Por
que um glossário? Porque totalizar a experiência
de se assistir às obras quase completas de um
cineasta como Oliveira me pareceu sempre um exercício
completamente inútil. Dar conta de cada um dos
seus aspectos particulares, de cada uma de suas investidas
dramatúrgicas, temáticas, simbólicas,
estéticas, sempre tão coerentes e ao mesmo
tempo tão impossíveis de categorizar,
de conseguir estruturar numa só estrutura crítica-analítica,
com começo, meio e fim, como nossos professores
de redação no colégio nos ensinavam
que deviam ter os textos (introdução,
desenvolvimento, conclusão).
Ao mesmo tempo, se totalizar é impossível,
por que haveria o impulso de sequer tentar fazê-lo?
A resposta para esta pergunta nasce menos de uma reflexão
consciente e mais de um assombro. Assombro no sentido
sobrenatural mesmo, porque se uma das maiores insistências
de Oliveira nas suas entrevistas é sobre a essência
fantasmática da imagem cinematográfica
(opondo o cinema ao teatro, por exemplo), ver tantos
de seus filmes em tão poucos dias fazia com que
suas imagens (e sons) ficassem rondando minha cabeça,
tal e qual assombrações que não
me deixavam descansar. Eu precisava responder a elas.
Por outro lado, por mais que inúmeros de seus
filmes me fascinem especialmente, me parece pouco também
tentar dar conta desta obra (ou ao menos desta experiência
intensiva de mergulho nela) "aos pedaços",
tratando cada filme como parte isolada de um todo. Por
isso mesmo, se eu não posso alcançar este
todo, pelo menos posso tateá-lo senão
por mais nada, pela simples necessidade de me libertar
destes fantasmas. E é disto que é composto
este glossário (por isso mesmo pessoal): de assombros.
Não é uma tentativa de dar conta da obra
de Oliveira por completo, mas de exorcizar cada aspecto
dela que cismava (e cisma) de não me deixar o
pensamento...
Antes de partirmos para ele, porém, um último
esclarecimento me parece essencial: além da mostra
ter tido pelo menos uma ausência importante sentida
(O Meu Caso, que João Bénard da
Costa, no seu belíssimo artigo existente na recente
publicação brasileira sobre o cineasta,
classifica como uma obra central no entendimento da
filmografia do diretor, um marco mesmo de uma virada
"na estética e na metafísica de Oliveira"),
eu ainda deixei de ver pelo menos três outros
longas, que me parecem igualmente importantes (por diversos
motivos): Benilde, O Sapato de Cetim e
Os Canibais. São apenas quatro longas
não vistos, num universo de 26 (além dos
curtas), mas só isso me impede de julgar poder
emitir aqui um olhar completo sobre o conjunto da sua
obra (ainda mais que dos quatro há três
realizados em seqüência, num momento de fato
essencial dos anos 80). É preciso assumir estas
ausências, antes de começar, porque o leitor
pode sentir falta da referência a estes filmes
assim como há pelo menos três que não
vejo há algum tempo (Party, Palavra
e Utopia, Vou para Casa). Feitas as escusas
importantes, ao trabalho...
ARTES
Na entrevista que deu a Leon Cakoff, publicada no
livro Manoel de Oliveira (ver bibliografia comentada),
Manoel de Oliveira afirma que "o cinema veio depois,
para poder ser a síntese de todas as artes".
Se está longe de ser a primeira vez que ouvimos
afirmação com tal sentido, o que mais
importa nesta frase do diretor é ver como ela
está intrinsecamente encarnada em seus filmes,
pois cada um deles, de maneiras diferentes, parece conseguir
efetuar a tal operação de síntese
acima mencionada.
Se no princípio era o verbo, poderíamos
supor que tudo começa com a literatura, com a
palavra, numa obra que se compõe, quase na sua
totalidade, de adaptações de textos previamente
escritos (desde que entendamos que Oliveira realmente
compreende o sentido da palavra "adaptação",
que aliás podia ser outro verbete deste glossário).
No entanto, o que muitos de seus críticos entendem
como um cinema "palavroso", apenas coloca
o papel da palavra em igualdade de condições
(portanto, nem maior, mas também não menor)
aos outros componentes cinematográficos. Como
a música, que é igualmente essencial na
maioria dos seus filmes (e sobre este assunto vale ler
o artigo que João Paes, seu colaborador musical
em vários dos filmes dos anos 70-80 escreveu
no número especial da revista Camões
também listado na bibliografia), ou a pintura
(sobre este assunto, ler o artigo de Tatiana Monassa,
nesta mesma pauta de Contracampo). Ou ainda a arquitetura,
presença de força vital enorme no seu
cinema.
Mas, sem dúvida, é com o teatro que o
diálogo se dá de forma mais completa,
na própria estrutura de vários dos filmes
do realizador (pensamos diretamente em Vou para Casa
ou Inquietude, com suas encenações
das encenações, e mais ainda em O Sapato
de Cetim e O Meu Caso mesmo sem tê-los
visto, basta ler sobre suas estruturas narrativas).
De fato, Oliveira afirma na mesma entrevista a Leon
Cakoff: "o cinema não pode ir além
do teatro, só pode ir sobre o teatro". E
vemos a constância desta relação
de respeito com a forma teatral em cada um dos seus
filmes. A idéia mesmo de encenação,
o trabalho com o ator (cada vez mais privilegiando o
tempo longo nas atuações também),
a frontalidade constante, a sua trupe (ver verbete correspondente):
muito do cinema de Oliveira vem "sobre o teatro".
O que talvez se entenda, mais do que nunca, na entrevista
do livro Conversas com Manoel de Oliveira (de
novo, ver bibliografia), quando ele afirma: "o
teatro é a síntese de todas as artes".
Na distância de oito anos entre as duas entrevistas
citadas (esta última, de 1996, a outra, de 2004),
as frases de Oliveira criam um espelho entre as duas
expressões artísticas (lembremos O
Sapato de Cetim: "cinema é teatro, teatro
é cinema") que, como toda boa expressão
oliveiriana, parece tão contraditório
quanto complementar. Donde se conclui que o principal
no cinema dele é menos o que ele tenha de cinematográfico
(ou seja, tudo), e mais o que ele tem de arte não
de "cinema de arte", só de arte mesmo.
ESPELHO
Falamos em espelho entre teatro e cinema, o que
permite uma boa passagem para o próximo verbete
deste glossário. Aqui, queremos tratar dos objetos-síntese
da imagem oliveiriana, constantemente repetidos
ao longo de sua obra. Se tudo começa (como, não
por acaso, com o cinema em geral) com um trem em Aniki
Bobó, ou com um rio (em Douro,
no próprio Aniki) afinal, tanto Oliveira
afirma que sua primeira lembrança visual do cinema
eram linhas de trem, quanto diz que "a vida é
um rio" estas duas imagens constantes no seu
cinema me parecem menos objetos em si significativos,
e mais a alma do cinema oliveiriano. Por isso
mesmo, me parece desigual sequer compará-los
aos outros "objetos" (entendida a palavra
aqui não no sentido material, mas de linguagem):
rios e trens estão em Oliveira antes mesmo do
cinema, e dizem mais respeito ao conceito seguinte deste
glossário (Fluxo) do que ao que aqui queremos
tratar.
Pensamos, então, em outras constantes: os livros,
a fumaça (de velas, de cachimbos, de trens novamente),
as casas (vários de seus filmes abrem-se sobre
a imagem de uma casa ele afirma nas Conversas
que "as casas têm uma psicologia"),
as cartas (que abrem Francisca onde se afirma
que "nenhuma carta se parece com a outra"
- ou O Dia do Desespero, sem contar a sua importância
em Amor de Perdição), os retratos
(pensemos naqueles que "vigiam" e parecem
condicionar os personagens de Vale Abraão,
por exemplo), as estátuas. Todos objetos recorrentes
e cheios de significado nos filmes de Oliveira nunca
o mesmo significado, claro.
Mas, se necessário fosse escolher um só
objeto como o que mais fortemente me impregna a memória
ao ver seus filmes, eu ficaria mesmo com o espelho.
Espelho, claro, que dá nome ao seu filme mais
recente (Espelho Mágico aquele que "vê
o passado"), mas que está presente com força
desde muito. O espelho também assume muitos papéis
e significados na sua obra: nele podemos ver referência
constante ao tema do duplo, da identidade (algo que
trespassa seus filmes, mas faz pensar em especial em
O Passado e o Presente); nele podemos marcar
o tempo, inclemente (de novo Espelho Mágico:
o efeito do espelho, que é o tempo); mas,
nele, acima de tudo para mim, vemos uma duplicação
da compreensão mesmo que Oliveira tem do específico
da imagem cinematográfica: sua condição
fantasmática. A imagem virtual num espelho é
e não é ao mesmo tempo, está e
não está, captura algo mas não
o encarna. Não por acaso, na maioria das vezes
seus espelhos estão ligados a figuras femininas
(a Ema de Vale Abraão, a Alfreda de Espelho
Mágico, Francisca), igualmente fugidias e
impossíveis de capturar, por mais que se tente
represá-las nas bordas da imagem daqueles espelhos.
Filmadas através de espelhos, são o fantasma
do fantasma belas, eternas, intocáveis. Síntese
da arte oliveiriana.
FLUXO
Falamos acima, rapidamente, da sempre presente imagem
dos rios e dos trens no cinema de Oliveira, e dissemos
que eles parecem anteceder o próprio cinema no
que se refere ao diretor. Em ambos, está sempre
presente a idéia de fluxo, de eterno avançar
ainda que, também em ambos os casos, pareçam
permanecer sempre iguais. Este conceito do fluxo, em
suas conexões constantes entre macro e microuniversos,
me parece o mais adequado para nos aproximarmos da complexa
relação de Oliveira com a História,
com o mundo mesmo.
É curioso ver que, no começo de sua carreira,
quando ainda fazia diversos curtas documentais sempre
sob encomenda, Oliveira tratou de diversos temas diferentes,
repetindo quase sempre uma mesma obsessão: o
processo através do qual uma coisa se transforma
em outra. Lembremos da geração de energia
elétrica em Hulha Branca, das linhas de
produção das três indústrias
típicas da região de Famalicão,
da repetição desta linha em Portugal
já faz Automóveis, do trajeto do trigo
ao consumidor em O Pão. De um filme documental
mais recente, de 1985, não exibido na Mostra
(Simpósio Internacional de Escultura em Pedra
Porto), basta a sinopse: "Oliveira registra
o processo de execução de esculturas em
mármores, granitos e ardósias, desde a
origem a matéria arrancada da pedreira á
amostragem da obra acabada numa sala de exposições".
Sem querer ser excessivamente psicanalítico,
o fato é que todos estes filmes (aos quais Oliveira
constantemente se refere como "menores") parecem
nos revelar um Oliveira quase mais puro, sem dilapidar
mesmo, onde podemos ler nesta repetição
constante de um mesmo tema algo para muito além
da execução de documentários menores
algo ainda um tanto iluminado pela descrição
que Oliveira faz do seu pai como "um visionário
do progresso".
Mas, afinal, o que é o Vale Abraão,
senão o processo de transformação
de uma menina numa mulher, em cada uma das suas fases,
em suas relações com o mundo (neste filme,
no qual o Rio Douro é quase personagem diz-se:
"o rio está diferente, não é
mais o Douro que sempre esteve ali"); ou por outra,
o que é o Non senão uma revisão
da História de um país que permite ligar
(por traços nada óbvios, claro), suas
origens ao seu presente? Ou, ainda mais, o que é
Um Filme Falado senão a própria
encenação do que subtítulo do filme
seguinte de Oliveira (Ontem, como Hoje "viajar
milênios de civilização para encontrar
seu pai", dizia o slogan do filme). Em todos eles,
a idéia do fluxo, do processo quer seja de
uma linha de montagem de automóveis, ou da História
do Homem.
Esta História, como um rio, como um trem, que
parece repetir-se ("ontem como hoje"; o NON,
palavra que sob qual ângulo se olhe, é
sempre a mesma), é sempre nova, sempre diferente.
Mas sempre traz, indelével, a marca do seu passado
(lembremos da Pompéia de Um Filme Falado,
com o flip book que mostra como era, e como é
um eco, aliás, das cenas de Porto da Minha
Infância com os "hoje, está assim"
que Oliveira narra). Porque, como afirma Oliveira a
Cakoff, "a História não é
reversível" no que, aliás, o uso
constante dos mesmos atores adquire um sentido ainda
maior. O ontem de Oliveira nunca é apenas nostálgico,
e sim uma necessidade de compreensão do hoje
a partir dele (lembremos a Viagem ao Princípio
do Mundo).
Talvez seja por isso que, se podemos afirmar que a dualidade
arcaico/moderno é um tema especialmente constante
na vida portuguesa, a obra de Manoel de Oliveira é
sua mais perfeita tradução. Nunca um cineasta
confundiu tanto os críticos sobre os limites
do clássico e do moderno (pensemos em A Carta,
filme que é a encarnação mesma
deste jogo), e é especialmente curioso notar
como sua obra começa com uma relação
direta ao que havia de mais "moderno" em termos
de linguagem de cinema (Douro, Aniki Bobó,
Acto de Primavera), apenas para ir se "anacronizando"
cada vez mais (nos créditos do mesmo Acto
já víamos a preocupação
do diretor com a questão do anacronismo), tornando-se
"clássica" e neste movimento, sempre
dicotomicamente, modernizando-se. Da mesma forma que
seu cinema passeia na contramão da História
do Cinema, ao mesmo tempo parece recontextualizar a
si mesmo: João Bénard da Costa afirma
que o cinema de Oliveira é, na maior parte das
vezes (e como foi o nosso caso, por exemplo), conhecido
ao contrário, dos mais recentes para os mais
antigos filmes recebendo assim novos significados
na mão inversa, os filmes anteriores iluminando
os mais novos. Sua história, nossa História:
o fluxo de um rio que não vai secar.
HUMOR
No final de Porto da Minha Infância,
mergulho de Manoel na sua história pessoal, ele
termina com um quase convite: "Queres brincar comigo?"
Pois um dos aspectos mais subestimados do seu cinema,
em especial pelos seus críticos ranzinzas, é
o humor constante que marca sua visão de mundo.
Neste sentido, até, a Cosac&Naify não
podia ter escolhido imagem mais significativa do que
a do "moleque Manoel" que brinca no Mar Morto,
para a capa do seu livro sobre o cineasta. Oliveira
se orgulha muito, diga-se, de sua irreverência.
O humor de Oliveira pode ser o da palavra exata ("colecionava
cactos para não matar alguém" Espelho
Mágico), mas também pode ser o humor
"mudo" de um Tati (a seqüência
do café em Vou para Casa), ou adquirir
mesmo contornos chaplinianos (afinal, porque se chamaria
Carlitos o personagem de Aniki Bobó?).
Difícil mesmo é vermos um filme seu, por
mais complexo e cheio de reflexões, que não
esteja povoado de piadas inesperadas e ironias finas.
Pensemos, por exemplo, na passagem do convento em Amor
de Perdição, que talvez se constitua
na mais surpreendente interdição cômica
de uma narrativa na História do Cinema com
um olhar subversivo que, aliás, vai muito mais
fundo na ironia com o espaço das freiras do que
todo o Maus Hábitos de Almodóvar.
Mas podemos pensar também em pequenas passagens
de Vale Abraão (onde a Ceia de Natal é
especialmente inspirada) ou na conclusão de O
Convento, com sua piada deliciosa com os contos
de pescador. Finalmente, temos os filmes mais escancaradamente
"engraçados" de sua filmografia, que
podemos buscar já nas origens com a narração
inspirada de Famalicão, até principalmente
o humor negro de O Passado e o Presente e o humor
"popular" de A Caixa. Que toda a irreverência
de Oliveira seja quase sempre deixada de lado não
deixa de ser, também, uma enorme ironia.
LÍNGUA
O que nunca se deixa de lado ao falar de Oliveira,
para o bem ou para o mal, é a importância
da palavra no seu cinema. Sobre esta ser excessiva,
além do que já dissemos no verbete Arte,
basta uma frase do cineasta: "a palavra é
um elemento precioso do cinema porque é um elemento
privilegiado do homem". No entanto, para além
da simples poética da palavra no cinema dele,
me fascina sua relação com as línguas.
No começo do livro da Cosac&Naify há
uma longa conversa (que parece se dar com um surdo,
aliás) entre Oliveira e o polonês Jerzy
Stuhr, onde o cineasta português fala da importância
de manter-se os filmes nas suas línguas de origem,
quando da exibição em outros países.
É fascinante ler esta discussão tendo
em mente a dimensão cada vez mais poliglota que
os filmes dele tomam: seja a auto-tematizada "Babel
na mesa" de Um Filme Falado, seja a interpretação
em inglês do ator em Vou para Casa, a questão
da identidade pela língua é sempre central
em Manoel de Oliveira basta lembrar do comovente encontro
entre tia e sobrinho distante em Viagem ao Princípio
do Mundo (mas ele não fala a nossa fala?).
É curioso notar, inclusive, como em alguns de
seus filmes mais recentes (Inquietude, Espelho
Mágico), nem se precisa tematizar o fato
dos personagens estarem falando línguas diferentes
uns com os outros: basta que sejam as línguas
que seus atores/personagens devem falar, para que se
dê o entendimento, a compreensão.
Neste sentido, talvez nossa maior benção
seja que não há outro lugar onde se possa
"entender" o cinema de Oliveira como no Brasil.
Digo isso porque para além de podermos compreender
em grande parte o português (ainda que menos nos
filmes mais "populares" e cheios de gírias
como Aniki Bobó e A Caixa), o fato
é que a simples pronúncia portuguesa da
nossa língua, para além das peculiaridades
de sua construção sintática, é
recebida pelos nossos ouvidos com uma estranheza que
a torna ainda mais poética, ainda mais significativa
não por querermos assim qualificá-la,
mas simplesmente por não ser ela a expressão
corrente do dia a dia do nosso português. Se a
palavra é sagrada no cinema de Oliveira, então,
em nenhum outro país do mundo ela soa tanto desta
forma como no Brasil.
MORTE
Seja no poético conto infantil de Aniki-Bobó,
seja no complexo ensaio existencial-religioso de um
Espelho Mágico ("não se nasce
com outra certeza que a morte"), o confronto com
a Morte, e a pulsão mesmo por esta, assombra
o cinema de Oliveira desde sempre. Sem precisarmos sequer
lembrar do sentido religioso da entrega à Morte
(e Ressurreição) do Acto de Primavera,
o que podemos ver nos seus filmes é uma constante
consciência da finitude como questão premente
da existência humana "vivemos cercados
pela Morte", diz Vanessa em O Princípio
da Incerteza. Não por acaso, sua obra é
perpassada por suicídios: seja em filmes mais
"leves" como A Caixa, seja no simbolismo
do ato do diretor do hospício em A Divina
Comédia, seja na morte preparada de Ema em
Vale Abraão.
Claro que em nenhuma fase a Morte (e o suicídio)
foi mais tematizada do que no seu abraço ao ideal
romântico, em Amor de Perdição,
em Francisca e em O Dia do Desespero.
Camilo Castelo Branco, claro, surge como o grande símbolo
deste sentimento de despertencimento ao mundo (pode
caber tanto rancor na alma dos deuses? pergunta
ele em O Dia do Desespero), de ligação
precoce com a Morte e a Arte (pensar-se na morte
aos 25 anos, ou é poesia ou é crime
Francisca), e do desejo inevitável (é
ventura morrer quando se vem ao mundo com esta estrela
- Amor de Perdição). Seja no beijo
de Mariana no Simão morto e seu mergulho final
junto ao corpo dele que afunda, seja na cena de José
Augusto com o coração de Francisca nas
mãos, a Morte é reforçada como
a única instância capaz de dar corpo ao
desejo e ao Amor, que não possuem saciedade possível
nos corpos humanos, tal sua grandeza.
No entanto, é inegável que a partir dos
anos 90, a Morte toma a obra de Oliveira de uma outra
maneira. Com a inegável consciência de
um homem que se aproxima (e depois ultrapassa) os 90
anos de idade, Oliveira passa a lidar de frente com
a questão da sua própria mortalidade.
Primeiro, de maneira muito direta, na retomada da sua
própria história tornada ficção,
em Viagem ao Princípio do Mundo, filme
que anuncia sua extrema pessoalidade tanto no nome do
personagem (o cineasta Manoel), como na retomada dos
dados biográficos do diretor (com imagens depois
revistas no assumidamente memorialista O Porto da
Minha Infância), como principalmente na sutil
e essencial presença de Oliveira em cena como
o motorista do carro onde se passa boa parte do filme.
Ironicamente, neste seu primeiro "filme-testamento"
(ao qual se seguem Inquietude, Vou para Casa,
e até mesmo Um Filme Falado, com sua dinâmica
da passagem do saber), quem acaba fazendo seu último
filme é Marcello Mastrioanni, mais jovem que
o diretor em alguns anos. Oliveira, no entanto, cisma
em sobreviver seus próprios testamentos cinematográficos
o que não é surpresa nenhuma na carreira
de um cineasta que teve uma retrospectiva sua contestada
na França em 1979 por conta de sua idade avançada,
que indicava que o principal de sua obra já havia
sido feita. Ou, ainda mais, de um diretor que faz aos
73 anos, em 1982, um autêntico filme-testamento
que só pode ser visto após sua morte (Visita
ou Memórias e Confissões): difícil
imaginar que alguém (ele incluído) pensasse
que demoraríamos mais 23 anos (e 20 longas
ou cerca de 80% de sua obra), por enquanto, para ainda
não o termos visto.
MULHER
Tudo começa com a Teresinha de Aniki Bobó...
Dali para a frente, não há mais jeito
de escapar: desde a mais tenra pureza infantil (das
crianças personagens e do cinema ainda recém-nascido
em Oliveira), a mulher é a perdição
dos homens no cinema de Oliveira. Ao longo das sete
décadas seguintes, veremos sempre a mesma coisa:
homens um tanto quanto perdidos, incapazes de darem
conta da grandiosidade da figura feminina, que parece
pairar por sobre todos eles. Dos homens é o mundo
pequeno, dos pequenos negócios terrenos, das
mulheres (mesmo quando mulheres de negócio, diga-se)
é o reino dos céus e o do Inferno também,
claro. Presos estamos nós, homens, num eterno
purgatório que é todo delas.
Poderíamos dizer que tudo começa de fato
(depois de Teresinha, claro) com a tetralogia dos amores
frustrados: encarnado num espírito cada vez mais
romântico (no sentido que o século XIX
deu ao termo, claro), o que se vê ali são
as mulheres como forças da natureza (fortificadas
seja através do amor resignado de Mariana em
Amor de Perdição, ou do sacrifício
de Francisca), em torno das quais circulam os homens,
tão incapazes de consumar o amor que sentem,
quanto de compreender de fato aqueles seres quase "inumanos"
(ou seriam santos Benilde). Ao fim e ao cabo,
mesmo que com presença bastante mais trágica,
os homens parecem um tanto ridículos, como são
ridículas as investidas de Mauricio sobre Noêmia,
em O Passado e o Presente.
No entanto, a figura da mulher finalmente encontra sua
carnalidade na obra de Oliveira não por acaso,
pela nudez de uma Eva em A Divina Comédia:
é quando entra em cena, de fato, Leonor Silveira
(antes havia tido pequenos papéis em Os Canibais
e Non neste aliás, ainda intocável,
a Vênus). Leonor Silveira traz para as mulheres
dos filmes de Oliveira uma mistura sem paralelos entre
aquilo que é tão insondável quanto
presença física perturbadora. Seja no
auge de sua beleza, fazendo o universo orbitar em torno
dela em Vale Abraão, seja na pujança
da sua maturidade (de maiô) em Espelho Mágico,
desejando para si a santidade, Leonor Silveira dá
a cada um de seus personagens a dualidade original da
mulher (sua pureza é cruel, diz-se da
Piedade de O Convento). Com ela, Manoel de Oliveira
faz o plano mais sexual de sua obra (o do dedo que toca
o interior de uma rosa), no filme (Vale Abraão)
que é, ele mesmo, todo centrado no poder do sexo
sem mostrar uma só cena de "conjunção
carnal".
Em 1998, Oliveira descobre sua segunda Leonor (que tenham
o mesmo nome só aumenta o sentido espelho duplo
entre vida e cinema), a Baldaque. Seu papel inicial,
a da mulher que se torna literalmente uma força
da natureza, em Inquietude, serve de introdução
tão veemente quanto a Eva/Vênus de Silveira.
Até que em 2002, finalmente temos em O Princípio
da Incerteza o encontro das duas na tela, com proporções
não menos do que épicas. Vanessa (Silveira)
e Camila (Baldaque) são todas as mulheres do
mundo em apenas duas tão poderosas presenças
que fazem o Touro Azul perder todo o interesse pelo
romance, depois delas (como descobrimos em Espelho
Mágico). É da cena de diálogo
duas duas em O Princípio da Incerteza,
onde só elas dividem o quadro, que fica a imagem
maior do fascínio que nutre por todas as mulheres
este português.
Mais sobre o tema não se precisa dizer, por dois
motivos: primeiro, o ensaio absolutamente fascinante
que a ele dedicou João Bénard da Costa
(chamado Pedra de toque: o dito "eterno feminino"
na obra de Oliveira), republicado no livro brasileiro
da Cosac&Naify; e porque, neste mesmo livro, na
filmografia, encontramos o seguinte texto do próprio
Oliveira: "A intenção neste filme
Party é mostrar aquilo que de bom
têm as mulheres, mas também como é
perverso e cheio de maldade o efeito dos homens. Mas,
ao mesmo tempo, e não tão paradoxalmente
como possa parecer, mostra também exatamente
o contrário, ou seja, a existência de mulheres
malvadas e de santos homens. Sem pôr em dúvida
outras questões, é certo que não
podem ficar dúvidas perante a evidência
dos fatos, a qual demonstra a existência de um
conflito latente entre o masculino e o feminino. (...)
Ao resto, se por acaso existe um resto, poderemos dar
o nome de amor." (página 224)
RELAÇÕES DE CLASSE
Um tema tão onipresente como subreptíceo
ao longo da obra de Oliveira, assim como dissemos que
era o seu registro de humor, é sem dúvida
a questão das relações entre classes
sociais, em Portugal principalmente. Não se pode
dizer propriamente que algum dos seus filmes seja "sobre"
este assunto, mas não se pode negar que em quase
todos eles existe uma fina (e, mais uma vez, dual e
complexa) teia de relações de classe sendo
exibida. Para pensarmos em como este tema está
presente, basta ligarmos as duas pontas da obra (em
termos de longa-metragem), e vermos primeiro o Aniki
Bobó, de 1942, onde um dos garotos diz em
certo momento: "e se nós fôssemos
muito ricos?"; e por outro lado pegássemos
o último filme, 63 anos depois (Espelho Mágico),
o qual simplesmente baseia-se em livro de Agustina Bessa-Luis
cujo título é A alma dos ricos
e onde é central para as relações
pessoais o lugar social que cada personagem ocupa.
Sobre isso, é curioso perceber a própria
posição de Manoel de Oliveira: filho de
um "dono de indústria" (capitão
de indústria seria exagero), ele passou boa parte
do seu tempo em que não filmava administrando
os negócios da família. Ele narra um episódio
especialmente revelador sobre o assunto quando da Revolução
dos Cravos, em 1974, quando a fábrica foi ocupada
e depois dilapidada por trabalhadores (num processo
que leva à venda da casa da família de
Oliveira para pagar dívidas). Oliveira se refere
a este e outros episódios com grande ironia,
ao dizer que era complicado para seus empregados entender
que seu patrão era mais socialista (embora nunca
tenha tomado bandeiras político-partidárias)
do que eles mesmos.
Parece inevitável, portanto, que a premência
deste tipo de questão (principalmente no viés
das relações patrão-empregado)
ocupasse tanto espaço ao longo dos seus filmes.
Se vemos isso de maneira enviesada em trabalhos como
Francisca e O Passado e o Presente, por
exemplo, não se pode negar a centralidade narrativa
que adquire num filme como Vale Abraão
onde em especial as relações de Ema
com as criadas de sua casa, e depois com os jardineiros
Fortunato e Caíres, possuem cenas de finos comentários
sobre os papéis sociais de cada um (a mais contundente
delas, sem dúvida, é aquela em que Ema
varre a escada da porta de casa, vestida de empregada);
ou em Amor de Perdição, onde as relações
de Simão com Mariana e João da Cruz são
totalmente determinadas por seus papéis sociais
(camponeses e filho de família rica). Mas, sem
dúvida, é no díptico O Princípio
da Incerteza/Espelho Mágico que esta
problemática é jogada mais para a frente
das narrativas sem, contudo, nunca se tornar o único
tema de interesse destas.
RELIGIÃO
Continuando numa relação entre os
temas mais ou menos óbvios que se enxerga nos
filmes de Oliveira, lógico que precisamos passar
pela questão religiosa. Num país fortemente
católico, e tendo passado por uma educação
eminentemente religiosa (que está descrita tintim
por tintim na cena em que o personagem de Marcello Mastroianni
"Manoel" relembra sua passagem pelo colégio),
não se poderia pensar que a onipresença
da Igreja, em várias encarnações
e papéis, não fosse também uma
constante que atravessa todo o trabalho do cineasta.
Desculpando-se a repetição metodológica,
mas aqui é preciso mais uma vez usar o modelo
1942-2005: de novo, desde o Aniki Bobó
inicial (com sua "Loja de Tentações"
e com o dilema eminentemente católico do pequeno
Carlitos, consumido boa parte do filme por uma enorme
culpa) até o último Espelho Mágico,
com sua discussão sobre a origem social da Virgem
Maria, e com a onipresença em cena de padres
(Lima Duarte interpreta um deles, voltando a trabalhar
com o diretor com o qual interpretara o Padre Antônio
Vieira em Palavra e Utopia), freiras (Marisa
Paredes) e teólogos (Michel Picolli).
Para além da sua educação infantil,
Oliveira se declara sempre um leitor freqüente
da Bíblia, e um dos seus mais próximos
amigos e colaborador assíduo é um padre
(João Marques), cujo nome é lembrado constantemente
por Oliveira em suas entrevistas mais longas, assim
como em depoimentos como o de Julia Buisel na revista
Camões. É curioso notar, porém,
como o tom de Oliveira sobre os temas religiosos muda
ao longo dos filmes, e mesmo em suas entrevistas. No
curto espaço de oito anos que separa Conversas
com Manoel de Oliveira da entrevista a Leon Cakoff,
percebe-se um sensível aumento, senão
da fé (que já no primeiro livro merecia
passagens como "a fé é algo que nasce
conosco, creio mesmo que não se pode viver sem
fé"), certamente da centralidade na visão
de mundo de Oliveira do papel de um muito citado "Criador".
Se em 1996, ele declarava ter "um espírito
religioso perseguido pela dúvida", é
inegável que em 2004 ele soa bastante mais certo
de si, pelo menos em relação a isso.
Nos filmes, podemos ver igual tendência, onde
uma cena tão mordaz quanto a já citada
passagem pelo convento de Amor de Perdição,
é seguida pelas discussões entre o filósofo
e o profeta de A Divina Comédia, chega
ao simbólico embate entre Piedade e Baltar em
O Convento, até desembocar já bem
mais tranqüilo e contemplativo nas conversas de
Espelho Mágico ou no encontro com o sacerdote
ortodoxo de Um Filme Falado. Entre cada um destes,
raro é encontrar um filme onde não haja
um personagem religioso, ou cena passada em Igrejas.
Aliás, se percebemos um respeito constante em
Oliveira, é pela ritualística católica,
presente, é claro, desde o Acto de Primavera
(o qual o diretor sempre considerou ter sido possível
filmar, ao contrário de vários outros
projetos seus do período, apenas por sua temática
religiosa). Mas, talvez o mais importante (e que fica
muito claro no segundo filme de Oliveira a ser eminentemente
sobre uma figura "religiosa" Palavra
e Utopia), seja a dimensão política
que a religião sempre possui em seu trabalho.
Ele mesmo é quem afirma: "creio que as obsessões
políticas se transformam em religião,
da mesma maneira que uma religião obsessiva se
torna uma ideologia". Daí, certamente, as
dúvidas que sempre o assolaram, tanto para com
a Igreja Católica quanto os partidos políticos.
RIGOR
Sobre este que talvez seja o substantivo mais vezes
mencionado junto ao nome de Oliveira, podemos dizer
algo parecido ao que dizíamos sobre a presença
da palavra no seu trabalho: muitas vezes parece que
nem seus críticos ferrenhos nem alguns de seus
admiradores entendem de fato o que o termo esconde e
revela da obra do cineasta. Não que aja quaisquer
dúvidas: o conceito de rigor cinematográfico
pode ser atrelado a poucos cineastas como a Oliveira.
No entanto, o que percebemos é que muitas vezes
isso é feito preguiçosamente, confundindo
rigor de visão de mundo com um certo rigor
mortis, que é tudo que não existe
na obra sempre em movimento de Oliveira.
Movimento, aliás, é palavra importante
aqui. Porque na maioria das vezes, usa-se o termo "rigor"
com este sentido direto, como se cinema fosse equação
matemática: "Oliveira move pouco a câmera,
logo é um cineasta rigoroso". A sentença
é falsa nos seus dois componentes: muitos cineastas
não movem suas câmeras sem rigor algum,
e Oliveira move sim a sua. Claro, cada vez mais seu
cinema se libertou dos excessos de linguagem que advêm
da intervenção da câmera naquilo
que filma (pensamos nos movimentos incessantes de O
Passado e o Presente, ou nos zooms desenfreados
de Amor de Perdição), mas Oliveira
nunca se tornou um fundamentalista em nenhuma parte
da sua arte. Se abundam hoje os planos de conjunto que
dão a devida duração de suas ações,
ainda hoje há muito espaço para o corte,
o close, o plano e contraplano, e até mesmo o
movimento. Ou há plano mais rigoroso do que aquele
que condensa cada viagem do navio de Um Filme Falado,
cheio de movimento sem mover a câmera, com a imagem
do bico do barco que rasga o oceano?
Na verdade, o tempo talvez seja mais importante para
se compreender o rigor oliveiriano do que o movimento.
Não, de novo, o fetiche pelo fetiche, o plano
longo como "estética total". Pois,
se há muitos planos curtos ainda hoje em Oliveira,
principalmente o seu rigor de tempo pode ser visto nas
elipses narrativas, muito mais que na duração
de seus planos. Seja no uso das legendas em A Carta
e Francisca, seja na condensação
da história de uma mulher em Vale Abraão
ou na da humanidade em Um Filme Falado, Oliveira
é um mestre do tempo cinematográfico.
E, se convencionou-se notar que seus filmes se tornavam
constantemente "menos movimentados", falou-se
menos em como ele também deixa de lado as enormes
durações após o Vale Abraão.
O rigor de Manoel de Oliveira, porém, não
é o de regras dogmáticas e sim o único
ao qual vale a pena se dar atenção: cada
plano dura tanto quanto precisa durar, cada movimento
acontece (ou não) porque precisa acontecer, cada
imagem existe em seus filmes porque é necessária.
O resto é bobagem.
TRUPE
Mencionamos logo no começo a intrínseca
relação de Oliveira com o teatro. Para
além das elocubrações teóricas
em torno das linguagens de cada uma das expressões
artísticas, talvez a maneira mais viva com que
podemos enxergar um viés teatral na obra do cineasta
é pela sua formação de uma autêntica
trupe que o acompanha filme após filme. Esta
trupe, se não é exclusivista, certamente
indica a afinidade do realizador com aqueles que têm
à sua volta enquanto produz, principalmente nos
últimos (e mais prolixos) anos de sua carreira.
Embora geralmente só pensemos nos atores, a "companhia
Oliveira" é bem mais ampla: começa
com a continuísta Julia Buisel, sua colaboradora
direta e fiel mais antiga (trabalha com ele desde Francisca)
e que aparece também como atriz em pequenos
papéis em alguns de seus filmes. No mesmo filme
de 1981 começa uma das principais parcerias da
carreira do cineasta (e do cinema mundial), com o produtor
Paulo Branco. Recentemente rompida em Espelho Mágico
(por motivos desconhecidos, pelo menos publicamente),
pode-se dizer que esta parceria foi um trabalho conjunto
que permitiu ao mesmo tempo que nascesse um dos maiores
produtores do cinema mundial, e que tomasse força
e regularidade a obra de Oliveira pós-1980. Nos
aspectos técnicos mais criativos, como a montagem
e a fotografia, Oliveira também vai lentamente
encontrando seus parceiros, cada vez mais na medida
em que também se torna mais constante sua produção.
Na fotografia, primeiro estabelece-se a alternância
entre Elso Roque (Benilde, Francisca,
Non, entre outros) e Mario Barroso (O Meu
Caso, Os Canibais, Vale Abraão,
O Convento, entre outros) sendo que este também
surge como ator, interpretando Camilo Castelo Branco
em Francisca e O Dia do Desespero. A partir
de Party e até Espelho Mágico,
Oliveira trabalha seis vezes com o francês Renato
Berta (os também franceses Emmanuel Machuel e
Sabine Lancelin assinam outros três e dois filmes
do período, respectivamente). Na montagem (geralmente
uma parte do trabalho mais flexível à
agenda dos profissionais com outros trabalhos), a parceria
de Oliveira com Valerie Loiseleux é ainda mais
constante, desde A Divina Comédia sendo
que na maioria dos trabalhos, com ela ou antes, ele
coassina a montagem. Outros colaboradores constantes
que precisam ser mencionados são o músico
João Paes (entre O Passado e o Presente
e Os Canibais), os técnicos de som Jean-Paul
Mugel, Joaquim Pinto, Gita Cerveira, Henri Maikoff e
Philippe Morel (nenhum com menos de três filmes
feitos juntos com o diretor) e o assistente de direção
José Maria Vaz da Silva, que desde A Divina Comédia
só não fez três dos dezesseis longas
de Oliveira.
Mas, claro, é nos seus elencos que mais facilmente
percebemos (por motivos óbvios) a existência
da trupe de Oliveira. A começar pelas já
citadas Leonores (Silveira e Baldaque), que simplesmente
são quase que totais exclusividades de Oliveira
(Baldaque nunca filmou com outro cineasta, Silveira
fez 14 filmes com ele e apenas cinco com outros). Com
a quase onipresença do protagonismo das duas,
sobra pouco espaço para outras figuras femininas,
mas pelo menos duas grandes atrizes portuguesas são
recorrentes na obra do diretor, ainda que em papéis
menores: Isabel Ruth e Glória de Matos. Recentemente,
com o cosmopolitismo que ganha sua obra nos anos 90,
Irene Papas e Catherine Deneuve repetem-se no seu elenco,
trazendo com elas (e sendo nisso usadas por Oliveira
com maestria) a força de suas personas cinematográficas.
Na parte masculina, Oliveira também tem sua dupla
de ouro: acima de todos, com Luis Miguel Cintra (quinze
filmes desde O Sapato de Cetim, na maioria como
protagonista), mas também com Diogo Dória
(a parceria mais longeva, que começa em Francisca
e vai até o Espelho Mágico recente).
Mas, da mesma forma que com as mulheres, Oliveira tem
seus coadjuvantes constantes (entre eles, Miguel Guilherme,
Duarte de Almeida, Ruy de Carvalho, David Cardoso) e
suas adições cosmopolitas mais recentes
(Michel Picoli, Lima Duarte, John Malkovich). Mais do
que uma utilização constante de nomes,
vale entender que todos estes parceiros de Oliveira
estabelecem autêntica simbiose com o seu autor.
Se sabemos, por exemplo, que Duarte de Almeida é
também João Bénard da Costa, autor
de alguns dos maiores textos e entrevistas com o diretor,
se lemos o texto que Luis Miguel Cintra escreveu sobre
O Dia do Desespero (um dos poucos filmes onde
não é ator), ou ainda testemunhos como
os de Julia Buisel, João Paes ou Glória
de Matos na Revista Camões, percebemos que todos
estes não se repetem na companhia de Oliveira
à toa.
Há, porém, uma peculiaridade na parte
masculina do seu elenco: a presença do neto de
Oliveira, Ricardo Trepa, protagonista de vários
dos seus filmes recentes e que assumiu o papel do próprio
Oliveira em Porto da Minha Infância (e
que também só trabalhou com Oliveira até
hoje, como Baldaque). Mais do que uma curiosa questão
de herança, me parece interessante ver como este
detalhe dialoga com o próprio cinema de Oliveira.
Pensemos, neste sentido, no protagonismo de Chiara Mastroianni
em A Carta, pouco depois de Oliveira ter trabalhado
com sua mãe (Catherine Deneuve) e pai (Marcello
Mastroianni). Ora, se já discutimos no verbete
Fluxo, a importância da idéia de continuidade
da História, de conexão, repetição,
recontextualização, de passado e presente
sempre conectados, faz todo sentido esta passagem de
gerações dentro de um mesmo trabalho.
Neste sentido, veremos inclusive que este uso repetido
das mesmas figuras cria, ao longo da obra, uma conexão
ainda maior entre os filmes. Ver Leonor Silveira e Luis
Miguel Cintra envelhecer ao longo de vinte anos de filmes
de Manoel de Oliveira, ver como o tempo passa em seus
rostos e corpos, e como eles assumem personas novas,
em conexão com as antigas (enquanto surgem Leonor
Baldaque e Ricardo Trepa para "recomeçar"
a história), dá o sentido de História
interna da própria obra do cineasta num caso
que talvez só tenha paralelo recente no cinema
mundial, em longevidade, constância e quase exclusividade
no cinema de Robert Guédiguian. Pensando assim,
revendo os filmes, percebemos ainda mais a coerência
da trupe teatral que toma corpo no cinema de Oliveira.
VIDA
Se existe uma constante no trabalho de Manoel de
Oliveira, é o de não simplificar nunca
a experiência humana, tentando sempre olhá-la
por todos os ângulos quanto seria possível.
Só assim podemos entender como uma obra tão
marcada pela Morte, como já destacamos que ela
é, seja tão completamente transbordante
de vida. Por isso, se há uma palavra que precisa
fechar um glossário sobre Manoel de Oliveira
é esta aqui.
Se a própria realização do cinema
é uma das formas que o ser humano arranjou de
suplantar sua morte física pela eternização
em imagens e sons, pela captura do tempo (tema central,
por exemplo, de Inquietude), a obra de Manoel
de Oliveira é a que mais tem representado esta
busca. Ele mesmo defendeu a sua utilização
do plano fixo como sendo aquele que mais se aproxima
de capturar a eternidade. Cada filme de Oliveira parece
querer (e quase sempre conseguir) conter o mundo em
si mesmo os que se passem todos em uma esquina (A
Caixa) ou em uma casa (A Divina Comédia).
Vale Abraão, seu filme que talvez mais
se aproxime do desejo de eternidade de uma obra de arte,
termina justamente com uma frase da personagem Maria
do Loreto, referindo-se a escrever um livro, mas que
Manoel claramente transplanta para o seu conceito de
cinema: "Não tem a menor importância,
mas é aquilo que melhor imita uma vida".
Pois cada filme de Oliveira é isso: a imitação,
a transmutação de uma vida em arte. Ou,
como disse Maria João Pires na Revista Camões:
"os filmes de Manoel de Oliveira respiram".
Dentro desta vitalidade, não se pode ignorar
que seu cinema "moleque" é feito, em
mais de 80% de seu trabalho em longas, após os
70 anos de idade, sendo marcado antes disso por longas
interrupções. Esta longevidade de vida,
que se torna longevidade de arte, tem reflexos inegáveis
sobre o trabalho do cineasta. Entre estes, já
tratamos de alguns no verbete Morte, mas cabe perceber
a sabedoria e a tranqüilidade que estas condições
deram ao olhar de Oliveira para o cinema e a vida. Ele
mesmo fala, em Conversas com Manoel de Oliveira,
da diferença que sente entre cineastas que muito
filmam, sem terem tempo para refletir, e ele, que teve
todo o tempo para a reflexão antes de, por assim
dizer, "começar" a filmar. No entanto,
esta reflexão e este cinema feito nas décadas
finais de uma vida ("viver muito é um dom
de Deus, mas se paga um preço", diz ele),
não transpira um pingo de ressentimento pelo
tempo sem filmar (todo ele, vivido), e nem a nostalgia
de um "tempo melhor" (basta se ver Porto
da Minha Infância, filme que retoma a sua
juventude mas que é muito mais um filme sobre
o futuro do que sobre o passado, e no qual ele diz textualmente
que o mundo mudou, mas ele continua amando o Porto de
hoje como amou o de ontem). A compreensão da
História de uma vida, dentro da História
do mundo, certamente é outra aos 97 anos de idade.
Por isso, a imagem que fica de Oliveira depois de mergulhar-se
nos seus filmes, pode ser quebrada em duas: a do diretor
que se transveste de ator de seu próprio filme
apenas para dançar um tango que é a própria
elegia de beleza da arte, da vida (Inquietude);
e finalmente a última imagem que vimos da parte
dele a de um rosto de menino que ri abertamente para
a câmera, depois de um filme que reflete tanto
sobre a Morte (Espelho Mágico). Manoel
de Oliveira certamente sabe como acabar as coisas, por
isso, termino o glossário com a última
frase que diz em Conversas com Manoel de Oliveira,
onde busca definir-se: "Um homem que ama profundamente
o cinema, porque ama profundamente a vida".
(...)
De resto, é como dizia o personagem em Francisca
(depois transposto em O Princípio da Incerteza):
escuta, sem necessidade de compreender, pois
(a frase aí é do próprio Oliveira)
o que se explica, não se compreende.
Eduardo Valente
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