Após
o Prisioneiro de Azkaban a quase
obra-prima de Alfonso Cuarón este novo
Harry Potter trilha caminhos de tom e estrutura que,
se não iguais, ao menos se assemelham ao de seu
antecessor. Caminho este que Mike Newell sustenta com
o apoio do roteirista Steve Kloves, decerto peça-chave
nessa nova trilha que os dois últimos filmes
apontaram para a série, em particular na habilidade
de Kloves em dar alguma coerência ao caos que
é condensar um livro de 734 páginas num
roteiro de longa-metragem. Os recortes extraídos
do livro estão bastante coerentes com os interesses
de Mike Newell, que em muitos momentos simplesmente
deixa de desenvolver a ação que impulsiona
a narrativa para se concentrar em pequenos dilemas adolescentes
de seus personagens.
As questões sobre narrativa, também levantadas
em Azkaban, ressurgem aqui, invertendo algumas
das noções tradicionais, como por exemplo
excluindo um vilão ou um mistério a ser
derrotado/confrontado/descoberto da trama, elemento
que pontuava os episódios anteriores. A trama
caminha tendo como único foco um torneio de bruxos
que Harry acaba por participar contra vontade. Mas nesse
torneio Harry não enfrenta inimigos, pelo contrário.
O filme dá pistas a cada momento de que finalmente
um de seus três adversários poderá
se tornar mais do que um oponente no torneio, mas sempre
termina por mostrá-los com uma positividade rara.
Mesmo o personagem Viktor Krum, que tem todo um cacoete
de vilão – tendo um mestre que levanta mistérios
na trama e inclusive torna-se um empecilho para o romance
de Hermione e Ron –, acaba por só se tornar um
inimigo quando enfeitiçado para tal. Há
sim sempre no ar um suspense, uma noção
de algo que está para acontecer, mas esse mistério
em si se dá fora do texto, por meio de um preciso
trabalho de tempo e clima de Newell. São pequenos
momentos como Snape e Igor tendo uma conversa privada
num quarto, as tentativas de Potter de desvendar seu
sonho, a cena em que Snape encurrala Harry, trechos
que criam o clima de que algo se está encaminhando,
mas que não são o que impulsionam estes
personagens a tocar a narrativa.
Newell esbanja talento como encenador em muitos momentos,
mas tem diversas dificuldades quando precisa realizar
certos tipos de cena, em especial quando tem que correr
com o tempo e, via montagem, organizar aquilo que mostra.
Isso fica muito claro nas cenas de ação.
Quando o roteiro lhe oferece saídas fáceis,
como a fuga após a copa de quadribol quando Harry
fica desacordado, a coisa funciona. Mas quando ele corre
com a montagem, o resultado não é dos
melhores. Estes momentos não chegam a prejudicar
de forma mais incisiva o filme, mas há cenas
como a que Harry enfrenta o dragão
que ficam aquém de suas possibilidades cênicas.
Quando se dispõe a encenar com mais calma e com
controle sobre o tempo, no clímax especialmente,
o resultado é muito bom, provando que Newell
está longe de ser artesão de um estilo
só. Estes momentos travados só ajudam
a reforçar diversos dos tempos calmos, como quando
se interrompe a ação do filme para, entre
uma prova do torneio e outra, se concentrar por uma
boa duração num típico momento
de high school: um baile com direito aos anseios
de todos os jovens em relação aos convites
e afins.
Newell sabe parar a câmera e permitir que os atores
respirem e existam diante dela. Seus atores têm
a liberdade de trabalhar em registros diferentes sem
que entrem em conflito. Outro momento em que Newell
deixa claro aquilo que mais lhe interessa em cena é
quando os alunos se candidatam para o torneio, colocando
seu nome no cálice de fogo. Ali, ele inverte
a lógica do livro de J.K. Rowling, em que a grande
ação dramática é observar
a chegada de Krum à tocha. O cineasta trata este
momento como um rápido instante, e volta a cena
para George e Fred, os geniais gêmeos Weasley,
que em meio à descrença de seus amigos
pretendem burlar com um feitiço o limite de idade
do torneio.
O baile em si é digno de alguns dos melhores
momentos do filme, como o longo tempo morto em que Harry
e Ron ficam sentados simplesmente observando todos os
outros agitados e dançando, ou a discussão
entre Ron e Hermione, a primeira cena oficialmente de
casal – mesmo que ainda não o sejam factualmente
– da dupla. Cena bastante forte não só
pelos atores, mas também pela forma como Newell
a costura, com Harry abandonando repentinamente a cena
para que o casal discuta, e depois subitamente retornando
ao quadro, para que Hermione possa chorar à beira
da escada.
Um dos pontos mais interessantes deste filme enquanto
peça de uma saga é o trabalho que ele
realiza de desmistificação de Harry Potter
como grande bruxo. Em O Prisioneiro de Azkaban,
assistimos a um ensaio de como Harry necessitava dos
outros, e aqui as situações intensificam
um pouco esta perspectiva. Temos um torneio em que um
grupo de jovens bruxos disputa prova a prova quem é
o mais hábil, um prêmio de honraria eterna.
O que à primeira vista poderia ser o óbvio
dentro de uma saga com estas proporções
a vitória de Harry como o grande bruxo
é invertido por meio da revelação
de que o jovem Potter fora usado como muleta para o
maior dos medos que ali habitam: o retorno do lorde
Voldemort. Manipulado e ajudado por diversas trapaças
arranjadas por um personagem-chave da trama, Harry usa
e abusa dessas aparentes deficiências como vantagens,
e com elas vence o torneio. Estes caminhos não
mudam a crença de que Harry é aquele que
enfrentará Voldemort, e o momento em que os dops
estão face a face só faz reenfatizar isso,
mas coloca as conquistas em suspenso (além de
demonstrar que, embora sua "fibra moral" seja
forte, Harry é capaz de pensar duas vezes antes
de escolher o caminho que irá percorrer, destorcendo
um pouco sua moral até então retratada;
vale lembrar que mesmo quando Harry havia se portado
de forma menos "correta", como no começo
de Azkaban quando briga com os tios de forma
instintiva, ele era provocado por algo ou alguém;
já quando Harry está no labirinto com
Cedric, ele age sem direcionamento de outros).
Com um fim pesado e consideravelmente negativo, é
uma pena que Newell arraste um pouco mais o filme, quebrando
um pouco o impacto da morte de um personagem e do retorno
do grande vilão – que até então
só se manifestava como um fenômeno opressivo
–, levando um pouco o foco de volta a Harry. O mais
importante, no entanto, é o fato de que o filme
se fecha com o plano dos três amigos, o núcleo
de toda a saga, afinal. Como obra de cinema, Harry
Potter e o Cálice de Fogo firma de vez a
saga num caminho oposto ao tom dos dois primeiros filmes.
Enquanto em Azkaban vimos um filme mais raivoso
e vigoroso, neste Cálice de Fogo é
hora de se observar e conviver um pouco mais com estes
jovens personagens e seus destinos nebulosos.
Guilherme Martins
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