Encenar
um milagre: a viabilidade desta proposta parece ser
a principal preocupação de Manoel de Oliveira
no decorrer de Espelho Mágico. José
Luciano (Ricardo Trepa) tentará representar
a aparição da Virgem Maria que tanto obceca
sua patroa, Alfreda (Leonor Silveira). O sentimento
de religiosidade, extremamente caro ao diretor, logo
se espalha pelo filme, se construindo a partir da maneira
com a qual a câmera e os personagens se portam
diante do universo que os rodeia. Não se trata
nunca de um ultrapassado catolicismo fetiche arremessado
diante de uma câmera teimosamente fixa; na obra
de Oliveira todas as obsessões que o perseguem
interessam tão-somente e apenas quando se projetam
como parte de um projeto estético, por mais complexas
que elas sejam. Afinal, como se poderá resolver
visualmente algo, a princípio, impossível
de ser reproduzido? Questão de fé,
antes de mais nada. No mundo e nas imagens que ele é
capaz de gerar.
Ainda cedo, José Luciano e um homem mais velho,
cultivador de cactos, conversam demoradamente em uma
sala. O grande rigor na marcação dos atores
e na composição de planos só não
sufoca os atores porque ao mesmo tempo a câmera
insiste sempre em procurar os ângulos que melhor
lhe sirvam, permanecendo neles o quanto for necessário.
Pouco depois se vê que José Luciano está,
na verdade, conversando com o diretor do presídio
no qual se encontra recluso. Dentro de um ambiente onde
há toda uma precisão no controle dos corpos,
nasce uma paradoxal liberdade de impressões,
e mesmo de expressões. É por isto que
não se nota que José Luciano esteja em
uma prisão, e mesmo depois que isto é
informado, não faz muita diferença. Uma
estranha naturalidade surge a partir de uma série
de procedimentos que pareciam castrar qualquer chance
disto ocorrer. Em nenhuma ocasião se deixará
de trabalhar sobre esta tensão, e o que impressiona
é a serenidade com a qual isto é ajustado
em cena. Não há um só instante
de frouxidão em que se fragilize, mesmo rapidamente,
o esmero com que se organizam todos os elementos do
quadro. Espelho Mágico é um filme
de equilíbrios: de formas, de cores, de movimentos
e de sons.
Integrar a esse mundo um elemento essencialmente desordenador
– um milagre – se revela bem mais delicado que inicialmente
pensado. Torna-se forçoso cogitar que circunstâncias
são mais favoráveis para certas escolhas,
quais serão os resultados delas obtidos e, especialmente,
se eles compensam eventuais sacrifícios. Um exercício
de espera, em suma; e é nesse terreno que o filme
finca os pés. Alfreda aguarda a aparição
da Santa e definha no processo; José Luciano
permanece na expectativa da melhor ocasião para
realizar a falsa aparição de Maria; a
atriz que ele contrata para o papel passa os dias a
provar o figurino e discutir sua interpretação,
mas parece que nunca entrará em ação;
Bahia, marido de Alfreda, não pára de
almejar o surgimento de um novo gênio na sua escola
de música. É exatamente incorporando tais
momentos de espera, a tão problemática
encenação do milagre, que Oliveira vai
conseguir resolver, esteticamente, várias questões
que se desprendem daí sem provocar nenhuma ruptura
drástica em sua tão cuidadosa mise-en-scène.
O tempo cronológico se desenrola na tela com
saltos nada sistemáticos, frustrando qualquer
tentativa de mensurar quanto se passa entre os cortes.
Minutos, horas, dias, meses, pouco importa; no fim das
contas o único tempo que realmente tem substância
é aquele que se dedica a cada um dos planos.
E eles se estendem calmamente, suspendendo o momento
do corte sem o menor constrangimento, seja apenas por
algumas frações de segundos ou por períodos
mais sentidos. Deste modo, juntando-se aos personagens
do filme, as imagens por si só também
parecem estar esperando algo ainda intangível.
A câmera, nestes instantes, funciona como um sereno
instrumento de paciência e, mais ainda, de permanência.
Se a ocasião do corte já aparenta ter
passado, a eventual vinda do mesmo tem sua importância
irremediavelmente esvaziada: os planos persistem, mesmo
quando não podem mais ser vistos. À medida
que o filme avança, a carga visual que parece
assombrar aquilo que de fato se vê se torna cada
vez maior. As imagens não simplesmente surgem
no lugar das outras, elas se acumulam em uma imensidade
de camadas; possuem, beirando o sobrenatural, vida para
além de sua própria evidência.
Assim, se a idéia de encenar um milagre é
abandonada aos poucos por José Luciano, o filme
a toma para si e faz de cada cena, cada quadro, um milagre
particular. Um chapéu que voa como num lance
de ilusionismo; um pôr-do-sol impossível
de tão intenso; um reflexo de luz nas águas
de um rio que passa ali perto; uma criança que
sorri sem compromisso algum diante da câmera;
um gesto; uma conversa: tudo se torna sagrado. Na verdade
tudo sempre o foi no cinema de Manoel de Oliveira; ele
próprio um espelho em cuja superfície
reflete o mundo. A mágica está em como
se consegue transcender esse mundo a partir da
imersão nele próprio.
José Roberto Rocha
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