KING KONG
Peter Jackson, King Kong, EUA/Nova Zelândia, 2005

Amor e solidão: sentimentos que preenchem e que aprisionam o romântico King Kong de Peter Jackson. Mais do que a promessa de consumação do ato sexual representada pela loura platinada, tal qual na fantasia freudiana de Merian C. Cooper e de Ernest B. Schoedsack – que a primeira refilmagem, de 1976, explorou até o limite –, o solitário gorila de agora persegue a Beleza e o Mistério do amor idealizado que tanto busca – imerso nos próprios sonhos, ao olhar desoladamente para o horizonte infinito, seja em seu refúgio na Ilha da Caveira, seja no topo do Empire State Building.

Depois de reencontrar Ann Darrow em Nova York – verdadeira aparição, que emerge luminosa das sombras –, Kong a leva para o Central Park, onde, sobre o lago congelado, brinca e se diverte como criança apaixonada. Embora fisicamente destroçado, com o peso da velhice e da solidão estampado na face, e com lacerações e feridas pelo corpo inteiro, o gorila que Jackson traz de volta às telas ainda preserva o olhar infantil e curioso de quem ama incondicionalmente. Se habita no inferno das próprias emoções – e a citação a O Coração das Trevas refere-se mais aos sentimentos conturbados que às pulsões sexuais –, que o forçam a destruir o ser amado (ou seja, as mulheres que a tribo local lhes oferece em sacrifício), o herói também consegue se sensibilizar com o vaudeville apresentado por Ann, outra outsider que foge da selva de concreto em meio à depressão econômica, a fim de realizar o sonho de encontrar (e se apaixonar) pelo escritor Jack Driscoll.

Enquanto os animais que compõem a fauna pré-histórica da Ilha da Caveira existem em grupos, Kong vive sozinho. É o preço pelo poder que exerce, pela realeza que possui: quanto mais alto, mais solitário, em virtude do medo e da incompreensão que causa nos demais – idéia semelhante à utilizada por Martin Scorsese em O Aviador, segundo o qual, como diz Katherine Hepburn, "há Howard Hughes demais em Howard Hughes". Somente Ann se aproxima do gorila, no início pelo interesse de fugir e de se libertar, mas, quando salva por Kong das garras de três tiranossauros (seqüência excluída do original de Cooper/Schoedsack em face da deficiência nos efeitos em stop-motion), pelo afeto e pela identificação que a atriz passa a sentir pelo trágico herói. Contudo, mesmo que haja solidariedade e paixão, o relacionamento entre ambos está fadado ao fracasso, uma vez que a postura de Ann é por demais ambígua: se, por um lado, ela alimenta as esperanças românticas de Kong, por outro se lança aos braços de Driscoll tão logo os biplanos abatem a fera a tiros.

Jack Driscoll constitui a maior alteração empreendida por Peter Jackson, Fran Walsh e Philippa Boyens na história original de Edgar Wallace e de Merian C. Cooper. Se, em 1933, Driscoll era o imediato do navio que conduzia Carl Denham e equipe rumo à Ilha da Caveira, ele se transforma, em 2005, no roteirista que, enganado pelo diretor, escreve dentro da jaula que serve para o transporte ilegal de animais (metaforizando a condição quase escrava do escritor em Hollywood, à época). Na mudança, fica patente a intenção de Jackson de refletir acerca da representação e do espetáculo que constroem o processo fílmico, como já o fizera na trilogia de O Senhor dos Anéis: da mesma forma que na adaptação de J.R.R. Tolkien existia o livro com o qual Sam, o primeiro "contador de histórias", deve propagar a saga da destruição de Sauron e do retorno de Aragorn ao trono de Gondor, em King Kong há, a princípio, o filme dentro do filme – e, posteriormente, o show teatral, farsesco e exagerado, que Denham encena para se aproveitar da captura do gorila, a "oitava maravilha do mundo" ao alcance de todos que paguem 25 centavos pelo ingresso.

O cinema de Peter Jackson se baseia no exagero pelo exagero, que nasce da contradição fundamental entre a crença do cineasta em recuperar a mágica da narrativa e a consciência de que a tarefa, na prática, é impossível, visto que se encontra contaminada por um século de produção em massa. O diretor neo-zeolandês sonha em voltar a Mèliés, mas sabe que, por mais fantásticos que sejam os efeitos visuais obtidos (e os são, tanto em O Senhor dos Anéis, quanto em King Kong), a platéia jamais se surpreenderá novamente, como quando se encantava com o ilusionismo dos primórdios da sétima arte. Assim, ao mesmo tempo em que Jackson usa e abusa da tecnologia digital, dos travellings voadores que comprimem tempo e espaço, das câmeras lentas que intensificam os momentos arquidramáticos da narrativa, das caracterizações estereotipadas e dos diálogos literários com o intuito de gerar o máximo de impacto sensório e emotivo, ele também não pára de se sabotar, seja através do cozinheiro Lumpy – estranha paródia de Frodo, a quem se assemelha inclusive pela paixão homossexual que nutre por Choi, seu assistente –, seja por intermédio do cínico e larápio Carl Denham, que se interessa apenas pelo dinheiro que o cinema pode lhe trazer.

Assim como Denham, no King Kong original, era alter ego de Merian. C. Cooper, nesta refilmagem o personagem se inspira nitidamente no próprio Peter Jackson. Exemplar a primeira seqüência em que o cineasta aparece, quando, na sala de projeção, tenta convencer os executivos da Universal (estúdio que produziu ambas as versões do gorila) a lhe darem mais dinheiro para que continue o projeto. Curiosos são os argumentos que os produtores elencam para cancelar o filme: segundo eles, Denham não sabe dirigir, e realiza somente obras em lugares e com animais estranhos. Trata-se, por certo, de Jackson ironizando as críticas que recebe desde que Almas Gêmeas o tornou conhecido para além do circuito trash/gore a que Meet the Feebles e Fome Animal estavam restritos, do mesmo modo que retrata a figura do diretor de cinema enquanto manipulador, tratante e falsário. Denham, na visão de Jackson, engana o público ao anunciar e vender Kong como o Mistério saído dos confins da Terra, já que não há magia no show mostrado dentro do filme, tão somente o exibicionismo vazio do espetáculo em si.

Ao contrário de Carl Denham, Peter Jackson preserva o Mistério, sob a avalanche de efeitos digitais que querem mostrá-lo e, paradoxalmente, também escondê-lo, no olhar sonhador e perdido do herói, que fita o horizonte. A bela que matou a fera não é, pois, a loura platinada que desperta a sexualidade primitiva encarnada por Kong, como no filme de Cooper e Schoedsack, mas antes do ideal de Beleza que aprisiona e que força o solitário romântico a se tornar companheiro de si mesmo.


Paulo Ricardo de Almeida