carta de iguatu

*Carta escrita em Iguatu-CE,, durante as filmagens do longa “Rifa-me” de Karim Ainouz, no qual trabalhei como Diretor Assistente e Roteirista.

24/08/05   Iguatu – Ceará

Marina, saudades.

Não sei em quantos dias essa distância se transforma, então não sei prever quando é que vai conseguir receber esta carta que escrevo às pressas da padaria “Tropikal”, comendo alguma coisa rápida antes de ir para o set com o Karim.

Hoje à noite a gente completa a quarta semana de filmagem, o que significa que estamos na metade do caminho. O trabalho no filme há muito ultrapassou as limitações de uma função e estou completamente imerso em cada cena, cada movimento, cada diálogo... Te contei que estamos reescrevendo muitas e muitas cenas do filme ao longo das filmagens? Karim aposta muito no improviso dirigido dos atores e na descoberta emergencial dos espaços – ensaiamos com câmera várias cenas e a partir dos ensaios redefinimos tons e passagens de cada cena, de cada espaço. Já virei algumas noites reescrevendo seqüências para o Karim ler no café da manhã e tchun (!): lá vamos nós para o set colocar as novidades para acontecer. Isso quando eu não sento num canto do set para organizar no papel a profusão de idéias que vem das conversas intermináveis com o Karim, das referências e dos afetos que carregamos com a gente a cada dia.

Karim nutre uma adorável obsessão por tudo o que faz: cada plano, cada tom de palavra, são pensados e pesados, sentidos, repensados, revistos, procurados em fragmentos de filmes da coleção de DVDs que ele carrega consigo. Karim é um exemplar raro daqueles diretores do cinema brasileiro que tem o costume raro de....ver filmes! E de Jia Zhang-ke, de Hou, de Fassbinder, de Tsai, de Cassavettes e de Iracema vêm vindo os ares que dão o corpo e o peso ao que ele vislumbra. Porque o Karim parece fazer este filme como quem intui um tom, uma sintonia, uma radiação. Desde a escolha do elenco a coisa se deu assim: Karim olhava para Hermila e nela ali via a substância que ele procurava. Não importaram os testes e os meses de busca, a Suely de Karim se chamava Hermila. Hermila Guedes do rosto quadrado, os olhos verdes e as pernas tortas. Não à toa, nesse processo de preparação com a Fátima Toledo os personagens foram sendo moldados aos gestos e corpos dos atores, ganhando seus contornos, seus tiques, e cada vez mais nos entregamos a encontrar nos atores o lugar e o tom das personagens que tinham sido escritos antes deles aparecerem. Suely se tornou Hermila e tomou para si o peso e a responsabilidade de carregar nos olhos um filme inteiro. E como ela carrega... Hermila, mais do que uma protagonista, foi se tornando a fonte de luz do filme – uma luz caótica, dura e alegre. Alguém que pode ser um vulto asiático ou uma pomba-gira num intervalo de frações de segundo. E é isso que Karim procurava, eu acho: esse desacerto, essa energia incontornável. Ontem filmamos a cena em que Hermila é expulsa da casa da avó e estou até agora com um nó aqui no peito. No estômago. Fazer um filme para os sonhos e para o corpo. Fazer um filme em Iguatu?

Até hoje ouvimos nas ruas a pergunta dos locais boquiabertos: Por quê?

Foi em abril passado que eu comecei a entender, lembra? Quando pisei aqui pela primeira vez numa visita relâmpago com o Karim e o Walter: Iguatu não existe. É um nada e ao mesmo tempo é tudo o que existe no mundo. Um desejo imenso inacabado e uma sujeira de vontades atravessadas, ecoadas, como se sonhos do mundo todo encontrassem aqui o lugar de se perder...e de deixar as suas sombras. Iguatu é o deserto e o centro do mundo. E o absoluto e o imprevisível. Um abismo de cores e luzes frias, de néons que são como a resposta silenciosa ao chão seco em que se pisa, para o céu lavado ao qual se olha.

Uma falta que vai além do material, do dinheiro, de empregos, de futuro – mas um pulso doído que parece ser o tom nos olhos dos mototaxistas, das meninas bonitas que perambulam ouvindo Britney e forró eletrônico, nas praças escuras, nas vendedoras das lojas de televisão, no recepcionista do hotel, no gosto da comida sempre cheia de misturas, moídos e maionese.

Um caos monótono. Uma monotonia que intui o caos. É tudo falso, fluorescente, é tudo verdadeiro. E a gente vai se impregnando dessa alegria iluminada por uma tristeza profunda – como aquela melancolia inevitável de se olhar o mar.

Fazer um filme aqui é como não fazer um filme. É um despedaço e os tempos longos são pequenos, curtos perto da imensidão. Iguatu não acontece. Karim e Marcos Pedroso passavam dias e dias olhando a cidade, procurando gestos, tons, caminhos – entendendo a imagem possível desse formigamento. A história aqui começou ontem, começou a poucos segundos: não há prédios históricos, fachadas bucólicas, memórias... Narrar um filme aqui é um desafio do tempo, contra o tempo e para o tempo. Porque não existem eventos, dados, fatos: existe Iguatu e só.

Tenho pensado muito no Rio de Janeiro. Na maldição da beleza que a gente carrega na nossa cidade. Iguatu e o Rio não são muito diferentes. Iguatu e o Rio de Janeiro são tristes. Talvez o Rio de Janeiro seja mais triste que Iguatu. E fazer este filme tem me dado raiva, angustia e uma vontade odiosa de filmar o Rio. Essa baleia morta na beira d’água – tão bonita.

Outro dia a gente brincava que o sonho do Karim era fazer um filme asiático em que as pessoas tivessem muita raiva, tesão, falassem alto e soubessem dançar. A gente ria. Mas as vezes é mesmo assustador como o cinema de ficção no Brasil contemporâneo tem tido tão pouco de verdadeiro interesse. Dramaturgia, temporalidade, tom e ritmo: é difícil encontrar na filmografia brasileira alguma coisa que possa servir de norte para o que o Karim procura. O vigor estético e a generosidade dramatúrgica que ele intui e tenta alcançar não se vê em lugar algum do cinema hoje feito no Brasil. Isso dá muita vontade, coragem, mas também dá uma tristeza absurda de se sentir um estrangeiro.

Suely-Hermila é esse desejo ambíguo de fugir e de enfrentar – de se esgueirar nessa cidade viva-morta, e emergir dela como uma contração das ruas, do ar. Nem meio nem agente – flutuações de um tom é que antes musical do que sociológico. Rifa-me (ou “Suely” como o chamamos carinhosamente) queria ser ao mesmo o rigor e a liberdade, o vigor estético e a generosa afetividade. “Documentar um sentimento”, diz Karim. Encontrar a emoção exata de uma composição apaixonada, às cegas, tateando.

Todo o filme é como a procura dessa sintonia exata em que sobrevive a vontade, a alegria e a raiva que são de Karim e de Hermila. E Karim grita no set, pede mais: quase salta na câmera como se algumas imagens precisassem de seu corpo agitado para poderem surgir. Karim diz que o filme é um filme de amor... Eu vejo aqui um filme de paixão: feito por um diretor e para um personagem apaixonados demais por tudo que os cerca. O elenco viveu conosco na cidade por dois meses. Karim quer que não existe interpretação mas que exista afeto. E que se afete junto à câmera o tempo dessa cidade. Se Madame Satã era a imagem do claro-escuro, da raiva e da doçura através das máscaras, Hermila é a imagem de uma radiação, de um sinal colhido no espaço-sideral. Um close como uma imagem intergaláctica – foto de um telescópio apontado para o inverso dos olhos. Vibrações como imagens colhidas em um deserto de postos de gasolina e luzes frias. De postes escassos e vultos.

Em pleno sertão cearense, sem chuva e com um céu tão iluminado que parece tomado por um véu – vive este centro urbano, comercial, com ruas tomadas de jovens de olhos perdidos e roupas coloridas. Tudo aqui se sorteia, se rifa. Bingos pelas ruas dão prêmios em dinheiro, DVDs, cestas de sabonetes. Um sertão com o cheiro da gasolina das motos e dos perfumes agudos das raparigas. Triste. E alegre como nada mais. Como as placas luminosas e os neons que competem com as noites de lua. Ou os faróis de pick-ups que cortam as ruas escuras.

Encontrar nas personagens não a chave do entendimento, mas o mergulho no vozerio. Um vozerio que atravessa e emana de uma só menina: Suely é a vontade de ser tudo e de ser porra nenhuma, de amar partir e de querer voltar. Uma menina só. De sua avó. De sua tia. De suas amigas. De seus amores. Do choro de seu filho.

Tudo. Longos planos de silêncio - palavras sussurradas e gritadas. Pouca luz. Roteiro de pontuações. Diálogos esboçados na sala de aquecimento. Viradas de madrugadas. Nada está pronto em Iguatu. Tudo já aconteceu. Tudo está ainda para acontecer. Tudo se resume a uma imagem. Mas nenhuma imagem em paz será suficiente.

Um filme vivido do extremo e na sutileza: como um melodrama, como um filme de aventura, como um romance de capa-e-espada, como um bang-bang, como uma ficção científica, como um musical sem música... Tsai, Hou, Jia Zhang-ke, Denis, Sirk, Fassbinder, Hong, Dumont, Iracema, Wild Bunch e Juventude Transviada. Que Karim carrega nele todo o tempo como um desejo. E que talvez na tela se realize em beleza. Na beleza que a gente quer e que procura nos últimos três meses. Que é antes de tudo um sinal da força, do possível, do vigor e do erro. Do erro que é a fresta, a fresta por onde - na platitude dos planos, na vagarosa passagem das horas, na solidão, nos vazios, nos quadros quietos e nos travellings fantasmagóricos, no abandono da luz pequena e da cenografia de impregnações e sem símbolos - sonhamos saber gerar uma faísca quente, seca, aguda. E dela fazer um filme.

Até meados de setembro ainda falta tempo até eu chegar. Agora tenho que colocar esta carta no correio antes que Karim apareça aqui buzinando o Uno Branco. A locação e a sua decupagem escondida nos esperam... No mais, o tempo passando, e essa saudade e desgosto pelo Rio de Janeiro aumentando. Vontade de voltar ou de me exilar. Passar algum tempo em Portugal escrevendo ou em um interior perdido. Um sentimento grande de expansão, de sentidos aguçados, de corpo disposto. Queria você aqui comigo neste momento de ebulição. Virei uma maquininha de escrever. Mande um abraço para o Valente – diga a ele que já sei das boas novidades e que assim que eu chegar no Rio, quero saber do Vórtice, d’O monstro e de tudo mais. Estou pensando em escrever uma carta como essa para ser publicada na Contracampo – acho que pode ser bom. Karim topou a idéia. Está tudo apenas começando, meu amor...Tenho certeza. E nossos amigos, todos, também sabem.

Me encha de idéias e planos assim que eu chegar.

Um beijo,

Felipe Bragança