VIVER A VIDA
Jean-Luc Godard, Vivre sa vie, França, 1962

Na entrevista que vem de extra no DVD de Carmen de Godard, que a Aurora lançou recentemente, o excelente crítico Alain Bergala – então no auge de suas atividades nos Cahiers du Cinéma, nos anos 80 – fala a seu entrevistado, Raoul Coutard, o diretor de fotografia que acompanhou Godard em seus filmes mais conhecidos, que Carmen de alguma forma o remetia diretamente a Viver a Vida, filme de duas décadas antes. Curiosa coincidência, já que a afirmação de Bergala de imediato nos põe a pensar sobre uma sintonia entre os dois últimos lançamentos de Godard em DVD no Brasil (prova de que bons extras sempre acrescentam algo além do óbvio – e é uma pena que a entrevista esteja tão encurtada). Dois filmes incríveis, cada um a seu jeito. O inusitado da aproximação proposta por Bergala é que enquanto Viver a Vida representa o supra-sumo da fase de Godard mais palatável e mesmo agradável à maioria (grande parte das pessoas que se dizem admiradoras de sua obra se referem na verdade a no máximo meia-dúzia de filmes feitos entre 1959 e 1965 – Acossado, Uma Mulher É uma Mulher, O Desprezo, Pierrot le fou, Alphaville, o próprio Viver a Vida), Carmen é o filme em que Godard prenuncia toda a posição que ele adotaria a partir dali e que se faz evidente, por exemplo, em Histoire(s) du cinéma, uma posição reclusa e, em grande escala, melancólica.

Carmen traz Godard, o enfermo, que aparece logo no começo internado num hospital, querendo fazer um filme mas encontrando todo tipo de dificuldade. Depois viria Godard, o profeta em meio aos escombros, o monge que se retira à penumbra para compilar, estudar, revisar e finalmente escrever suas histórias do cinema (a condição desse gesto, para ele, só pode ser a solidão). Falavam naquele momento da morte do cinema, mas Godard ateve-se à sua doença (o que é bem diferente). Há uma excelente divagação que ele faz durante o ciclo de conferências registrado no livro Introdução a uma verdadeira história do cinema. Lá ele diz que no cinema se torna cômodo imprimir uma doença, ou mesmo a morte, coisa paradoxalmente tão indolor na tela gigante. Como uma chapa de raios X: utilizar uma superfície sensível para expor problemas (e a Kodak alimenta ambos, o cinema e as clínicas de radiografia). E houve um momento, sobretudo na era clássica, em que o cinema não funcionava sem o espectador, "do mesmo modo que um médico precisa de uma chapa radiográfica e o doente precisa desse médico, e que num dado momento ambos têm necessidade da chapa radiográfica para se relacionar um com o outro" (Godard faz essa comparação justamente quando está falando de Viver a Vida). Um filme nos solicita uma atividade mais complexa do que parece "à primeira vista", porque, em cada plano de cada filme, há sempre alguma coisa que não vemos, e que se resolve por algo que pensamos, algo invisível – uma imagem chama a outra (mental, virtual, fetichizada...). Mas é justamente essa relação de co-presença na imagem, o espectador se vendo no filme e vice-versa, que se perdeu em algum momento. Carmen anuncia o diagnóstico de Godard: o fracasso do cinema como local de transmissão. O hospital, portanto, se faz locação obrigatória. Não só porque essa impossibilidade de transmissão leva a uma exaustão generalizada, a uma debilitação da energia vital do cineasta, como também porque diagnosticar uma doença é fazer montagem – estamos evidentemente no terreno da montagem como operação do pensamento. "Um médico que consegue tratar uma sinusite pertence à mesma ordem que eu quando faço um belo plano com Maruschka Detmers", disse Godard num diálogo com Serge Daney em 1988.

Bergala, como consta no verso da embalagem do DVD, enxerga Carmen como um filme redondo, um filme-objeto. E se há uma faceta do cinema que se fortaleceu com todas as mudanças das últimas décadas, é aquela que diz respeito ao filme como objeto – e um objeto que sobrevive a todas as leituras, que não se deixa esmagar pelo texto acoplado à imagem. Um filme pode e deve existir sem legenda. Se hoje capturamos imagens do DVD e construímos narrativas pessoais através delas, fazemos montagem por outros meios (seguimos, no fundo, o legado de Godard a partir de Histoire(s) du Cinéma). Montagem-inquietação. A primeira questão que se coloca é vastíssima: que imagens escolher? E como proceder em relação a elas? Ainda mais agora, que é menos apropriado falar de imagem do que de aproximações entre imagens. Nenhuma imagem é uma ilha, mas o que as religa é justa e perigosamente o dizer – existe sempre o risco de ficar o dito pelo não visto. É o próprio Godard quem nos avisa: "A imagem é algo que indica alguma coisa ilimitada e ao mesmo tempo limita. A imagem e o som são um pouco incompletos. Se nosso corpo fosse feito apenas de olhos e ouvidos, isso não bastaria". E vai mais longe: "As crianças ao nascer ou os velhos ao morrer não falam – vêem coisas". (As situações puramente óticas e puramente sonoras descritas por Deleuze ocorriam na esteira de um fracasso – o fracasso sensório-motor. Impõe-se a questão: o cinema moderno avançava em direção à morte ou recuava ao nascimento?)

1. Após os créditos iniciais de Viver a Vida – durante os quais vemos os perfis direito e esquerdo e também um close frontal de Nana (Anna Karina) –, o primeiro plano mostra Nana de costas, sentada ao balcão de um café. Ela conversa com um namorado que a cartela de introdução deste episódio-tableau (pois estamos vendo um filme em doze tableaux) já havia dito que seria deixado por ela. "Retirando o interior, percebe-se a alma", diz o namorado de Nana um pouco depois, quando eles estão diante de uma máquina de pinball. A auto-descrição de Nana, quando ela escreve uma carta se oferecendo aos serviços de um prostíbulo, é pura e exatamente física, exterior – e termina com ela conquistando definitivamente nossa simpatia, percorrendo seu corpo dos pés à cabeça com o palmo, para voltar à carta e anotar quanto mede de altura. Lá no começo, filmá-la de costas já parecia ser a forma menos interiorizada possível; a primeira pessoa seria um lugar inalcançável nesse filme. "Eu é outra pessoa", diz Nana ao policial. Passa-se então ao outro lugar da representação, ao lugar em que o "ver de dentro" e mesmo o "ver de todas as partes" se tornam apenas o sinal da imaturidade de tudo aquilo que finge ser decifrável pela imagem. A protagonista de costas já no primeiro plano do filme: o distanciamento se produz por si mesmo, preexiste ao filme, talvez. Entre Nana e o resto do mundo, nada além de um difícil acordo. O retrato de Anna Karina em Viver a Vida não é uma pintura íntima, pois Godard a atira contra o mundo. A câmera de Raoul Coutard desliza por um universo povoado de incertezas, de espaços que não pertencem à personagem. A única cena em que ela está realmente dinâmica, realmente disposta a explorar um espaço é quando dança ao som da música colocada na jukebox, em meio a mesas de bilhar. Vemos ali a máxima capacidade de pureza de um olhar fixado sobre fragmentos que são como os "pontos" que Straub atribui a seu Crônica de Anna Magdalena Bach – nem cenas nem episódios, mas pontos possíveis (ou traços, ou notas...). Fazer um filme em fragmentos é se aproximar da música ou da pintura. O tempo não progride nem se inflaciona de significados, mas respira "uma prodigiosa intuição do instante tomado em toda a sua complexidade" (Jean-André Fieschi). Em Viver a Vida, é o momento que é privilegiado, não o ponto de vista. A filmagem faz o filme, não o roteiro. Para Godard, trata-se de fazer um filme como quem viaja e só lembra de olhar o mapa enquanto está dirigindo. Talvez ele seja da opinião – compartilhada por poucos – de que "o óptico é aquilo que não fica tão bem na tela". Um olhar é preferível a uma descrição, daí o laconismo e a imprecisão desse filme.

2. A liberação? A morte. "Se estou feliz, sou responsável; se estou infeliz, sou responsável." É assim a vida. Nana, desse modo, empresta seu rosto a uma impressão moral do mundo. Ao longo do filme e chegando em seu plano final – o assassinato frio e seco de Nana –, a morte vai se construindo como brutalidade e alívio ao mesmo tempo. O viver, aqui, se produz após um acúmulo de "dificuldades de ser" (expressão-chave nas formulações de Fieschi). Sendo Nana responsável por todos os seus atos, por sua existência – no sentido mais forte que isso pode ter –, a dimensão trágica do filme é ainda mais ampla.

3. Do rosto de Joana D’Arc, e suas lágrimas, ao rosto de Nana, e suas lágrimas. Do filme de Dreyer ao filme de Godard. Um filme se transforma em outro, plano de Dreyer e contra-plano de Godard. Atrás do rosto de Nana, no fundo do plano, somente o nada, o vazio – ou o espaço todo, as galáxias e seu infinito.

4. Anna Karina ficou furiosa porque achava que Godard a tinha enfeado em Viver a Vida, prejudicando sua carreira de atriz. Que injustiça (com ela mesma e com o cineasta): Anna Karina jamais esteve tão encantadora, tão apaixonante – e tão bela. Se em Acossado Godard dizia ter feito um documentário sobre Jean Seberg e Jean-Paul Belmondo, em Viver a Vida não se pode dizer algo semelhante – não há um documentário sobre Anna Karina. Há um pintor fazendo o retrato de sua mulher (como no conto de Edgar Allan Poe que o próprio Godard faz questão de ler, em off, já quase no final do filme). Há uma obra – confessional em muitos aspectos – se nutrindo de todas as referências possíveis, se municiando de todos os padrinhos artísticos e filosóficos que lhe são convenientes. Mas tudo com uma fagocitose selvagem do pensamento, com uma criatividade espontânea – mesmo que pareça deslocado usar esses termos sobre um filme em que Godard claramente dá asas a um virtuosismo e a um domínio na composição muito mais que em seus dois longas anteriores. Nesse filme que age como se as coisas não estivessem ali para formar enunciado, gerar signo, Nana conversa justamente com um filósofo da linguagem, Bruce Parain, que confia no "sentimento vertiginoso de uma inexatidão da linguagem". Vertigem da palavra inadequada: o enunciado precário como proposição de narrativa. Viver a Vida é tão melhor quanto menos consegue funcionar como enredo. Godard se assume de vez como cineasta, ao passo que insiste no fato de que apenas fez mais um filme, ou seja, rodou um plano e em seguida sentiu necessidade de rodar outro plano – o que, para ele, difere o trabalho de um cineasta daquele de um cinegrafista amador: o cineasta se confirma pela necessidade do plano seguinte.

5. Nana não quer ir ao museu.

6. "La mort", ou um outro título possível para Viver a Vida. O conto de Poe dá as cartas: quando o retrato da amada fica pronto, em todos os detalhes ambicionados pelo artista, ela é já morta (criar, de certa forma, implica matar aquilo que serviu de inspiração?). Mas recapitulemos: Nana de perfil, Nana de frente para a câmera, depois de costas para a câmera, depois chorando no escuro do cinema, fumando um cigarro em um café, prestando depoimento cabisbaixa, flertando com a câmera. De um plano a outro, a iluminação varia para encobri-la de sombra ou banhá-la de luz. Eis a beleza desse filme: sua potência eclipsante. Godard filmou o eclipse de um rosto, o rosto de Anna Karina.


Luiz Carlos Oliveira Jr.

(DVD Magnus Opus)

 

 





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