HARRY POTTER E O CÁLICE DE OURO
Mike Newell, Harry Potter and the Goblet of Fire, EUA, 2005

Após o Prisioneiro de Azkaban – a quase obra-prima de Alfonso Cuarón – este novo Harry Potter trilha caminhos de tom e estrutura que, se não iguais, ao menos se assemelham ao de seu antecessor. Caminho este que Mike Newell sustenta com o apoio do roteirista Steve Kloves, decerto peça-chave nessa nova trilha que os dois últimos filmes apontaram para a série, em particular na habilidade de Kloves em dar alguma coerência ao caos que é condensar um livro de 734 páginas num roteiro de longa-metragem. Os recortes extraídos do livro estão bastante coerentes com os interesses de Mike Newell, que em muitos momentos simplesmente deixa de desenvolver a ação que impulsiona a narrativa para se concentrar em pequenos dilemas adolescentes de seus personagens.

As questões sobre narrativa, também levantadas em Azkaban, ressurgem aqui, invertendo algumas das noções tradicionais, como por exemplo excluindo um vilão ou um mistério a ser derrotado/confrontado/descoberto da trama, elemento que pontuava os episódios anteriores. A trama caminha tendo como único foco um torneio de bruxos que Harry acaba por participar contra vontade. Mas nesse torneio Harry não enfrenta inimigos, pelo contrário. O filme dá pistas a cada momento de que finalmente um de seus três adversários poderá se tornar mais do que um oponente no torneio, mas sempre termina por mostrá-los com uma positividade rara. Mesmo o personagem Viktor Krum, que tem todo um cacoete de vilão – tendo um mestre que levanta mistérios na trama e inclusive torna-se um empecilho para o romance de Hermione e Ron –, acaba por só se tornar um inimigo quando enfeitiçado para tal. Há sim sempre no ar um suspense, uma noção de algo que está para acontecer, mas esse mistério em si se dá fora do texto, por meio de um preciso trabalho de tempo e clima de Newell. São pequenos momentos como Snape e Igor tendo uma conversa privada num quarto, as tentativas de Potter de desvendar seu sonho, a cena em que Snape encurrala Harry, trechos que criam o clima de que algo se está encaminhando, mas que não são o que impulsionam estes personagens a tocar a narrativa.

Newell esbanja talento como encenador em muitos momentos, mas tem diversas dificuldades quando precisa realizar certos tipos de cena, em especial quando tem que correr com o tempo e, via montagem, organizar aquilo que mostra. Isso fica muito claro nas cenas de ação. Quando o roteiro lhe oferece saídas fáceis, como a fuga após a copa de quadribol quando Harry fica desacordado, a coisa funciona. Mas quando ele corre com a montagem, o resultado não é dos melhores. Estes momentos não chegam a prejudicar de forma mais incisiva o filme, mas há cenas – como a que Harry enfrenta o dragão – que ficam aquém de suas possibilidades cênicas. Quando se dispõe a encenar com mais calma e com controle sobre o tempo, no clímax especialmente, o resultado é muito bom, provando que Newell está longe de ser artesão de um estilo só. Estes momentos travados só ajudam a reforçar diversos dos tempos calmos, como quando se interrompe a ação do filme para, entre uma prova do torneio e outra, se concentrar por uma boa duração num típico momento de high school: um baile com direito aos anseios de todos os jovens em relação aos convites e afins.

Newell sabe parar a câmera e permitir que os atores respirem e existam diante dela. Seus atores têm a liberdade de trabalhar em registros diferentes sem que entrem em conflito. Outro momento em que Newell deixa claro aquilo que mais lhe interessa em cena é quando os alunos se candidatam para o torneio, colocando seu nome no cálice de fogo. Ali, ele inverte a lógica do livro de J.K. Rowling, em que a grande ação dramática é observar a chegada de Krum à tocha. O cineasta trata este momento como um rápido instante, e volta a cena para George e Fred, os geniais gêmeos Weasley, que em meio à descrença de seus amigos pretendem burlar com um feitiço o limite de idade do torneio.

O baile em si é digno de alguns dos melhores momentos do filme, como o longo tempo morto em que Harry e Ron ficam sentados simplesmente observando todos os outros agitados e dançando, ou a discussão entre Ron e Hermione, a primeira cena oficialmente de casal – mesmo que ainda não o sejam factualmente – da dupla. Cena bastante forte não só pelos atores, mas também pela forma como Newell a costura, com Harry abandonando repentinamente a cena para que o casal discuta, e depois subitamente retornando ao quadro, para que Hermione possa chorar à beira da escada.

Um dos pontos mais interessantes deste filme enquanto peça de uma saga é o trabalho que ele realiza de desmistificação de Harry Potter como grande bruxo. Em O Prisioneiro de Azkaban, assistimos a um ensaio de como Harry necessitava dos outros, e aqui as situações intensificam um pouco esta perspectiva. Temos um torneio em que um grupo de jovens bruxos disputa prova a prova quem é o mais hábil, um prêmio de honraria eterna. O que à primeira vista poderia ser o óbvio dentro de uma saga com estas proporções – a vitória de Harry como o grande bruxo – é invertido por meio da revelação de que o jovem Potter fora usado como muleta para o maior dos medos que ali habitam: o retorno do lorde Voldemort. Manipulado e ajudado por diversas trapaças arranjadas por um personagem-chave da trama, Harry usa e abusa dessas aparentes deficiências como vantagens, e com elas vence o torneio. Estes caminhos não mudam a crença de que Harry é aquele que enfrentará Voldemort, e o momento em que os dops estão face a face só faz reenfatizar isso, mas coloca as conquistas em suspenso (além de demonstrar que, embora sua "fibra moral" seja forte, Harry é capaz de pensar duas vezes antes de escolher o caminho que irá percorrer, destorcendo um pouco sua moral até então retratada; vale lembrar que mesmo quando Harry havia se portado de forma menos "correta", como no começo de Azkaban quando briga com os tios de forma instintiva, ele era provocado por algo ou alguém; já quando Harry está no labirinto com Cedric, ele age sem direcionamento de outros).

Com um fim pesado e consideravelmente negativo, é uma pena que Newell arraste um pouco mais o filme, quebrando um pouco o impacto da morte de um personagem e do retorno do grande vilão – que até então só se manifestava como um fenômeno opressivo –, levando um pouco o foco de volta a Harry. O mais importante, no entanto, é o fato de que o filme se fecha com o plano dos três amigos, o núcleo de toda a saga, afinal. Como obra de cinema, Harry Potter e o Cálice de Fogo firma de vez a saga num caminho oposto ao tom dos dois primeiros filmes. Enquanto em Azkaban vimos um filme mais raivoso e vigoroso, neste Cálice de Fogo é hora de se observar e conviver um pouco mais com estes jovens personagens e seus destinos nebulosos.


Guilherme Martins