Na
entrevista que vem de extra no DVD de Carmen de Godard,
que a Aurora lançou recentemente, o excelente
crítico Alain Bergala então no auge
de suas atividades nos Cahiers du Cinéma, nos
anos 80 fala a seu entrevistado, Raoul Coutard, o
diretor de fotografia que acompanhou Godard em seus
filmes mais conhecidos, que Carmen de alguma
forma o remetia diretamente a Viver a Vida, filme
de duas décadas antes. Curiosa coincidência,
já que a afirmação de Bergala de
imediato nos põe a pensar sobre uma sintonia
entre os dois últimos lançamentos de Godard
em DVD no Brasil (prova de que bons extras sempre acrescentam
algo além do óbvio e é uma pena
que a entrevista esteja tão encurtada). Dois
filmes incríveis, cada um a seu jeito. O inusitado
da aproximação proposta por Bergala é
que enquanto Viver a Vida representa o supra-sumo
da fase de Godard mais palatável e mesmo agradável
à maioria (grande parte das pessoas que se dizem
admiradoras de sua obra se referem na verdade a no máximo
meia-dúzia de filmes feitos entre 1959 e 1965
Acossado, Uma Mulher É uma Mulher,
O Desprezo, Pierrot le fou, Alphaville,
o próprio Viver a Vida), Carmen
é o filme em que Godard prenuncia toda a posição
que ele adotaria a partir dali e que se faz evidente,
por exemplo, em Histoire(s) du cinéma,
uma posição reclusa e, em grande escala,
melancólica.
Carmen traz Godard, o enfermo, que aparece logo
no começo internado num hospital, querendo fazer
um filme mas encontrando todo tipo de dificuldade. Depois
viria Godard, o profeta em meio aos escombros, o monge
que se retira à penumbra para compilar, estudar,
revisar e finalmente escrever suas histórias
do cinema (a condição desse gesto, para
ele, só pode ser a solidão). Falavam naquele
momento da morte do cinema, mas Godard ateve-se à
sua doença (o que é bem diferente). Há
uma excelente divagação que ele faz durante
o ciclo de conferências registrado no livro Introdução
a uma verdadeira história do cinema. Lá
ele diz que no cinema se torna cômodo imprimir
uma doença, ou mesmo a morte, coisa paradoxalmente
tão indolor na tela gigante. Como uma chapa de
raios X: utilizar uma superfície sensível
para expor problemas (e a Kodak alimenta ambos, o cinema
e as clínicas de radiografia). E houve um momento,
sobretudo na era clássica, em que o cinema não
funcionava sem o espectador, "do mesmo modo que
um médico precisa de uma chapa radiográfica
e o doente precisa desse médico, e que num dado
momento ambos têm necessidade da chapa radiográfica
para se relacionar um com o outro" (Godard faz
essa comparação justamente quando está
falando de Viver a Vida). Um filme nos solicita
uma atividade mais complexa do que parece "à
primeira vista", porque, em cada plano de cada
filme, há sempre alguma coisa que não
vemos, e que se resolve por algo que pensamos, algo
invisível uma imagem chama a outra (mental,
virtual, fetichizada...). Mas é justamente essa
relação de co-presença na imagem,
o espectador se vendo no filme e vice-versa, que se
perdeu em algum momento. Carmen anuncia o diagnóstico
de Godard: o fracasso do cinema como local de transmissão.
O hospital, portanto, se faz locação obrigatória.
Não só porque essa impossibilidade de
transmissão leva a uma exaustão generalizada,
a uma debilitação da energia vital do
cineasta, como também porque diagnosticar uma
doença é fazer montagem estamos evidentemente
no terreno da montagem como operação do
pensamento. "Um médico que consegue tratar
uma sinusite pertence à mesma ordem que eu quando
faço um belo plano com Maruschka Detmers",
disse Godard num diálogo com Serge Daney em 1988.
Bergala, como consta no verso da embalagem do DVD, enxerga
Carmen como um filme redondo, um filme-objeto.
E se há uma faceta do cinema que se fortaleceu
com todas as mudanças das últimas décadas,
é aquela que diz respeito ao filme como objeto
e um objeto que sobrevive a todas as leituras, que
não se deixa esmagar pelo texto acoplado à
imagem. Um filme pode e deve existir sem legenda. Se
hoje capturamos imagens do DVD e construímos
narrativas pessoais através delas, fazemos montagem
por outros meios (seguimos, no fundo, o legado de Godard
a partir de Histoire(s) du Cinéma). Montagem-inquietação.
A primeira questão que se coloca é vastíssima:
que imagens escolher? E como proceder em relação
a elas? Ainda mais agora, que é menos apropriado
falar de imagem do que de aproximações
entre imagens. Nenhuma imagem é uma ilha,
mas o que as religa é justa e perigosamente o
dizer existe sempre o risco de ficar o dito
pelo não visto. É o próprio Godard
quem nos avisa: "A imagem é algo que indica
alguma coisa ilimitada e ao mesmo tempo limita. A imagem
e o som são um pouco incompletos. Se nosso corpo
fosse feito apenas de olhos e ouvidos, isso não
bastaria". E vai mais longe: "As crianças
ao nascer ou os velhos ao morrer não falam
vêem coisas". (As situações
puramente óticas e puramente sonoras descritas
por Deleuze ocorriam na esteira de um fracasso o fracasso
sensório-motor. Impõe-se a questão:
o cinema moderno avançava em direção
à morte ou recuava ao nascimento?)
1. Após os créditos iniciais de
Viver a Vida durante os quais vemos os perfis
direito e esquerdo e também um close frontal
de Nana (Anna Karina) , o primeiro plano mostra Nana
de costas, sentada ao balcão de um café.
Ela conversa com um namorado que a cartela de introdução
deste episódio-tableau (pois estamos vendo
um filme em doze tableaux) já havia dito
que seria deixado por ela. "Retirando o interior,
percebe-se a alma", diz o namorado de Nana um pouco
depois, quando eles estão diante de uma máquina
de pinball. A auto-descrição de
Nana, quando ela escreve uma carta se oferecendo aos
serviços de um prostíbulo, é pura
e exatamente física, exterior e termina com
ela conquistando definitivamente nossa simpatia, percorrendo
seu corpo dos pés à cabeça com
o palmo, para voltar à carta e anotar quanto
mede de altura. Lá no começo, filmá-la
de costas já parecia ser a forma menos interiorizada
possível; a primeira pessoa seria um lugar inalcançável
nesse filme. "Eu é outra pessoa", diz
Nana ao policial. Passa-se então ao outro lugar
da representação, ao lugar em que o "ver
de dentro" e mesmo o "ver de todas as partes"
se tornam apenas o sinal da imaturidade de tudo aquilo
que finge ser decifrável pela imagem. A protagonista
de costas já no primeiro plano do filme: o distanciamento
se produz por si mesmo, preexiste ao filme, talvez.
Entre Nana e o resto do mundo, nada além de um
difícil acordo. O retrato de Anna Karina em Viver
a Vida não é uma pintura íntima,
pois Godard a atira contra o mundo. A câmera de
Raoul Coutard desliza por um universo povoado de incertezas,
de espaços que não pertencem à
personagem. A única cena em que ela está
realmente dinâmica, realmente disposta a explorar
um espaço é quando dança ao som
da música colocada na jukebox, em meio
a mesas de bilhar. Vemos ali a máxima capacidade
de pureza de um olhar fixado sobre fragmentos que são
como os "pontos" que Straub atribui a seu
Crônica de Anna Magdalena Bach nem cenas
nem episódios, mas pontos possíveis (ou
traços, ou notas...). Fazer um filme em fragmentos
é se aproximar da música ou da pintura.
O tempo não progride nem se inflaciona de significados,
mas respira "uma prodigiosa intuição
do instante tomado em toda a sua complexidade"
(Jean-André Fieschi). Em Viver a Vida,
é o momento que é privilegiado, não
o ponto de vista. A filmagem faz o filme, não
o roteiro. Para Godard, trata-se de fazer um filme como
quem viaja e só lembra de olhar o mapa enquanto
está dirigindo. Talvez ele seja da opinião
compartilhada por poucos de que "o óptico
é aquilo que não fica tão bem na
tela". Um olhar é preferível a uma
descrição, daí o laconismo e a
imprecisão desse filme.
2. A liberação? A morte. "Se
estou feliz, sou responsável; se estou infeliz,
sou responsável." É assim a vida.
Nana, desse modo, empresta seu rosto a uma impressão
moral do mundo. Ao longo do filme e chegando em seu
plano final o assassinato frio e seco de Nana , a
morte vai se construindo como brutalidade e alívio
ao mesmo tempo. O viver, aqui, se produz após
um acúmulo de "dificuldades de ser"
(expressão-chave nas formulações
de Fieschi). Sendo Nana responsável por todos
os seus atos, por sua existência no sentido
mais forte que isso pode ter , a dimensão trágica
do filme é ainda mais ampla.
3. Do rosto de Joana DArc, e suas lágrimas,
ao rosto de Nana, e suas lágrimas. Do filme de
Dreyer ao filme de Godard. Um filme se transforma em
outro, plano de Dreyer e contra-plano de Godard. Atrás
do rosto de Nana, no fundo do plano, somente o nada,
o vazio ou o espaço todo, as galáxias
e seu infinito.
4. Anna Karina ficou furiosa porque achava que
Godard a tinha enfeado em Viver a Vida, prejudicando
sua carreira de atriz. Que injustiça (com ela
mesma e com o cineasta): Anna Karina jamais esteve tão
encantadora, tão apaixonante e tão bela.
Se em Acossado Godard dizia ter feito um documentário
sobre Jean Seberg e Jean-Paul Belmondo, em Viver
a Vida não se pode dizer algo semelhante
não há um documentário sobre
Anna Karina. Há um pintor fazendo o retrato de
sua mulher (como no conto de Edgar Allan Poe que o próprio
Godard faz questão de ler, em off, já
quase no final do filme). Há uma obra confessional
em muitos aspectos se nutrindo de todas as referências
possíveis, se municiando de todos os padrinhos
artísticos e filosóficos que lhe são
convenientes. Mas tudo com uma fagocitose selvagem do
pensamento, com uma criatividade espontânea
mesmo que pareça deslocado usar esses termos
sobre um filme em que Godard claramente dá asas
a um virtuosismo e a um domínio na composição
muito mais que em seus dois longas anteriores. Nesse
filme que age como se as coisas não estivessem
ali para formar enunciado, gerar signo, Nana conversa
justamente com um filósofo da linguagem, Bruce
Parain, que confia no "sentimento vertiginoso de
uma inexatidão da linguagem". Vertigem da
palavra inadequada: o enunciado precário como
proposição de narrativa. Viver a Vida
é tão melhor quanto menos consegue
funcionar como enredo. Godard se assume de vez como
cineasta, ao passo que insiste no fato de que apenas
fez mais um filme, ou seja, rodou um plano e em seguida
sentiu necessidade de rodar outro plano o que, para
ele, difere o trabalho de um cineasta daquele de um
cinegrafista amador: o cineasta se confirma pela necessidade
do plano seguinte.
5. Nana não quer ir ao museu.
6. "La mort", ou um outro título
possível para Viver a Vida. O conto de
Poe dá as cartas: quando o retrato da amada fica
pronto, em todos os detalhes ambicionados pelo artista,
ela é já morta (criar, de certa forma,
implica matar aquilo que serviu de inspiração?).
Mas recapitulemos: Nana de perfil, Nana de frente para
a câmera, depois de costas para a câmera,
depois chorando no escuro do cinema, fumando um cigarro
em um café, prestando depoimento cabisbaixa,
flertando com a câmera. De um plano a outro, a
iluminação varia para encobri-la de sombra
ou banhá-la de luz. Eis a beleza desse filme:
sua potência eclipsante. Godard filmou o eclipse
de um rosto, o rosto de Anna Karina.
Luiz Carlos Oliveira Jr.
(DVD Magnus Opus)
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