UM GLOSSÁRIO PESSOAL
DE MANOEL DE OLIVEIRA

Por que um glossário? Porque totalizar a experiência de se assistir às obras quase completas de um cineasta como Oliveira me pareceu sempre um exercício completamente inútil. Dar conta de cada um dos seus aspectos particulares, de cada uma de suas investidas dramatúrgicas, temáticas, simbólicas, estéticas, sempre tão coerentes e ao mesmo tempo tão impossíveis de categorizar, de conseguir estruturar numa só estrutura crítica-analítica, com começo, meio e fim, como nossos professores de redação no colégio nos ensinavam que deviam ter os textos (introdução, desenvolvimento, conclusão).

Ao mesmo tempo, se totalizar é impossível, por que haveria o impulso de sequer tentar fazê-lo? A resposta para esta pergunta nasce menos de uma reflexão consciente e mais de um assombro. Assombro no sentido sobrenatural mesmo, porque se uma das maiores insistências de Oliveira nas suas entrevistas é sobre a essência fantasmática da imagem cinematográfica (opondo o cinema ao teatro, por exemplo), ver tantos de seus filmes em tão poucos dias fazia com que suas imagens (e sons) ficassem rondando minha cabeça, tal e qual assombrações que não me deixavam descansar. Eu precisava responder a elas. Por outro lado, por mais que inúmeros de seus filmes me fascinem especialmente, me parece pouco também tentar dar conta desta obra (ou ao menos desta experiência intensiva de mergulho nela) "aos pedaços", tratando cada filme como parte isolada de um todo. Por isso mesmo, se eu não posso alcançar este todo, pelo menos posso tateá-lo – senão por mais nada, pela simples necessidade de me libertar destes fantasmas. E é disto que é composto este glossário (por isso mesmo pessoal): de assombros. Não é uma tentativa de dar conta da obra de Oliveira por completo, mas de exorcizar cada aspecto dela que cismava (e cisma) de não me deixar o pensamento...

Antes de partirmos para ele, porém, um último esclarecimento me parece essencial: além da mostra ter tido pelo menos uma ausência importante sentida (O Meu Caso, que João Bénard da Costa, no seu belíssimo artigo existente na recente publicação brasileira sobre o cineasta, classifica como uma obra central no entendimento da filmografia do diretor, um marco mesmo de uma virada "na estética e na metafísica de Oliveira"), eu ainda deixei de ver pelo menos três outros longas, que me parecem igualmente importantes (por diversos motivos): Benilde, O Sapato de Cetim e Os Canibais. São apenas quatro longas não vistos, num universo de 26 (além dos curtas), mas só isso me impede de julgar poder emitir aqui um olhar completo sobre o conjunto da sua obra (ainda mais que dos quatro há três realizados em seqüência, num momento de fato essencial dos anos 80). É preciso assumir estas ausências, antes de começar, porque o leitor pode sentir falta da referência a estes filmes – assim como há pelo menos três que não vejo há algum tempo (Party, Palavra e Utopia, Vou para Casa). Feitas as escusas importantes, ao trabalho...

ARTES
Na entrevista que deu a Leon Cakoff, publicada no livro Manoel de Oliveira (ver bibliografia comentada), Manoel de Oliveira afirma que "o cinema veio depois, para poder ser a síntese de todas as artes". Se está longe de ser a primeira vez que ouvimos afirmação com tal sentido, o que mais importa nesta frase do diretor é ver como ela está intrinsecamente encarnada em seus filmes, pois cada um deles, de maneiras diferentes, parece conseguir efetuar a tal operação de síntese acima mencionada.
Se no princípio era o verbo, poderíamos supor que tudo começa com a literatura, com a palavra, numa obra que se compõe, quase na sua totalidade, de adaptações de textos previamente escritos (desde que entendamos que Oliveira realmente compreende o sentido da palavra "adaptação", que aliás podia ser outro verbete deste glossário). No entanto, o que muitos de seus críticos entendem como um cinema "palavroso", apenas coloca o papel da palavra em igualdade de condições (portanto, nem maior, mas também não menor) aos outros componentes cinematográficos. Como a música, que é igualmente essencial na maioria dos seus filmes (e sobre este assunto vale ler o artigo que João Paes, seu colaborador musical em vários dos filmes dos anos 70-80 escreveu no número especial da revista Camões – também listado na bibliografia), ou a pintura (sobre este assunto, ler o artigo de Tatiana Monassa, nesta mesma pauta de Contracampo). Ou ainda a arquitetura, presença de força vital enorme no seu cinema.
Mas, sem dúvida, é com o teatro que o diálogo se dá de forma mais completa, na própria estrutura de vários dos filmes do realizador (pensamos diretamente em Vou para Casa ou Inquietude, com suas encenações das encenações, e mais ainda em O Sapato de Cetim e O Meu Caso – mesmo sem tê-los visto, basta ler sobre suas estruturas narrativas). De fato, Oliveira afirma na mesma entrevista a Leon Cakoff: "o cinema não pode ir além do teatro, só pode ir sobre o teatro". E vemos a constância desta relação de respeito com a forma teatral em cada um dos seus filmes. A idéia mesmo de encenação, o trabalho com o ator (cada vez mais privilegiando o tempo longo nas atuações também), a frontalidade constante, a sua trupe (ver verbete correspondente): muito do cinema de Oliveira vem "sobre o teatro". O que talvez se entenda, mais do que nunca, na entrevista do livro Conversas com Manoel de Oliveira (de novo, ver bibliografia), quando ele afirma: "o teatro é a síntese de todas as artes". Na distância de oito anos entre as duas entrevistas citadas (esta última, de 1996, a outra, de 2004), as frases de Oliveira criam um espelho entre as duas expressões artísticas (lembremos O Sapato de Cetim: "cinema é teatro, teatro é cinema") que, como toda boa expressão oliveiriana, parece tão contraditório quanto complementar. Donde se conclui que o principal no cinema dele é menos o que ele tenha de cinematográfico (ou seja, tudo), e mais o que ele tem de arte – não de "cinema de arte", só de arte mesmo.

ESPELHO
Falamos em espelho entre teatro e cinema, o que permite uma boa passagem para o próximo verbete deste glossário. Aqui, queremos tratar dos objetos-síntese da imagem oliveiriana, constantemente repetidos ao longo de sua obra. Se tudo começa (como, não por acaso, com o cinema em geral) com um trem em Aniki Bobó, ou com um rio (em Douro, no próprio Aniki) – afinal, tanto Oliveira afirma que sua primeira lembrança visual do cinema eram linhas de trem, quanto diz que "a vida é um rio" – estas duas imagens constantes no seu cinema me parecem menos objetos em si significativos, e mais a alma do cinema oliveiriano. Por isso mesmo, me parece desigual sequer compará-los aos outros "objetos" (entendida a palavra aqui não no sentido material, mas de linguagem): rios e trens estão em Oliveira antes mesmo do cinema, e dizem mais respeito ao conceito seguinte deste glossário (Fluxo) do que ao que aqui queremos tratar.
Pensamos, então, em outras constantes: os livros, a fumaça (de velas, de cachimbos, de trens novamente), as casas (vários de seus filmes abrem-se sobre a imagem de uma casa – ele afirma nas Conversas que "as casas têm uma psicologia"), as cartas (que abrem Francisca – onde se afirma que "nenhuma carta se parece com a outra" - ou O Dia do Desespero, sem contar a sua importância em Amor de Perdição), os retratos (pensemos naqueles que "vigiam" e parecem condicionar os personagens de Vale Abraão, por exemplo), as estátuas. Todos objetos recorrentes e cheios de significado nos filmes de Oliveira – nunca o mesmo significado, claro.
Mas, se necessário fosse escolher um só objeto como o que mais fortemente me impregna a memória ao ver seus filmes, eu ficaria mesmo com o espelho. Espelho, claro, que dá nome ao seu filme mais recente (Espelho Mágico – aquele que "vê o passado"), mas que está presente com força desde muito. O espelho também assume muitos papéis e significados na sua obra: nele podemos ver referência constante ao tema do duplo, da identidade (algo que trespassa seus filmes, mas faz pensar em especial em O Passado e o Presente); nele podemos marcar o tempo, inclemente (de novo Espelho Mágico: o efeito do espelho, que é o tempo); mas, nele, acima de tudo para mim, vemos uma duplicação da compreensão mesmo que Oliveira tem do específico da imagem cinematográfica: sua condição fantasmática. A imagem virtual num espelho é e não é ao mesmo tempo, está e não está, captura algo mas não o encarna. Não por acaso, na maioria das vezes seus espelhos estão ligados a figuras femininas (a Ema de Vale Abraão, a Alfreda de Espelho Mágico, Francisca), igualmente fugidias e impossíveis de capturar, por mais que se tente represá-las nas bordas da imagem daqueles espelhos. Filmadas através de espelhos, são o fantasma do fantasma – belas, eternas, intocáveis. Síntese da arte oliveiriana.

FLUXO
Falamos acima, rapidamente, da sempre presente imagem dos rios e dos trens no cinema de Oliveira, e dissemos que eles parecem anteceder o próprio cinema no que se refere ao diretor. Em ambos, está sempre presente a idéia de fluxo, de eterno avançar – ainda que, também em ambos os casos, pareçam permanecer sempre iguais. Este conceito do fluxo, em suas conexões constantes entre macro e microuniversos, me parece o mais adequado para nos aproximarmos da complexa relação de Oliveira com a História, com o mundo mesmo.
É curioso ver que, no começo de sua carreira, quando ainda fazia diversos curtas documentais sempre sob encomenda, Oliveira tratou de diversos temas diferentes, repetindo quase sempre uma mesma obsessão: o processo através do qual uma coisa se transforma em outra. Lembremos da geração de energia elétrica em Hulha Branca, das linhas de produção das três indústrias típicas da região de Famalicão, da repetição desta linha em Portugal já faz Automóveis, do trajeto do trigo ao consumidor em O Pão. De um filme documental mais recente, de 1985, não exibido na Mostra (Simpósio Internacional de Escultura em Pedra – Porto), basta a sinopse: "Oliveira registra o processo de execução de esculturas em mármores, granitos e ardósias, desde a origem – a matéria arrancada da pedreira – á amostragem da obra acabada numa sala de exposições". Sem querer ser excessivamente psicanalítico, o fato é que todos estes filmes (aos quais Oliveira constantemente se refere como "menores") parecem nos revelar um Oliveira quase mais puro, sem dilapidar mesmo, onde podemos ler nesta repetição constante de um mesmo tema algo para muito além da execução de documentários menores – algo ainda um tanto iluminado pela descrição que Oliveira faz do seu pai como "um visionário do progresso".
Mas, afinal, o que é o Vale Abraão, senão o processo de transformação de uma menina numa mulher, em cada uma das suas fases, em suas relações com o mundo (neste filme, no qual o Rio Douro é quase personagem diz-se: "o rio está diferente, não é mais o Douro que sempre esteve ali"); ou por outra, o que é o Non senão uma revisão da História de um país que permite ligar (por traços nada óbvios, claro), suas origens ao seu presente? Ou, ainda mais, o que é Um Filme Falado senão a própria encenação do que subtítulo do filme seguinte de Oliveira (Ontem, como Hoje – "viajar milênios de civilização para encontrar seu pai", dizia o slogan do filme). Em todos eles, a idéia do fluxo, do processo – quer seja de uma linha de montagem de automóveis, ou da História do Homem.
Esta História, como um rio, como um trem, que parece repetir-se ("ontem como hoje"; o NON, palavra que sob qual ângulo se olhe, é sempre a mesma), é sempre nova, sempre diferente. Mas sempre traz, indelével, a marca do seu passado (lembremos da Pompéia de Um Filme Falado, com o flip book que mostra como era, e como é – um eco, aliás, das cenas de Porto da Minha Infância com os "hoje, está assim" que Oliveira narra). Porque, como afirma Oliveira a Cakoff, "a História não é reversível" – no que, aliás, o uso constante dos mesmos atores adquire um sentido ainda maior. O ontem de Oliveira nunca é apenas nostálgico, e sim uma necessidade de compreensão do hoje a partir dele (lembremos a Viagem ao Princípio do Mundo).
Talvez seja por isso que, se podemos afirmar que a dualidade arcaico/moderno é um tema especialmente constante na vida portuguesa, a obra de Manoel de Oliveira é sua mais perfeita tradução. Nunca um cineasta confundiu tanto os críticos sobre os limites do clássico e do moderno (pensemos em A Carta, filme que é a encarnação mesma deste jogo), e é especialmente curioso notar como sua obra começa com uma relação direta ao que havia de mais "moderno" em termos de linguagem de cinema (Douro, Aniki Bobó, Acto de Primavera), apenas para ir se "anacronizando" cada vez mais (nos créditos do mesmo Acto já víamos a preocupação do diretor com a questão do anacronismo), tornando-se "clássica" – e neste movimento, sempre dicotomicamente, modernizando-se. Da mesma forma que seu cinema passeia na contramão da História do Cinema, ao mesmo tempo parece recontextualizar a si mesmo: João Bénard da Costa afirma que o cinema de Oliveira é, na maior parte das vezes (e como foi o nosso caso, por exemplo), conhecido ao contrário, dos mais recentes para os mais antigos filmes – recebendo assim novos significados na mão inversa, os filmes anteriores iluminando os mais novos. Sua história, nossa História: o fluxo de um rio que não vai secar.

HUMOR
No final de Porto da Minha Infância, mergulho de Manoel na sua história pessoal, ele termina com um quase convite: "Queres brincar comigo?" Pois um dos aspectos mais subestimados do seu cinema, em especial pelos seus críticos ranzinzas, é o humor constante que marca sua visão de mundo. Neste sentido, até, a Cosac&Naify não podia ter escolhido imagem mais significativa do que a do "moleque Manoel" que brinca no Mar Morto, para a capa do seu livro sobre o cineasta. Oliveira se orgulha muito, diga-se, de sua irreverência. O humor de Oliveira pode ser o da palavra exata ("colecionava cactos para não matar alguém" – Espelho Mágico), mas também pode ser o humor "mudo" de um Tati (a seqüência do café em Vou para Casa), ou adquirir mesmo contornos chaplinianos (afinal, porque se chamaria Carlitos o personagem de Aniki Bobó?).
Difícil mesmo é vermos um filme seu, por mais complexo e cheio de reflexões, que não esteja povoado de piadas inesperadas e ironias finas. Pensemos, por exemplo, na passagem do convento em Amor de Perdição, que talvez se constitua na mais surpreendente interdição cômica de uma narrativa na História do Cinema – com um olhar subversivo que, aliás, vai muito mais fundo na ironia com o espaço das freiras do que todo o Maus Hábitos de Almodóvar. Mas podemos pensar também em pequenas passagens de Vale Abraão (onde a Ceia de Natal é especialmente inspirada) ou na conclusão de O Convento, com sua piada deliciosa com os contos de pescador. Finalmente, temos os filmes mais escancaradamente "engraçados" de sua filmografia, que podemos buscar já nas origens com a narração inspirada de Famalicão, até principalmente o humor negro de O Passado e o Presente e o humor "popular" de A Caixa. Que toda a irreverência de Oliveira seja quase sempre deixada de lado não deixa de ser, também, uma enorme ironia.

LÍNGUA
O que nunca se deixa de lado ao falar de Oliveira, para o bem ou para o mal, é a importância da palavra no seu cinema. Sobre esta ser excessiva, além do que já dissemos no verbete Arte, basta uma frase do cineasta: "a palavra é um elemento precioso do cinema porque é um elemento privilegiado do homem". No entanto, para além da simples poética da palavra no cinema dele, me fascina sua relação com as línguas. No começo do livro da Cosac&Naify há uma longa conversa (que parece se dar com um surdo, aliás) entre Oliveira e o polonês Jerzy Stuhr, onde o cineasta português fala da importância de manter-se os filmes nas suas línguas de origem, quando da exibição em outros países. É fascinante ler esta discussão tendo em mente a dimensão cada vez mais poliglota que os filmes dele tomam: seja a auto-tematizada "Babel na mesa" de Um Filme Falado, seja a interpretação em inglês do ator em Vou para Casa, a questão da identidade pela língua é sempre central em Manoel de Oliveira – basta lembrar do comovente encontro entre tia e sobrinho distante em Viagem ao Princípio do Mundo (mas ele não fala a nossa fala?). É curioso notar, inclusive, como em alguns de seus filmes mais recentes (Inquietude, Espelho Mágico), nem se precisa tematizar o fato dos personagens estarem falando línguas diferentes uns com os outros: basta que sejam as línguas que seus atores/personagens devem falar, para que se dê o entendimento, a compreensão.
Neste sentido, talvez nossa maior benção seja que não há outro lugar onde se possa "entender" o cinema de Oliveira como no Brasil. Digo isso porque para além de podermos compreender em grande parte o português (ainda que menos nos filmes mais "populares" e cheios de gírias como Aniki Bobó e A Caixa), o fato é que a simples pronúncia portuguesa da nossa língua, para além das peculiaridades de sua construção sintática, é recebida pelos nossos ouvidos com uma estranheza que a torna ainda mais poética, ainda mais significativa – não por querermos assim qualificá-la, mas simplesmente por não ser ela a expressão corrente do dia a dia do nosso português. Se a palavra é sagrada no cinema de Oliveira, então, em nenhum outro país do mundo ela soa tanto desta forma como no Brasil.

MORTE
Seja no poético conto infantil de Aniki-Bobó, seja no complexo ensaio existencial-religioso de um Espelho Mágico ("não se nasce com outra certeza que a morte"), o confronto com a Morte, e a pulsão mesmo por esta, assombra o cinema de Oliveira desde sempre. Sem precisarmos sequer lembrar do sentido religioso da entrega à Morte (e Ressurreição) do Acto de Primavera, o que podemos ver nos seus filmes é uma constante consciência da finitude como questão premente da existência humana – "vivemos cercados pela Morte", diz Vanessa em O Princípio da Incerteza. Não por acaso, sua obra é perpassada por suicídios: seja em filmes mais "leves" como A Caixa, seja no simbolismo do ato do diretor do hospício em A Divina Comédia, seja na morte preparada de Ema em Vale Abraão.
Claro que em nenhuma fase a Morte (e o suicídio) foi mais tematizada do que no seu abraço ao ideal romântico, em Amor de Perdição, em Francisca e em O Dia do Desespero. Camilo Castelo Branco, claro, surge como o grande símbolo deste sentimento de despertencimento ao mundo (pode caber tanto rancor na alma dos deuses? – pergunta ele em O Dia do Desespero), de ligação precoce com a Morte e a Arte (pensar-se na morte aos 25 anos, ou é poesia ou é crime – Francisca), e do desejo inevitável (é ventura morrer quando se vem ao mundo com esta estrela - Amor de Perdição). Seja no beijo de Mariana no Simão morto e seu mergulho final junto ao corpo dele que afunda, seja na cena de José Augusto com o coração de Francisca nas mãos, a Morte é reforçada como a única instância capaz de dar corpo ao desejo e ao Amor, que não possuem saciedade possível nos corpos humanos, tal sua grandeza.
No entanto, é inegável que a partir dos anos 90, a Morte toma a obra de Oliveira de uma outra maneira. Com a inegável consciência de um homem que se aproxima (e depois ultrapassa) os 90 anos de idade, Oliveira passa a lidar de frente com a questão da sua própria mortalidade. Primeiro, de maneira muito direta, na retomada da sua própria história tornada ficção, em Viagem ao Princípio do Mundo, filme que anuncia sua extrema pessoalidade tanto no nome do personagem (o cineasta Manoel), como na retomada dos dados biográficos do diretor (com imagens depois revistas no assumidamente memorialista O Porto da Minha Infância), como principalmente na sutil e essencial presença de Oliveira em cena como o motorista do carro onde se passa boa parte do filme. Ironicamente, neste seu primeiro "filme-testamento" (ao qual se seguem Inquietude, Vou para Casa, e até mesmo Um Filme Falado, com sua dinâmica da passagem do saber), quem acaba fazendo seu último filme é Marcello Mastrioanni, mais jovem que o diretor em alguns anos. Oliveira, no entanto, cisma em sobreviver seus próprios testamentos cinematográficos – o que não é surpresa nenhuma na carreira de um cineasta que teve uma retrospectiva sua contestada na França em 1979 por conta de sua idade avançada, que indicava que o principal de sua obra já havia sido feita. Ou, ainda mais, de um diretor que faz aos 73 anos, em 1982, um autêntico filme-testamento que só pode ser visto após sua morte (Visita ou Memórias e Confissões): difícil imaginar que alguém (ele incluído) pensasse que demoraríamos mais 23 anos (e 20 longas – ou cerca de 80% de sua obra), por enquanto, para ainda não o termos visto.

MULHER
Tudo começa com a Teresinha de Aniki Bobó... Dali para a frente, não há mais jeito de escapar: desde a mais tenra pureza infantil (das crianças personagens e do cinema ainda recém-nascido em Oliveira), a mulher é a perdição dos homens no cinema de Oliveira. Ao longo das sete décadas seguintes, veremos sempre a mesma coisa: homens um tanto quanto perdidos, incapazes de darem conta da grandiosidade da figura feminina, que parece pairar por sobre todos eles. Dos homens é o mundo pequeno, dos pequenos negócios terrenos, das mulheres (mesmo quando mulheres de negócio, diga-se) é o reino dos céus – e o do Inferno também, claro. Presos estamos nós, homens, num eterno purgatório que é todo delas.
Poderíamos dizer que tudo começa de fato (depois de Teresinha, claro) com a tetralogia dos amores frustrados: encarnado num espírito cada vez mais romântico (no sentido que o século XIX deu ao termo, claro), o que se vê ali são as mulheres como forças da natureza (fortificadas seja através do amor resignado de Mariana em Amor de Perdição, ou do sacrifício de Francisca), em torno das quais circulam os homens, tão incapazes de consumar o amor que sentem, quanto de compreender de fato aqueles seres quase "inumanos" (ou seriam santos – Benilde). Ao fim e ao cabo, mesmo que com presença bastante mais trágica, os homens parecem um tanto ridículos, como são ridículas as investidas de Mauricio sobre Noêmia, em O Passado e o Presente.
No entanto, a figura da mulher finalmente encontra sua carnalidade na obra de Oliveira – não por acaso, pela nudez de uma Eva em A Divina Comédia: é quando entra em cena, de fato, Leonor Silveira (antes havia tido pequenos papéis em Os Canibais e Non – neste aliás, ainda intocável, a Vênus). Leonor Silveira traz para as mulheres dos filmes de Oliveira uma mistura sem paralelos entre aquilo que é tão insondável quanto presença física perturbadora. Seja no auge de sua beleza, fazendo o universo orbitar em torno dela em Vale Abraão, seja na pujança da sua maturidade (de maiô) em Espelho Mágico, desejando para si a santidade, Leonor Silveira dá a cada um de seus personagens a dualidade original da mulher (sua pureza é cruel, diz-se da Piedade de O Convento). Com ela, Manoel de Oliveira faz o plano mais sexual de sua obra (o do dedo que toca o interior de uma rosa), no filme (Vale Abraão) que é, ele mesmo, todo centrado no poder do sexo – sem mostrar uma só cena de "conjunção carnal".
Em 1998, Oliveira descobre sua segunda Leonor (que tenham o mesmo nome só aumenta o sentido espelho duplo entre vida e cinema), a Baldaque. Seu papel inicial, a da mulher que se torna literalmente uma força da natureza, em Inquietude, serve de introdução tão veemente quanto a Eva/Vênus de Silveira. Até que em 2002, finalmente temos em O Princípio da Incerteza o encontro das duas na tela, com proporções não menos do que épicas. Vanessa (Silveira) e Camila (Baldaque) são todas as mulheres do mundo em apenas duas – tão poderosas presenças que fazem o Touro Azul perder todo o interesse pelo romance, depois delas (como descobrimos em Espelho Mágico). É da cena de diálogo duas duas em O Princípio da Incerteza, onde só elas dividem o quadro, que fica a imagem maior do fascínio que nutre por todas as mulheres este português.
Mais sobre o tema não se precisa dizer, por dois motivos: primeiro, o ensaio absolutamente fascinante que a ele dedicou João Bénard da Costa (chamado Pedra de toque: o dito "eterno feminino" na obra de Oliveira), republicado no livro brasileiro da Cosac&Naify; e porque, neste mesmo livro, na filmografia, encontramos o seguinte texto do próprio Oliveira: "A intenção neste filme – Party – é mostrar aquilo que de bom têm as mulheres, mas também como é perverso e cheio de maldade o ‘efeito’ dos homens. Mas, ao mesmo tempo, e não tão paradoxalmente como possa parecer, mostra também exatamente o contrário, ou seja, a existência de mulheres ‘malvadas’ e de ‘santos’ homens. Sem pôr em dúvida outras questões, é certo que não podem ficar dúvidas perante a evidência dos fatos, a qual demonstra a existência de um conflito latente entre o masculino e o feminino. (...) Ao resto, se por acaso existe um resto, poderemos dar o nome de amor." (página 224)

RELAÇÕES DE CLASSE
Um tema tão onipresente como subreptíceo ao longo da obra de Oliveira, assim como dissemos que era o seu registro de humor, é sem dúvida a questão das relações entre classes sociais, em Portugal principalmente. Não se pode dizer propriamente que algum dos seus filmes seja "sobre" este assunto, mas não se pode negar que em quase todos eles existe uma fina (e, mais uma vez, dual e complexa) teia de relações de classe sendo exibida. Para pensarmos em como este tema está presente, basta ligarmos as duas pontas da obra (em termos de longa-metragem), e vermos primeiro o Aniki Bobó, de 1942, onde um dos garotos diz em certo momento: "e se nós fôssemos muito ricos?"; e por outro lado pegássemos o último filme, 63 anos depois (Espelho Mágico), o qual simplesmente baseia-se em livro de Agustina Bessa-Luis cujo título é A alma dos ricos – e onde é central para as relações pessoais o lugar social que cada personagem ocupa.
Sobre isso, é curioso perceber a própria posição de Manoel de Oliveira: filho de um "dono de indústria" (capitão de indústria seria exagero), ele passou boa parte do seu tempo em que não filmava administrando os negócios da família. Ele narra um episódio especialmente revelador sobre o assunto quando da Revolução dos Cravos, em 1974, quando a fábrica foi ocupada e depois dilapidada por trabalhadores (num processo que leva à venda da casa da família de Oliveira para pagar dívidas). Oliveira se refere a este e outros episódios com grande ironia, ao dizer que era complicado para seus empregados entender que seu patrão era mais socialista (embora nunca tenha tomado bandeiras político-partidárias) do que eles mesmos.
Parece inevitável, portanto, que a premência deste tipo de questão (principalmente no viés das relações patrão-empregado) ocupasse tanto espaço ao longo dos seus filmes. Se vemos isso de maneira enviesada em trabalhos como Francisca e O Passado e o Presente, por exemplo, não se pode negar a centralidade narrativa que adquire num filme como Vale Abraão – onde em especial as relações de Ema com as criadas de sua casa, e depois com os jardineiros Fortunato e Caíres, possuem cenas de finos comentários sobre os papéis sociais de cada um (a mais contundente delas, sem dúvida, é aquela em que Ema varre a escada da porta de casa, vestida de empregada); ou em Amor de Perdição, onde as relações de Simão com Mariana e João da Cruz são totalmente determinadas por seus papéis sociais (camponeses e filho de família rica). Mas, sem dúvida, é no díptico O Princípio da Incerteza/Espelho Mágico que esta problemática é jogada mais para a frente das narrativas – sem, contudo, nunca se tornar o único tema de interesse destas.

RELIGIÃO
Continuando numa relação entre os temas mais ou menos óbvios que se enxerga nos filmes de Oliveira, lógico que precisamos passar pela questão religiosa. Num país fortemente católico, e tendo passado por uma educação eminentemente religiosa (que está descrita tintim por tintim na cena em que o personagem de Marcello Mastroianni – "Manoel" – relembra sua passagem pelo colégio), não se poderia pensar que a onipresença da Igreja, em várias encarnações e papéis, não fosse também uma constante que atravessa todo o trabalho do cineasta. Desculpando-se a repetição metodológica, mas aqui é preciso mais uma vez usar o modelo 1942-2005: de novo, desde o Aniki Bobó inicial (com sua "Loja de Tentações" e com o dilema eminentemente católico do pequeno Carlitos, consumido boa parte do filme por uma enorme culpa) até o último Espelho Mágico, com sua discussão sobre a origem social da Virgem Maria, e com a onipresença em cena de padres (Lima Duarte interpreta um deles, voltando a trabalhar com o diretor com o qual interpretara o Padre Antônio Vieira em Palavra e Utopia), freiras (Marisa Paredes) e teólogos (Michel Picolli).
Para além da sua educação infantil, Oliveira se declara sempre um leitor freqüente da Bíblia, e um dos seus mais próximos amigos e colaborador assíduo é um padre (João Marques), cujo nome é lembrado constantemente por Oliveira em suas entrevistas mais longas, assim como em depoimentos como o de Julia Buisel na revista Camões. É curioso notar, porém, como o tom de Oliveira sobre os temas religiosos muda ao longo dos filmes, e mesmo em suas entrevistas. No curto espaço de oito anos que separa Conversas com Manoel de Oliveira da entrevista a Leon Cakoff, percebe-se um sensível aumento, senão da fé (que já no primeiro livro merecia passagens como "a fé é algo que nasce conosco, creio mesmo que não se pode viver sem fé"), certamente da centralidade na visão de mundo de Oliveira do papel de um muito citado "Criador". Se em 1996, ele declarava ter "um espírito religioso perseguido pela dúvida", é inegável que em 2004 ele soa bastante mais certo de si, pelo menos em relação a isso.
Nos filmes, podemos ver igual tendência, onde uma cena tão mordaz quanto a já citada passagem pelo convento de Amor de Perdição, é seguida pelas discussões entre o filósofo e o profeta de A Divina Comédia, chega ao simbólico embate entre Piedade e Baltar em O Convento, até desembocar já bem mais tranqüilo e contemplativo nas conversas de Espelho Mágico ou no encontro com o sacerdote ortodoxo de Um Filme Falado. Entre cada um destes, raro é encontrar um filme onde não haja um personagem religioso, ou cena passada em Igrejas. Aliás, se percebemos um respeito constante em Oliveira, é pela ritualística católica, presente, é claro, desde o Acto de Primavera (o qual o diretor sempre considerou ter sido possível filmar, ao contrário de vários outros projetos seus do período, apenas por sua temática religiosa). Mas, talvez o mais importante (e que fica muito claro no segundo filme de Oliveira a ser eminentemente sobre uma figura "religiosa" – Palavra e Utopia), seja a dimensão política que a religião sempre possui em seu trabalho. Ele mesmo é quem afirma: "creio que as obsessões políticas se transformam em religião, da mesma maneira que uma religião obsessiva se torna uma ideologia". Daí, certamente, as dúvidas que sempre o assolaram, tanto para com a Igreja Católica quanto os partidos políticos.

RIGOR
Sobre este que talvez seja o substantivo mais vezes mencionado junto ao nome de Oliveira, podemos dizer algo parecido ao que dizíamos sobre a presença da palavra no seu trabalho: muitas vezes parece que nem seus críticos ferrenhos nem alguns de seus admiradores entendem de fato o que o termo esconde e revela da obra do cineasta. Não que aja quaisquer dúvidas: o conceito de rigor cinematográfico pode ser atrelado a poucos cineastas como a Oliveira. No entanto, o que percebemos é que muitas vezes isso é feito preguiçosamente, confundindo rigor de visão de mundo com um certo rigor mortis, que é tudo que não existe na obra sempre em movimento de Oliveira.
Movimento, aliás, é palavra importante aqui. Porque na maioria das vezes, usa-se o termo "rigor" com este sentido direto, como se cinema fosse equação matemática: "Oliveira move pouco a câmera, logo é um cineasta rigoroso". A sentença é falsa nos seus dois componentes: muitos cineastas não movem suas câmeras sem rigor algum, e Oliveira move sim a sua. Claro, cada vez mais seu cinema se libertou dos excessos de linguagem que advêm da intervenção da câmera naquilo que filma (pensamos nos movimentos incessantes de O Passado e o Presente, ou nos zooms desenfreados de Amor de Perdição), mas Oliveira nunca se tornou um fundamentalista em nenhuma parte da sua arte. Se abundam hoje os planos de conjunto que dão a devida duração de suas ações, ainda hoje há muito espaço para o corte, o close, o plano e contraplano, e até mesmo o movimento. Ou há plano mais rigoroso do que aquele que condensa cada viagem do navio de Um Filme Falado, cheio de movimento sem mover a câmera, com a imagem do bico do barco que rasga o oceano?
Na verdade, o tempo talvez seja mais importante para se compreender o rigor oliveiriano do que o movimento. Não, de novo, o fetiche pelo fetiche, o plano longo como "estética total". Pois, se há muitos planos curtos ainda hoje em Oliveira, principalmente o seu rigor de tempo pode ser visto nas elipses narrativas, muito mais que na duração de seus planos. Seja no uso das legendas em A Carta e Francisca, seja na condensação da história de uma mulher em Vale Abraão ou na da humanidade em Um Filme Falado, Oliveira é um mestre do tempo cinematográfico. E, se convencionou-se notar que seus filmes se tornavam constantemente "menos movimentados", falou-se menos em como ele também deixa de lado as enormes durações após o Vale Abraão. O rigor de Manoel de Oliveira, porém, não é o de regras dogmáticas e sim o único ao qual vale a pena se dar atenção: cada plano dura tanto quanto precisa durar, cada movimento acontece (ou não) porque precisa acontecer, cada imagem existe em seus filmes porque é necessária. O resto é bobagem.

TRUPE
Mencionamos logo no começo a intrínseca relação de Oliveira com o teatro. Para além das elocubrações teóricas em torno das linguagens de cada uma das expressões artísticas, talvez a maneira mais viva com que podemos enxergar um viés teatral na obra do cineasta é pela sua formação de uma autêntica trupe que o acompanha filme após filme. Esta trupe, se não é exclusivista, certamente indica a afinidade do realizador com aqueles que têm à sua volta enquanto produz, principalmente nos últimos (e mais prolixos) anos de sua carreira.

Embora geralmente só pensemos nos atores, a "companhia Oliveira" é bem mais ampla: começa com a continuísta Julia Buisel, sua colaboradora direta e fiel mais antiga (trabalha com ele desde Francisca) – e que aparece também como atriz em pequenos papéis em alguns de seus filmes. No mesmo filme de 1981 começa uma das principais parcerias da carreira do cineasta (e do cinema mundial), com o produtor Paulo Branco. Recentemente rompida em Espelho Mágico (por motivos desconhecidos, pelo menos publicamente), pode-se dizer que esta parceria foi um trabalho conjunto que permitiu ao mesmo tempo que nascesse um dos maiores produtores do cinema mundial, e que tomasse força e regularidade a obra de Oliveira pós-1980. Nos aspectos técnicos mais criativos, como a montagem e a fotografia, Oliveira também vai lentamente encontrando seus parceiros, cada vez mais na medida em que também se torna mais constante sua produção. Na fotografia, primeiro estabelece-se a alternância entre Elso Roque (Benilde, Francisca, Non, entre outros) e Mario Barroso (O Meu Caso, Os Canibais, Vale Abraão, O Convento, entre outros) – sendo que este também surge como ator, interpretando Camilo Castelo Branco em Francisca e O Dia do Desespero. A partir de Party e até Espelho Mágico, Oliveira trabalha seis vezes com o francês Renato Berta (os também franceses Emmanuel Machuel e Sabine Lancelin assinam outros três e dois filmes do período, respectivamente). Na montagem (geralmente uma parte do trabalho mais flexível à agenda dos profissionais com outros trabalhos), a parceria de Oliveira com Valerie Loiseleux é ainda mais constante, desde A Divina Comédia – sendo que na maioria dos trabalhos, com ela ou antes, ele coassina a montagem. Outros colaboradores constantes que precisam ser mencionados são o músico João Paes (entre O Passado e o Presente e Os Canibais), os técnicos de som Jean-Paul Mugel, Joaquim Pinto, Gita Cerveira, Henri Maikoff e Philippe Morel (nenhum com menos de três filmes feitos juntos com o diretor) e o assistente de direção José Maria Vaz da Silva, que desde A Divina Comédia só não fez três dos dezesseis longas de Oliveira.
Mas, claro, é nos seus elencos que mais facilmente percebemos (por motivos óbvios) a existência da trupe de Oliveira. A começar pelas já citadas Leonores (Silveira e Baldaque), que simplesmente são quase que totais exclusividades de Oliveira (Baldaque nunca filmou com outro cineasta, Silveira fez 14 filmes com ele e apenas cinco com outros). Com a quase onipresença do protagonismo das duas, sobra pouco espaço para outras figuras femininas, mas pelo menos duas grandes atrizes portuguesas são recorrentes na obra do diretor, ainda que em papéis menores: Isabel Ruth e Glória de Matos. Recentemente, com o cosmopolitismo que ganha sua obra nos anos 90, Irene Papas e Catherine Deneuve repetem-se no seu elenco, trazendo com elas (e sendo nisso usadas por Oliveira com maestria) a força de suas personas cinematográficas. Na parte masculina, Oliveira também tem sua dupla de ouro: acima de todos, com Luis Miguel Cintra (quinze filmes desde O Sapato de Cetim, na maioria como protagonista), mas também com Diogo Dória (a parceria mais longeva, que começa em Francisca e vai até o Espelho Mágico recente). Mas, da mesma forma que com as mulheres, Oliveira tem seus coadjuvantes constantes (entre eles, Miguel Guilherme, Duarte de Almeida, Ruy de Carvalho, David Cardoso) e suas adições cosmopolitas mais recentes (Michel Picoli, Lima Duarte, John Malkovich). Mais do que uma utilização constante de nomes, vale entender que todos estes parceiros de Oliveira estabelecem autêntica simbiose com o seu autor. Se sabemos, por exemplo, que Duarte de Almeida é também João Bénard da Costa, autor de alguns dos maiores textos e entrevistas com o diretor, se lemos o texto que Luis Miguel Cintra escreveu sobre O Dia do Desespero (um dos poucos filmes onde não é ator), ou ainda testemunhos como os de Julia Buisel, João Paes ou Glória de Matos na Revista Camões, percebemos que todos estes não se repetem na companhia de Oliveira à toa.
Há, porém, uma peculiaridade na parte masculina do seu elenco: a presença do neto de Oliveira, Ricardo Trepa, protagonista de vários dos seus filmes recentes e que assumiu o papel do próprio Oliveira em Porto da Minha Infância (e que também só trabalhou com Oliveira até hoje, como Baldaque). Mais do que uma curiosa questão de herança, me parece interessante ver como este detalhe dialoga com o próprio cinema de Oliveira. Pensemos, neste sentido, no protagonismo de Chiara Mastroianni em A Carta, pouco depois de Oliveira ter trabalhado com sua mãe (Catherine Deneuve) e pai (Marcello Mastroianni). Ora, se já discutimos no verbete Fluxo, a importância da idéia de continuidade da História, de conexão, repetição, recontextualização, de passado e presente sempre conectados, faz todo sentido esta passagem de gerações dentro de um mesmo trabalho. Neste sentido, veremos inclusive que este uso repetido das mesmas figuras cria, ao longo da obra, uma conexão ainda maior entre os filmes. Ver Leonor Silveira e Luis Miguel Cintra envelhecer ao longo de vinte anos de filmes de Manoel de Oliveira, ver como o tempo passa em seus rostos e corpos, e como eles assumem personas novas, em conexão com as antigas (enquanto surgem Leonor Baldaque e Ricardo Trepa para "recomeçar" a história), dá o sentido de História interna da própria obra do cineasta – num caso que talvez só tenha paralelo recente no cinema mundial, em longevidade, constância e quase exclusividade no cinema de Robert Guédiguian. Pensando assim, revendo os filmes, percebemos ainda mais a coerência da trupe teatral que toma corpo no cinema de Oliveira.

VIDA
Se existe uma constante no trabalho de Manoel de Oliveira, é o de não simplificar nunca a experiência humana, tentando sempre olhá-la por todos os ângulos quanto seria possível. Só assim podemos entender como uma obra tão marcada pela Morte, como já destacamos que ela é, seja tão completamente transbordante de vida. Por isso, se há uma palavra que precisa fechar um glossário sobre Manoel de Oliveira é esta aqui.
Se a própria realização do cinema é uma das formas que o ser humano arranjou de suplantar sua morte física pela eternização em imagens e sons, pela captura do tempo (tema central, por exemplo, de Inquietude), a obra de Manoel de Oliveira é a que mais tem representado esta busca. Ele mesmo defendeu a sua utilização do plano fixo como sendo aquele que mais se aproxima de capturar a eternidade. Cada filme de Oliveira parece querer (e quase sempre conseguir) conter o mundo em si – mesmo os que se passem todos em uma esquina (A Caixa) ou em uma casa (A Divina Comédia). Vale Abraão, seu filme que talvez mais se aproxime do desejo de eternidade de uma obra de arte, termina justamente com uma frase da personagem Maria do Loreto, referindo-se a escrever um livro, mas que Manoel claramente transplanta para o seu conceito de cinema: "Não tem a menor importância, mas é aquilo que melhor imita uma vida". Pois cada filme de Oliveira é isso: a imitação, a transmutação de uma vida em arte. Ou, como disse Maria João Pires na Revista Camões: "os filmes de Manoel de Oliveira respiram".
Dentro desta vitalidade, não se pode ignorar que seu cinema "moleque" é feito, em mais de 80% de seu trabalho em longas, após os 70 anos de idade, sendo marcado antes disso por longas interrupções. Esta longevidade de vida, que se torna longevidade de arte, tem reflexos inegáveis sobre o trabalho do cineasta. Entre estes, já tratamos de alguns no verbete Morte, mas cabe perceber a sabedoria e a tranqüilidade que estas condições deram ao olhar de Oliveira para o cinema e a vida. Ele mesmo fala, em Conversas com Manoel de Oliveira, da diferença que sente entre cineastas que muito filmam, sem terem tempo para refletir, e ele, que teve todo o tempo para a reflexão antes de, por assim dizer, "começar" a filmar. No entanto, esta reflexão e este cinema feito nas décadas finais de uma vida ("viver muito é um dom de Deus, mas se paga um preço", diz ele), não transpira um pingo de ressentimento pelo tempo sem filmar (todo ele, vivido), e nem a nostalgia de um "tempo melhor" (basta se ver Porto da Minha Infância, filme que retoma a sua juventude mas que é muito mais um filme sobre o futuro do que sobre o passado, e no qual ele diz textualmente que o mundo mudou, mas ele continua amando o Porto de hoje como amou o de ontem). A compreensão da História de uma vida, dentro da História do mundo, certamente é outra aos 97 anos de idade.
Por isso, a imagem que fica de Oliveira depois de mergulhar-se nos seus filmes, pode ser quebrada em duas: a do diretor que se transveste de ator de seu próprio filme apenas para dançar um tango que é a própria elegia de beleza da arte, da vida (Inquietude); e finalmente a última imagem que vimos da parte dele – a de um rosto de menino que ri abertamente para a câmera, depois de um filme que reflete tanto sobre a Morte (Espelho Mágico). Manoel de Oliveira certamente sabe como acabar as coisas, por isso, termino o glossário com a última frase que diz em Conversas com Manoel de Oliveira, onde busca definir-se: "Um homem que ama profundamente o cinema, porque ama profundamente a vida".
(...)
De resto, é como dizia o personagem em Francisca (depois transposto em O Princípio da Incerteza): escuta, sem necessidade de compreender, pois (a frase aí é do próprio Oliveira) o que se explica, não se compreende.


Eduardo Valente