ESPELHO MÁGICO (2005)

Encenar um milagre: a viabilidade desta proposta parece ser a principal preocupação de Manoel de Oliveira no decorrer de Espelho Mágico. José Luciano (Ricardo Trepa) tentará representar a aparição da Virgem Maria que tanto obceca sua patroa, Alfreda (Leonor Silveira). O sentimento de religiosidade, extremamente caro ao diretor, logo se espalha pelo filme, se construindo a partir da maneira com a qual a câmera e os personagens se portam diante do universo que os rodeia. Não se trata nunca de um ultrapassado catolicismo fetiche arremessado diante de uma câmera teimosamente fixa; na obra de Oliveira todas as obsessões que o perseguem interessam tão-somente e apenas quando se projetam como parte de um projeto estético, por mais complexas que elas sejam. Afinal, como se poderá resolver visualmente algo, a princípio, impossível de ser reproduzido? Questão de , antes de mais nada. No mundo e nas imagens que ele é capaz de gerar.

Ainda cedo, José Luciano e um homem mais velho, cultivador de cactos, conversam demoradamente em uma sala. O grande rigor na marcação dos atores e na composição de planos só não sufoca os atores porque ao mesmo tempo a câmera insiste sempre em procurar os ângulos que melhor lhe sirvam, permanecendo neles o quanto for necessário. Pouco depois se vê que José Luciano está, na verdade, conversando com o diretor do presídio no qual se encontra recluso. Dentro de um ambiente onde há toda uma precisão no controle dos corpos, nasce uma paradoxal liberdade de impressões, e mesmo de expressões. É por isto que não se nota que José Luciano esteja em uma prisão, e mesmo depois que isto é informado, não faz muita diferença. Uma estranha naturalidade surge a partir de uma série de procedimentos que pareciam castrar qualquer chance disto ocorrer. Em nenhuma ocasião se deixará de trabalhar sobre esta tensão, e o que impressiona é a serenidade com a qual isto é ajustado em cena. Não há um só instante de frouxidão em que se fragilize, mesmo rapidamente, o esmero com que se organizam todos os elementos do quadro. Espelho Mágico é um filme de equilíbrios: de formas, de cores, de movimentos e de sons.

Integrar a esse mundo um elemento essencialmente desordenador – um milagre – se revela bem mais delicado que inicialmente pensado. Torna-se forçoso cogitar que circunstâncias são mais favoráveis para certas escolhas, quais serão os resultados delas obtidos e, especialmente, se eles compensam eventuais sacrifícios. Um exercício de espera, em suma; e é nesse terreno que o filme finca os pés. Alfreda aguarda a aparição da Santa e definha no processo; José Luciano permanece na expectativa da melhor ocasião para realizar a falsa aparição de Maria; a atriz que ele contrata para o papel passa os dias a provar o figurino e discutir sua interpretação, mas parece que nunca entrará em ação; Bahia, marido de Alfreda, não pára de almejar o surgimento de um novo gênio na sua escola de música. É exatamente incorporando tais momentos de espera, a tão problemática encenação do milagre, que Oliveira vai conseguir resolver, esteticamente, várias questões que se desprendem daí sem provocar nenhuma ruptura drástica em sua tão cuidadosa mise-en-scène.

O tempo cronológico se desenrola na tela com saltos nada sistemáticos, frustrando qualquer tentativa de mensurar quanto se passa entre os cortes. Minutos, horas, dias, meses, pouco importa; no fim das contas o único tempo que realmente tem substância é aquele que se dedica a cada um dos planos. E eles se estendem calmamente, suspendendo o momento do corte sem o menor constrangimento, seja apenas por algumas frações de segundos ou por períodos mais sentidos. Deste modo, juntando-se aos personagens do filme, as imagens por si só também parecem estar esperando algo ainda intangível. A câmera, nestes instantes, funciona como um sereno instrumento de paciência e, mais ainda, de permanência. Se a ocasião do corte já aparenta ter passado, a eventual vinda do mesmo tem sua importância irremediavelmente esvaziada: os planos persistem, mesmo quando não podem mais ser vistos. À medida que o filme avança, a carga visual que parece assombrar aquilo que de fato se vê se torna cada vez maior. As imagens não simplesmente surgem no lugar das outras, elas se acumulam em uma imensidade de camadas; possuem, beirando o sobrenatural, vida para além de sua própria evidência.

Assim, se a idéia de encenar um milagre é abandonada aos poucos por José Luciano, o filme a toma para si e faz de cada cena, cada quadro, um milagre particular. Um chapéu que voa como num lance de ilusionismo; um pôr-do-sol impossível de tão intenso; um reflexo de luz nas águas de um rio que passa ali perto; uma criança que sorri sem compromisso algum diante da câmera; um gesto; uma conversa: tudo se torna sagrado. Na verdade tudo sempre o foi no cinema de Manoel de Oliveira; ele próprio um espelho em cuja superfície reflete o mundo. A mágica está em como se consegue transcender esse mundo a partir da imersão nele próprio.


José Roberto Rocha

 

 




Leonor Silveira e Ricardo Trepa em Espelho Mágico (2005)


Leonor Baldaque e Ricardo Trepa em Espelho Mágico (2005)