e animal mostrando que o animal é tão
humano quanto o homem (o que faz pela humanização
de Kong) e que o homem é tão animalesco
quanto a fera (mostrando seu comportamento doentio).
Mas utiliza traços de aculturamento poderosos
para justamente provar a animalidade do homem. Ele não
demonstra a animalidade do homem e sim, pelo contrário,
o quanto ele é aculturado, humano. É porque
usa uma noção inocente de "humanismo",
de humano e desumano, que comete esse equívoco.
Mas o segundo personagem central do filme está
mais escondido. Ele funciona mais como uma metonímia,
uma pequena parte que quer conter o todo, uma substituição
do tipo personagem pela trama. É... o grumete
do navio, Jimmy (Jamie Bell, o menino de Billy Elliot,
outra associação curiosa a se pensar na
relação entre o rapaz e a relação
entre natureza e cultura). O misterioso jovem igualmente
vindo não se sabe de onde (como Kong), que tem
um comportamento contra-cultural (ele rouba, é
anti-social etc.) e que está sendo aculturado.
Mas sua posição é mais determinante
porque é por meio dele que entra no filme a citação
a Coração de Trevas, de Joseph
Conrad, que se tornará o espectro que ronda o
filme. Mais que isso, o livro tornar-se-á a própria
metáfora em torno da qual o filme se estrutura.
Ora, Jackson propõe, como mostrei acima, uma
semiologia baseada na contradição natureza
x cultura. Mais que isso, no desejo de confundir os
laços entre animal e homem. Seu desejo é
demonstrar a humanidade do gorila. Ele quer fazer dele
o personagem mais humano de sua história, mostrá-lo
como produtor/executor de uma cultura (no sentido de
zivilisation) própria, mais primitiva,
mas existente. E é neste ponto que a semiose,
a própria construção simbólica,
o trai. Jackson quer que Conrad o ajude a demonstrar
que o gorila é humano. Para tal, ele usa Heart
of Darkness como estrutura modelar de uma saga de
demonstração de que o homem é primal,
animalesco, selvagem, que sua cultura é um mito
e que sua ação é, por vezes, pura
selvageria.
Essa operação, entretanto, não
se sustenta logicamente. Obviamente, não estou
aqui cobrando lógica em sentido estrito de um
filme em que um gorila de sete metros de altura se apaixona
por uma loura. Trata-se, claro, de uma questão
de lógica interna. Jackson mostra clara paixão
pelo filme que refilma. Ele gosta do espetáculo.
E quer dar a ele as cores de "modernização"
como a conhece, a de reconstituição com
elementos de realismo de um espaço fantasioso.
Ele quer que King Kong pareça real, pareça
perfeitamente crível. Fez isso em O Senhor
dos Anéis. Mas tem uma intenção
a mais além dessa, a de dar a King Kong conteúdo
metafórico mais elaborado do que o fabular. Parece
fascinado pelo que fez Ang Lee em seu Hulk, que
ganhou cores de conflito edípico. Quer fazer
um espetáculo-mas-com-profundidade. Para isso,
para mostrar a dicotomia darwinista que tenta trazer
para o filme, opera uma construção insustentável:
tenta demonstrar que o gorila é humano não
pelo gorila e sim pelo homem (mas, afinal, por que Jackson
quer tanto provar isso?).
Daí a composição com coração
de trevas e daí o mergulho obcecado dos marinheiros
na ilha. Eles são movidos por uma estranha solidariedade
heróica, mas, ao mesmo tempo, por um roteiro:
eles querem saber o que há ali, querem vencer
o antigo, ocidentais, caçadores que são.
A busca pela bela Ann Darrow, aliás, é
o momento mais determinante para essa operação.
É o mergulho de homens civilizados em um ambiente
de negação de sua civilidade. Mas são
homens dispostos a agir primalmente. Aqui Jackson se
trai: não é nem tanto a capacidade de
engenharia (planejamento) de Kong o que sobressai, mas
sim a engenharia de capacidades (máquinas, drogas
etc.) do homem. É a cultura que vence a batalha,
não porque há um homem primitivo por trás
dela e sim porque ela é estratégica.
Mas não bastasse trazer Conrad à força
para sua obra, Jackson também traz Tristão.
Isso porque ele cria uma história de amor também
motivada por um roteiro: Ann e o escritor Jack Driscoll
se amam porque nos é dito que se amam. Sua paixão
é apresentada como um traço de caráter
de ambos: ela, porque é atriz e mocinha, apaixona-se
pelo bom e belo moço. Ele, porque é bom
moço, apaixona-se pela mocinha. Entre os dois,
entretanto, ar. O romance não tem história,
não é construído. E essa é
a maior falha dramatúrgica de Jackson. Faltou-lhe
justificar a operação mais complexa do
filme: o homem que, por amor, atira-se à selva
e, depois, lança-se contra o gorila na cidade.
Driscoll parece movido mais por sua solidariedade heróica,
pelo fato de que é herói. É para
provar seu "heroísmo real", aliás,
que existe o personagem de Bruce Baxter, o ator canastrão
(que de uma hora para outra vira herói e depois,
volta a ser um moleirão, sem motivação
aparente). Driscoll, então, salva a mocinha mais
porque tem um programa, uma plataforma.
Essa ausência de profundidade do romance fortalece
ainda mais a contradição da economia das
solidariedades de Jackson. Da Grande Depressão,
ele migra para uma Nova York de burguesia eufórica,
capaz de ir a um espetáculo ver um gorila gigante
para recuperar a auto-estima combalida pela crise. Ora,
1933 é o ano de implementação do
New Deal de Roosevelt, a partir do projeto de Keynes,
tudo baseado justemente na institucionalização
dos laços de solidariedade americana. Mas de
uma solidariedade orgânica, impessoal, baseada
na idéia de distribuição de renda
centrada no crescimento econômico de toda a economia.
Mas isso não estava previsto para as relações
pessoais e muito menos para a economia das paixões.
A luta pelo outro até a morte continua sendo
um elemento a ser pensado particularmente.
Por isso mesmo, o triângulo amoroso do filme é
seu elemento mais incongruente. O gorila matava mulheres.
Não mata Ann porque ela é uma mulher emancipada
(não é esse o traço mais forte
da mulher ocidental?), que não aceita seus arroubos
de, para o filme, machismo. Para Jackson, King Kong
é Fred Flintstone, é Homer Simpson. É
um primata grosseiro, que quebra tudo em seu entorno
e que só fica dócil quando está
diante da contemplação, sentada. Kong
é um couch potato. Fica sentado horas
vendo um espetáculo de luz e cor à distância
(como Flintstone e Simpson, que vêem a televisão).
Só falta ao gorila uma cerveja. Pois Ann não
aceita suas imposições. E é cumplice,
já que cultua o espetáculo. Ela, então,
parece estar interessada (como outra heroína
clássica da época, Olivia Palito. O filme
mais clássico de Popeye, aliás, Popeye
the Sailor, é de... 1933), nos músculos
de um de seus pretendentes e na índole bondosa
do outro. É nos olhos doces da fera que ela encontra
doçura. É nas ações do outro
que encontra segurança. Mas nenhuma das três
relações é trabalhada pelo filme.
A de Ann e Driscoll, como já disse, transforma-se
em um esquema. No máximo, é uma paixão-fulminante-à-primeira-vista(ou
lida, no caso da atriz leitora das peças do escritor)-com-cara-de-amor-de-cinema.
No máximo é uma atração
física apimentada pelo conteúdo idílico
da viagem ao desconhecido. Os dois se apaixonam como
se apaixonam integrantes de reality show de confinamento.
A de Ann e de Kong, também como já disse,
igualmente transforma-se em um esquema. É o programa
do filme. Programa vazio de humanização.
A de Driscoll e Kong é nula. Existe também
apenas para que o filme oponha o traço monstruoso
de Kong (porque, afinal, ele é incontrolável,
já que ama e é incompreendido) à
rigidez de caráter do escritor.
Alexandre Werneck
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