Amor
e solidão: sentimentos que preenchem e que aprisionam
o romântico King Kong de Peter Jackson.
Mais do que a promessa de consumação do
ato sexual representada pela loura platinada, tal qual
na fantasia freudiana de Merian C. Cooper e de Ernest
B. Schoedsack – que a primeira refilmagem, de 1976,
explorou até o limite –, o solitário gorila
de agora persegue a Beleza e o Mistério do amor
idealizado que tanto busca – imerso nos próprios
sonhos, ao olhar desoladamente para o horizonte infinito,
seja em seu refúgio na Ilha da Caveira, seja
no topo do Empire State Building.
Depois de reencontrar Ann Darrow em Nova York – verdadeira
aparição, que emerge luminosa das sombras
–, Kong a leva para o Central Park, onde, sobre o lago
congelado, brinca e se diverte como criança apaixonada.
Embora fisicamente destroçado, com o peso da
velhice e da solidão estampado na face, e com
lacerações e feridas pelo corpo inteiro,
o gorila que Jackson traz de volta às telas ainda
preserva o olhar infantil e curioso de quem ama incondicionalmente.
Se habita no inferno das próprias emoções
– e a citação a O Coração
das Trevas refere-se mais aos sentimentos conturbados
que às pulsões sexuais –, que o forçam
a destruir o ser amado (ou seja, as mulheres que a tribo
local lhes oferece em sacrifício), o herói
também consegue se sensibilizar com o vaudeville
apresentado por Ann, outra outsider que foge
da selva de concreto em meio à depressão
econômica, a fim de realizar o sonho de encontrar
(e se apaixonar) pelo escritor Jack Driscoll.
Enquanto os animais que compõem a fauna pré-histórica
da Ilha da Caveira existem em grupos, Kong vive sozinho.
É o preço pelo poder que exerce, pela
realeza que possui: quanto mais alto, mais solitário,
em virtude do medo e da incompreensão que causa
nos demais – idéia semelhante à utilizada
por Martin Scorsese em O Aviador, segundo o qual,
como diz Katherine Hepburn, "há Howard Hughes
demais em Howard Hughes". Somente Ann se aproxima
do gorila, no início pelo interesse de fugir
e de se libertar, mas, quando salva por Kong das garras
de três tiranossauros (seqüência excluída
do original de Cooper/Schoedsack em face da deficiência
nos efeitos em stop-motion), pelo afeto e pela
identificação que a atriz passa a sentir
pelo trágico herói. Contudo, mesmo que
haja solidariedade e paixão, o relacionamento
entre ambos está fadado ao fracasso, uma vez
que a postura de Ann é por demais ambígua:
se, por um lado, ela alimenta as esperanças românticas
de Kong, por outro se lança aos braços
de Driscoll tão logo os biplanos abatem a fera
a tiros.
Jack Driscoll constitui a maior alteração
empreendida por Peter Jackson, Fran Walsh e Philippa
Boyens na história original de Edgar Wallace
e de Merian C. Cooper. Se, em 1933, Driscoll era o imediato
do navio que conduzia Carl Denham e equipe rumo à
Ilha da Caveira, ele se transforma, em 2005, no roteirista
que, enganado pelo diretor, escreve dentro da jaula
que serve para o transporte ilegal de animais (metaforizando
a condição quase escrava do escritor em
Hollywood, à época). Na mudança,
fica patente a intenção de Jackson de
refletir acerca da representação e do
espetáculo que constroem o processo fílmico,
como já o fizera na trilogia de O Senhor dos
Anéis: da mesma forma que na adaptação
de J.R.R. Tolkien existia o livro com o qual Sam, o
primeiro "contador de histórias", deve
propagar a saga da destruição de Sauron
e do retorno de Aragorn ao trono de Gondor, em King
Kong há, a princípio, o filme dentro
do filme – e, posteriormente, o show teatral, farsesco
e exagerado, que Denham encena para se aproveitar da
captura do gorila, a "oitava maravilha do mundo"
ao alcance de todos que paguem 25 centavos pelo ingresso.
O cinema de Peter Jackson se baseia no exagero pelo
exagero, que nasce da contradição fundamental
entre a crença do cineasta em recuperar a mágica
da narrativa e a consciência de que a tarefa,
na prática, é impossível, visto
que se encontra contaminada por um século de
produção em massa. O diretor neo-zeolandês
sonha em voltar a Mèliés, mas sabe que,
por mais fantásticos que sejam os efeitos visuais
obtidos (e os são, tanto em O Senhor dos Anéis,
quanto em King Kong), a platéia jamais
se surpreenderá novamente, como quando se encantava
com o ilusionismo dos primórdios da sétima
arte. Assim, ao mesmo tempo em que Jackson usa e abusa
da tecnologia digital, dos travellings voadores
que comprimem tempo e espaço, das câmeras
lentas que intensificam os momentos arquidramáticos
da narrativa, das caracterizações estereotipadas
e dos diálogos literários com o intuito
de gerar o máximo de impacto sensório
e emotivo, ele também não pára
de se sabotar, seja através do cozinheiro Lumpy
– estranha paródia de Frodo, a quem se assemelha
inclusive pela paixão homossexual que nutre por
Choi, seu assistente –, seja por intermédio do
cínico e larápio Carl Denham, que se interessa
apenas pelo dinheiro que o cinema pode lhe trazer.
Assim como Denham, no King Kong original, era
alter ego de Merian. C. Cooper, nesta refilmagem
o personagem se inspira nitidamente no próprio
Peter Jackson. Exemplar a primeira seqüência
em que o cineasta aparece, quando, na sala de projeção,
tenta convencer os executivos da Universal (estúdio
que produziu ambas as versões do gorila) a lhe
darem mais dinheiro para que continue o projeto. Curiosos
são os argumentos que os produtores elencam para
cancelar o filme: segundo eles, Denham não sabe
dirigir, e realiza somente obras em lugares e com animais
estranhos. Trata-se, por certo, de Jackson ironizando
as críticas que recebe desde que Almas Gêmeas
o tornou conhecido para além do circuito trash/gore
a que Meet the Feebles e Fome Animal estavam
restritos, do mesmo modo que retrata a figura do diretor
de cinema enquanto manipulador, tratante e falsário.
Denham, na visão de Jackson, engana o público
ao anunciar e vender Kong como o Mistério saído
dos confins da Terra, já que não há
magia no show mostrado dentro do filme, tão somente
o exibicionismo vazio do espetáculo em si.
Ao contrário de Carl Denham, Peter Jackson preserva
o Mistério, sob a avalanche de efeitos digitais
que querem mostrá-lo e, paradoxalmente, também
escondê-lo, no olhar sonhador e perdido do herói,
que fita o horizonte. A bela que matou a fera não
é, pois, a loura platinada que desperta a sexualidade
primitiva encarnada por Kong, como no filme de Cooper
e Schoedsack, mas antes do ideal de Beleza que aprisiona
e que força o solitário romântico
a se tornar companheiro de si mesmo.
Paulo Ricardo de Almeida
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