E SE FOSSE VERDADE
Mark Waters, Just Like Heaven, EUA, 2005

Em 1946, André Bazin analisava as trucagens cinematográficas de alguns filmes, concentrando-se na técnica de sobre-impressão, e concluía: "Não há razão alguma para que um fantasma, também ele, não ocupe um lugar exato no espaço e não estabeleça uma relação convincente com os objetos à sua volta". (Talvez já esteja implícita na frase de Bazin a sua ampliação: com os objetos e com as pessoas à sua volta.) Mais ou menos por aí se inicia uma curiosa constatação sobre E Se Fosse Verdade, a comédia romântica que Mark Waters realizou com essa atriz extraordinária que é Reese Witherspoon. O filme, por sinal, traz Reese na sua melhor personagem desde a irascível adolescente white trash que ela interpretou em Freeway, filme dirigido por Mathew Bright em 1996. Não que no meio do caminho não tenham ocorrido várias excelentes atuações, a exemplo da adorável Elle Woods de Legalmente Loira, mas o fato é que E Se Fosse Verdade está um degrau acima.

Ainda que Reese seja uma das melhores atrizes contemporâneas, sua presença impõe um trabalho inteiramente especial e difícil por parte dos diretores. A começar pelo fato de que seu rosto provoca um deslumbramento que nem o star system nem as belas-artes nos ensinaram. É preciso que o filme comece, e que ela faça em cena tudo aquilo que cativa o espectador tão facilmente, para que de uma hora para outra estejamos admirando uma energia que sempre soa inédita. É somente quando se expressa que o rosto de Reese irradia todo seu encanto: uma beleza-em-ação, diretamente ligada ao presente vital, ao que se agita dentro da atriz, dentro da personagem. Entramos, com ela, menos no campo de uma idealidade estética do que naquele de uma beleza imantada de um substrato quase imaterial, mesmo que tão dependente do corpo da atriz.

Não é por acaso que E Se Fosse Verdade apresenta uma das reflexões mais interessantes dos últimos anos sobre as imagens geradas por meios digitais: é sempre em relação direta com os corpos e os lugares registrados, digamos, pelos meios tradicionais do cinema que essas imagens se mostram mais fascinantemente tematizadas; é sempre quando essa imagem se põe em questão que de fato ela participa do filme. Corpo real e corpo digital se vêem aqui aproximados, às vezes consubstanciados – em busca de um acordo. E não é por acaso também que o filme surge logo após toda uma polêmica em torno da eutanásia, despertada justamente pelo caso de uma jovem americana mantida por aparelhos. Como fruto de uma arte desde cedo – por razões que hoje nos parecem tão mais naturais quanto mais se revelam continuações de antigos modelos de representação – destinada a instilar e registrar vidas, E Se Fosse Verdade vem para expor seu ponto de vista sobre as duas coisas, a imagem que não cessa de se transformar e a existência que ela prolonga por meios estéticos. A uma nova imagem corresponde – deve corresponder – uma nova ética e uma nova mística.

Essa dualidade traduz a escala de forças que Waters coloca em ajuste: o desenrolar do filme revela algo muito preciso sobre uma nova imagem que surgiu e que agora se vê levemente perdida, como um espírito que vaga pelo mundo à espera e à procura de um corpo; a imagem precisa encarnar, mas ela mesma se acha impotente quando confrontada ao mundo tátil. O diretor persegue a mais antiga e obstinada das tarefas do cinema: ocupar o espaço reinjetando nele, fantasmaticamente, a presença de um corpo. O enredo romântico de E Se Fosse Verdade começa quando Elizabeth (a personagem de Reese) retorna, em versão fantasma, ao apartamento em que morava antes do acidente de carro que a pôs em coma. O desacordo entre ela e o novo morador, David (Mark Ruffalo), assim como o desacordo entre seus gestos e os objetos do apartamento, indiferentes a alguém que pode vê-los mas não pode tocá-los – e a visão divorciada do tato é sempre angustiante, mesmo num mundo em que as coisas se admitem puramente visíveis –, pouco a pouco é substituído por uma reconciliação dela com o espaço. Elizabeth vive como um espectro que aguarda a hora certa de se atualizar no mundo palpável. O cinema lida aqui com a proximidade de uma nostalgia do corpo (ou nostalgia de uma "carne" de que a imagem se despe progressivamente).

Uma cena crucial é aquela em que David descobre Elizabeth, ela mesma uma médica que se sacrificava bastante pelo trabalho, deitada a uma cama de hospital e conectada a diversos aparelhos. O que emociona nessa cena é justamente o que o filme indica, sutilmente, ser a força que a mantém ainda viva: junto à janela, encontram-se fotos de Elizabeth com a irmã, com as sobrinhas e com as demais pessoas que ela ama. Há também os desenhos que as sobrinhas fazem para ela e levam nos dias de visita, quando brincam apertando aleatoriamente os botões dos aparelhos ao lado da cama. Ali o filme diz realmente para o que veio: não são os aparatos tecnológicos que a mantêm viva, mas antes o afeto depositado ou diretamente pelas pessoas que a visitam ou pelas imagens que estão à janela como que refratando positivamente a luz que incide sobre Elizabeth (em estado curiosamente chamado de "vegetativo"). Os médicos que cuidam dela – representados pela figura falsa e arrogante do colega de hospital de Elizabeth – acreditam ser inútil e desesperançoso aguardar pela volta de uma paciente em coma há meses. Enquanto isso, o corpo adormecido de Elizabeth envia um duplo virtual ao apartamento já ocupado por David. Eles se apaixonam nessa dimensão mágica, de encontro do material com o espiritual. David é o único que pode intervir no destino dela, e é o que faz ao tentar seqüestrá-la do hospital antes que levem a cabo o desligamento dos aparelhos. No meio da confusão que se cria, contudo, ele a percebe desligada do respirador e corre na sua direção. Os seguranças do hospital tentam detê-lo – mesmo numa instituição dedicada a salvar vidas, o sistema repressivo fala mais alto, revela as prioridades da sociedade –, mas ela finalmente acorda perante uma platéia perplexa, que acredita ter assistido a uma espécie de ressurreição. O plano de David saindo em câmera lenta, após salvar a vida de Elizabeth e ela não identificá-lo, está certamente entre aqueles momentos em que Mark Waters vem mostrando que pode muita coisa ao somar sua capacidade de encenador a temas interessantes.

O filme então fará seu epílogo, apenas guardando um certo suspense em relação à união do casal. Quando termina, E Se Fosse Verdade deixa seu espectador com uma sensação de leveza e encantamento que só os melhores projetos ainda sabem extrair de gêneros já saturados. Não se trata da reedição de uma aproximação – pensada a partir da velha história do amor que supera o limite entre a vida e a morte (Ghost) – de duas dimensões separadas pela fronteira em que o cinema, justamente ele, se inscreve. E Se Fosse Verdade sabe que, a princípio, todos no cinema são fantasmas, mas o filme em nenhum momento sai da vida tal como a conhecemos; seu universo é um só, aquele em que construímos nossos afetos e nossas paixões – o que exige, naturalmente, nosso corpo. O mais importante a se sentir, para os personagens desse filme, é o toque. A mão de David, na cena mais bonita do filme, se encosta à mão de Elizabeth, e ambos se concentram no magnetismo desse encontro: não importa em que regime de imagem, o que faz a diferença no filme é o tato, a maneira de tocar e manipular sensitivamente o material.


Luiz Carlos Oliveira Jr.

 

 




Reese Witherspoon em E Se Fosse Verdade: questão de tato