Em
1946, André Bazin analisava as trucagens cinematográficas
de alguns filmes, concentrando-se na técnica
de sobre-impressão, e concluía: "Não
há razão alguma para que um fantasma,
também ele, não ocupe um lugar exato no
espaço e não estabeleça uma relação
convincente com os objetos à sua volta".
(Talvez já esteja implícita na frase de
Bazin a sua ampliação: com os objetos
e com as pessoas à sua volta.) Mais ou menos
por aí se inicia uma curiosa constatação
sobre E Se Fosse Verdade, a comédia romântica
que Mark Waters realizou com essa atriz extraordinária
que é Reese Witherspoon. O filme, por sinal,
traz Reese na sua melhor personagem desde a irascível
adolescente white trash que ela interpretou em
Freeway, filme dirigido por Mathew Bright em
1996. Não que no meio do caminho não tenham
ocorrido várias excelentes atuações,
a exemplo da adorável Elle Woods de Legalmente
Loira, mas o fato é que E Se Fosse Verdade
está um degrau acima.
Ainda que Reese seja uma das melhores atrizes contemporâneas,
sua presença impõe um trabalho inteiramente
especial e difícil por parte dos diretores. A
começar pelo fato de que seu rosto provoca um
deslumbramento que nem o star system nem as belas-artes
nos ensinaram. É preciso que o filme comece,
e que ela faça em cena tudo aquilo que cativa
o espectador tão facilmente, para que de uma
hora para outra estejamos admirando uma energia que
sempre soa inédita. É somente quando se
expressa que o rosto de Reese irradia todo seu encanto:
uma beleza-em-ação, diretamente ligada
ao presente vital, ao que se agita dentro da atriz,
dentro da personagem. Entramos, com ela, menos no campo
de uma idealidade estética do que naquele de
uma beleza imantada de um substrato quase imaterial,
mesmo que tão dependente do corpo da atriz.
Não é por acaso que E Se Fosse Verdade
apresenta uma das reflexões mais interessantes
dos últimos anos sobre as imagens geradas por
meios digitais: é sempre em relação
direta com os corpos e os lugares registrados, digamos,
pelos meios tradicionais do cinema que essas imagens
se mostram mais fascinantemente tematizadas; é
sempre quando essa imagem se põe em questão
que de fato ela participa do filme. Corpo real
e corpo digital se vêem aqui aproximados, às
vezes consubstanciados – em busca de um acordo. E não
é por acaso também que o filme surge logo
após toda uma polêmica em torno da eutanásia,
despertada justamente pelo caso de uma jovem americana
mantida por aparelhos. Como fruto de uma arte desde
cedo – por razões que hoje nos parecem tão
mais naturais quanto mais se revelam continuações
de antigos modelos de representação –
destinada a instilar e registrar vidas, E Se Fosse
Verdade vem para expor seu ponto de vista sobre
as duas coisas, a imagem que não cessa de se
transformar e a existência que ela prolonga por
meios estéticos. A uma nova imagem corresponde
– deve corresponder – uma nova ética e uma nova
mística.
Essa dualidade traduz a escala de forças que
Waters coloca em ajuste: o desenrolar do filme revela
algo muito preciso sobre uma nova imagem que surgiu
e que agora se vê levemente perdida, como um espírito
que vaga pelo mundo à espera e à procura
de um corpo; a imagem precisa encarnar, mas ela
mesma se acha impotente quando confrontada ao mundo
tátil. O diretor persegue a mais antiga e obstinada
das tarefas do cinema: ocupar o espaço
reinjetando nele, fantasmaticamente, a presença
de um corpo. O enredo romântico de E Se Fosse
Verdade começa quando Elizabeth (a personagem
de Reese) retorna, em versão fantasma, ao apartamento
em que morava antes do acidente de carro que a pôs
em coma. O desacordo entre ela e o novo morador, David
(Mark Ruffalo), assim como o desacordo entre seus gestos
e os objetos do apartamento, indiferentes a alguém
que pode vê-los mas não pode tocá-los
– e a visão divorciada do tato é sempre
angustiante, mesmo num mundo em que as coisas se admitem
puramente visíveis –, pouco a pouco é
substituído por uma reconciliação
dela com o espaço. Elizabeth vive como um espectro
que aguarda a hora certa de se atualizar no mundo palpável.
O cinema lida aqui com a proximidade de uma nostalgia
do corpo (ou nostalgia de uma "carne" de que
a imagem se despe progressivamente).
Uma cena crucial é aquela em que David descobre
Elizabeth, ela mesma uma médica que se sacrificava
bastante pelo trabalho, deitada a uma cama de hospital
e conectada a diversos aparelhos. O que emociona nessa
cena é justamente o que o filme indica, sutilmente,
ser a força que a mantém ainda viva: junto
à janela, encontram-se fotos de Elizabeth com
a irmã, com as sobrinhas e com as demais pessoas
que ela ama. Há também os desenhos que
as sobrinhas fazem para ela e levam nos dias de visita,
quando brincam apertando aleatoriamente os botões
dos aparelhos ao lado da cama. Ali o filme diz realmente
para o que veio: não são os aparatos tecnológicos
que a mantêm viva, mas antes o afeto depositado
ou diretamente pelas pessoas que a visitam ou pelas
imagens que estão à janela como que refratando
positivamente a luz que incide sobre Elizabeth (em estado
curiosamente chamado de "vegetativo"). Os
médicos que cuidam dela – representados pela
figura falsa e arrogante do colega de hospital de Elizabeth
– acreditam ser inútil e desesperançoso
aguardar pela volta de uma paciente em coma há
meses. Enquanto isso, o corpo adormecido de Elizabeth
envia um duplo virtual ao apartamento já ocupado
por David. Eles se apaixonam nessa dimensão mágica,
de encontro do material com o espiritual. David é
o único que pode intervir no destino dela, e
é o que faz ao tentar seqüestrá-la
do hospital antes que levem a cabo o desligamento dos
aparelhos. No meio da confusão que se cria, contudo,
ele a percebe desligada do respirador e corre na sua
direção. Os seguranças do hospital
tentam detê-lo – mesmo numa instituição
dedicada a salvar vidas, o sistema repressivo fala mais
alto, revela as prioridades da sociedade –, mas ela
finalmente acorda perante uma platéia perplexa,
que acredita ter assistido a uma espécie de ressurreição.
O plano de David saindo em câmera lenta, após
salvar a vida de Elizabeth e ela não identificá-lo,
está certamente entre aqueles momentos em que
Mark Waters vem mostrando que pode muita coisa ao somar
sua capacidade de encenador a temas interessantes.
O filme então fará seu epílogo,
apenas guardando um certo suspense em relação
à união do casal. Quando termina, E
Se Fosse Verdade deixa seu espectador com uma sensação
de leveza e encantamento que só os melhores projetos
ainda sabem extrair de gêneros já saturados.
Não se trata da reedição de uma
aproximação – pensada a partir da velha
história do amor que supera o limite entre a
vida e a morte (Ghost) – de duas dimensões
separadas pela fronteira em que o cinema, justamente
ele, se inscreve. E Se Fosse Verdade sabe que,
a princípio, todos no cinema são fantasmas,
mas o filme em nenhum momento sai da vida tal como a
conhecemos; seu universo é um só, aquele
em que construímos nossos afetos e nossas paixões
– o que exige, naturalmente, nosso corpo. O mais importante
a se sentir, para os personagens desse filme, é
o toque. A mão de David, na cena mais bonita
do filme, se encosta à mão de Elizabeth,
e ambos se concentram no magnetismo desse encontro:
não importa em que regime de imagem, o que faz
a diferença no filme é o tato, a maneira
de tocar e manipular sensitivamente o material.
Luiz Carlos Oliveira Jr.
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