FRANCISCA

Não se sai impunemente de Francisca. Haveremos de guardar para sempre, com um misto de espanto e delicadeza, alguns gestos como que parados no tempo, misteriosos, sedutores por sua estranheza. Um rosto parado olhando para a câmera enquanto um baile de máscaras bastante animado acontece em segundo plano; um cavalo no meio de uma sala de estar; dois dedos separados que pressionam uma mesa num momento de tensão; um corpo que na lateral do quadro se levanta da cama e surge como uma aparição, já que estava como que camuflado, invisível. São momentos fortes de invenção visual, de concretização física num filme contaminado com o inefável, recheado de códigos morais e sociais invisíveis, levado pelas palavras. No mais das vezes, os corpos aparecem como fantasmas, como entes animados à revelia de si mesmos. E ainda assim são também o completo oposto, corpos vigorosos capazes de movimentos bruscos e imprevisíveis: Francisca que aparece sem mais nem menos no quadro no momento do rapto, ou José Eduardo que esbofeteia sua amada inesperadamente. Em Francisca, são os sentimentos, essas forças imateriais e inexplicáveis, que dominam os corpos e os obrigam a comportar-se de uma forma determinada. "O que faz com que amemos alguém?", pergunta José Augusto, no momento em que já não há nada mais a fazer. O que fazer, então? "Gerar um anjo na plenitude do martírio", o que, no universo do filme e no universo de Oliveira e seus amores frustrados, significa construir um amor eterno no meio de toda adversidade do mundo.

Último filme de uma tetralogia dedicada aos amores que só podem se concretizar no infinito – ou, mais exatamente, na morte –, Francisca é também o mais focado, austero e direto dessa série de projetos. Uma austeridade que se vê na decupagem – apenas 127 planos para 166 minutos, sendo que aproximadamente ¼ desse número é de intertítulos –, mas que mostra sua verdadeira força na intensidade que ganham os mínimos gestos diante de um parti-pris de imobilidade (da câmera, dos ambientes e sobretudo dos personagens) que vemos na tela. Primeiro filme de Manoel de Oliveira baseado em romance de Agustina Bessa-Luís (Fanny Owen, lançado em 1979), Francisca surge um pouco como uma segunda opção – o projeto original depois de Amor de Perdição era uma comédia baseada em livro de Vicente Sanchez, o mesmo autor de O Passado e o Presente –, mas acaba funcionando como um arremate perfeito para o tipo de pesquisa que Oliveira vinha realizando desde Benilde. "Eu estou sempre em conflito comigo mesmo na forma que enho de fazer essa transposição inteiramente fundada em renúncias. Creio que tenho dificuldades em manter essa renúncia e sei que fujo às vezes das regras que impus a mim mesmo. Assim, tenho sempre a oportunidade de voltar e fazer as coisas como quero. Penso que, no momento, é melhor ter uma expressão, colocá-la, do que suprimi-la. Porque, em todo caso, o que importa mais para mim é a expressão."1. Essa renúncia, baseada numa fidelidade extrema ao texto que se adapta, é uma afronta feroz ao naturalismo cinematográfico e, mais especificamente, aos projetos baseados em romances e peças teatrais que desejam "aerar" a história para torná-la mais "cinematográfica". Em Oliveira, o cinematográfico encontra-se em outro lugar, e a operação é outra: fazer o audiovisual falar a língua de outra arte, e nessa aposta reencontrar o cinema em sua função de "fixar o teatro", ou retomando de forma mais aberta a fórmula de Oliveira, fixar a encenação e o texto. O texto, e é o próprio Oliveira que o dirá, é aquilo que conduz o estilo do filme.

Uma tal prioridade do texto é levada a cabo com um rigor prodigioso. Ao ponto da repetição: não só o começo e o final do filme vêem uma cena ser repetida inteiramente (a leitura da carta e a fala final de José Augusto), mas também algumas frases decisivas no meio de algumas seqüências são repetidas à medida que a cena muda de tomada. Artifício para que Oliveira possa trocar a bobina de filme mantendo a continuidade da ação (aqui mental mais do que física), certamente, mas também um princípio fixador (assim no baile, ou quando Fanny declama um poema no jardim de sua casa) que funciona para dar mais densidade ao fluxo da palavra. Na tela, a opção de Oliveira se oferece a nós em toda sua beleza e mistério, mesmo que o propósito não apareça com muita clareza. Francisca é desses filmes sobre os quais param uma aura de suspense, desses filmes que pedem uim tipo de adoração toda particular, talvez um culto. Um culto, naturalmente, que resguarde seu caráter enigmático. Assim, à repetição das falas em outros planos se soma o rosto impassível de Francisca (a extraordinária Teresa Meneses, possivelmente a primeira atriz inteiramente oliveiriana do cinema de Oliveira), a imponência dos corpos petrificados, imóveis, olhando sempre para o infinito ou para o espectador.

Há muito a se falar no incrível isomorfismo entre o ultra-romantismo dos amores que só podem se realizar no infinito, dos olhares dos personagens que jamais se cruzam e da questão da transposição cinematográfica que vira uma obsessão para Oliveira exatamente na época de sua tetralogia (pentalogia, até, se adicionarmos O Sapato de Cetim, que não é regido por uma lógica diferente no que diz respeito à materialização do amor). Pois é também um amor frustrado a questão da adaptação ou da transcriação, a de fazer teatro com o cinema, fazer literatura com o cinema. Querendo fazer a maior literatura, faz-se o maior cinema. Querendo fazer o maior teatro, faz-se o maior cinema. Unem-se teatro e cinema? Apenas no infinito, seguindo sina semelhante aos amores frustrados.E se por trás das seguidas histórias trágicas de amor e morte não houvesse apenas uma maneira improvável de filosofar sobre as ligações do cinema com outras artes?

E Francisca é provavelmente o projeto em que Oliveira melhor conseguiu concretizar sua busca. Se não chega à exaustão barroca – mas não por isso menos bela – de O Sapato de Cetim, é porque o filme preserva essa leveza, esse enigma de um objeto pesado que ainda assim consegue levitar. Muito desse fascínio atende pelo nome de Teresa Meneses, muito dele cabe também a Diogo Dória, muito também à incrível beleza dos diálogos de Agustina Bessa-Luís, mas nos aproximadamente 100 planos filmados que compõem o filme – ou seja, excetuando os planos de intertítulos, com fundo preto ou não – Oliveira está no topo de sua forma, fazendo cada enquadramento, cada movimentação de atores, cada corte, cada reenquadramento e cada movimento de câmera significar muita coisa. Zoom out glorioso que sai dos dedos retesados de José Augusto para restaurar o plano conjunto da palestra entre os amigos para chegar a uma conclusão sobre seu casamento com Fanny; Zoom in para sair do plano geral em frente ao café e reenquadrar Camilo Castelo Branco em seu café, lamentando com os amigos a morte do companheiro; travelling que sai do salão de dança e vai para uma área menos agitada do baile em que José Augusto pode ser apresentado à família Owen; olhar de Fanny no baile de máscaras que o espectador percebe mas José Augusto não, porque está conversando com a irmã da moça. Dois homens e uma mulher: juntos, os três tornaram-se presas dos ardis do amor, nenhum mais que outro. Mortos os dois apaixonados, resta a Camilo, único vivo, fazer o inventário do que foi vivido.

Ruy Gardnier

1. Entrevista com Manoel Oliveira in Cahiers du Cinéma nº328 (outubro de 1981), p.12.

 

 



Teresa Meneses como Fanny Owen...

Mário Barroso como Camilo e Diogo Dória
como José Augusto em Francisca (1981)