TOURO INDOMÁVEL
Martin Scorsese, Raging Bull, EUA, 1980

Never went down, Ray. You never got me down, Ray. Ya hear me? Never got me down. Yeah? See, look?

Recheado de extras, sai no Brasil o DVD duplo que comemora os 25 anos de lançamento de Touro Indomável. Parte da mitologia cinematográfica norte-americana, eleita a melhor produção dos anos 80, a saga de Jake La Motta – segundo o próprio Scorsese, jornada sem meios termos rumo à autodestruição – é destrinchada por série de documentários que dá voz às figuras chaves ligadas ao filme: além do diretor, a montadora Thelma Schoonmaker, o fotógrafo Michael Chapman, os produtores Robert Chartoff e Irwin Winkler e os atores Robert De Niro, Joe Pesci e Cathy Moriarty relembram as histórias que envolveram a realização deste clássico moderno.

Touro Indomável é presença constante na televisão (aberta ou fechada) e já havia sido lançado em VHS. No entanto, o DVD permite que pela primeira vez a ascensão e queda do temperamental boxeador Jake La Motta seja vista na janela correta, isto é, 1.85:1. A excelente edição, que recupera todos os matizes de preto, de branco e de cinzas e todas as sombras da fotografia de Michael Chapman – trata-se do único filme em que Scorsese não utiliza cor (excetuando-se às simulações dos filmetes caseiros de 16mm ao longo da narrativa), tanto em protesto contra o desbotamento sofrido até então pelas películas coloridas, quando para atender ao comentário do amigo e cineasta Michael Powell, de que o vermelho das luvas do pugilista estava errado –, também traz de volta a inusitada e criativa edição sonora (que ganhou o documentário Raging Bull: After the Fight, apenas para analisá-la) agora remasterizada digitalmente, que mistura silêncios ensurdecedores com sons distorcidos de animais a fim de representar as batalhas dentro dos ringues.

No documentário Raging Bull: Before the Fight, Scorsese admite que nada sabia a respeito do boxe (ou de qualquer outro esporte). Foi a insistência de Robert De Niro, obcecado pelo papel de Jake La Motta, que o levou a dirigir o projeto, cuja produção estava a cargo de Robert Chartoff e de Irwin Winkler, os mesmos de Rocky, que convenceram a United Artists a financiar Touro Indomável utilizando o sucesso do filme de Stallone como exemplo. Sem ligação emotiva, de início, com o roteiro (que ganhou a estrutura fundada no relacionamento dos irmãos Jake e Joey apenas com a chegada de Paul Schrader), o cineasta, mergulhado na crise pela dissolução de seu casamento, encontrou a peça que faltava quando enxergou que a vida pessoal do personagem possuía a mesma selvageria das lutas travadas dentro do quadrilátero: como pedir, questiona o diretor, a um homem que bate e apanha no ringue seja um cavalheiro do lado de fora? Assim como o Howard Hughes de O Aviador, o maior inimigo do pugilista é ele próprio, uma vez que os sonhos de grandeza que nutre são indissociáveis da paranóia que acaba por consumi-lo.

A vida igual ao ringue, o personagem tal qual Ícaro, cujas asas de cera derretem ao chegarem próximas demais do sol. Jake La Motta deseja o título mundial, anseia enfrentar Joe Louis (impossível, já que eram de pesos diferentes), mas apenas conseguirá o cinturão caso se submeta aos gângsteres que dominam as comissões estaduais de boxe. No cotidiano predatório e violento que Scorsese retrata – em Touro Indomável, a presença marcante dos prédios de apartamentos pobres, colados uns aos outros, onde vizinhos se amontoam e se insultam –, há sempre o peixe maior pronto para devorar o menor. Resta ao touro do Bronx a única possibilidade de lutar e de não cair, embora ninguém consiga escapar dos próprios demônios internos: a pungente seqüência em que La Motta, na cela escura e solitária, esmurra a parede amaldiçoando as mãos que lhe proporcionam tanto o triunfo, quanto o fracasso.

Concomitante à danação de Jake, acontece o desregramento (dissecado em Raging Bull: Outside The Ring) de sua relação afetiva com a esposa Vickie. O amor pela mulher que afunda os personagens scorseseanos nas trevas da mente, que os põem em contato com emoções torturantes: Katharine Hepburn em O Aviador, Maria Madalena em A Última Tentação de Cristo, Ellen Olenska em A Época da Inocência, Ginger em Cassino. Em Touro Indomável, Robert De Niro não permitiu que Cathy Moriarty pesquisasse sobre a Vickie real, pois queria que a personagem fosse produto da imaginação de Jake – em Scorsese, no conflito entre o amor idealizado e o possível, entre o que se sonha e o que existe de verdade, restam aos ícaros, quando perdem as asas, somente a desconfiança, o medo, o ciúme e a obsessão. Não por acaso, o filme se encerra com Jake La Motta recitando o diálogo de Marlon Brando com Rod Steiger em Sindicato de Ladrões, mas olhando a si mesmo no espelho: foram as idiossincrasias que cometeu ao longo da vida que transformaram o outrora lendário pugilista no apresentador gordo e sem graça de cabarés vagabundos.

Touro Indomável se fundamente sobre a percepção emotiva que Jake La Motta possui da realidade. Como em Táxi Driver, valendo-se novamente da pesquisa que realizou em cima de O Homem Errado, de Alfred Hitchcock, Scorsese registra os acontecimentos que lançam o boxeador às sombras a partir de planos pontos de vista do herói, quase sempre em câmera lenta: o bater de pernas de Vickie na piscina, o beijo inocente que ela dá em Joey (e que produz o rompimento entre os irmãos), a visita da esposa, no restaurante, à mesa em que se encontra o gângster Tommy e seus comparsas. Inclusive as lutas de boxe, encenadas de maneiras diferentes entre si, representam o estado psicológico e sentimental do personagem: em Raging Bull: Inside the Ring, Thelma Schoonmaker mostra como a vitória de La Motta sobre Sugar Ray Robinson se dá num ringue amplo e iluminado, enquanto sua derrota para o mesmo adversário ocorre no ambiente enfumaçado e borrado que remete à boca do inferno (ou, na incrível recuperação contra Dethullier, como o quadro, até então distante, avança para dentro do ringue quando Jake começa a surrar o oponente). Fascinante o trabalho de ourivesaria efetuado pelo cineasta, que filmou as seqüências de luta plano a plano, ao invés de usar várias câmeras ao mesmo tempo, pois preferiu captá-las de modo idêntico aos números musicais de New York, New York (segundo o diretor, a cada quatro compassos, um novo corte).

O documentário The Bronx Bull, além de colocar em cena o verdadeiro e agora idoso La Motta, avalia o legado de Touro Indomável. Convocados para depor a respeito do filme, críticos europeus e americanos repetem a mesma ladainha: o absurdo de Scorsese ainda não ter ganhado o Oscar. Para todos os que comungam na religião do menino pobre e asmático do Queens que, quase se tornando padre, preferiu enveredar pelo cinema, a resposta é apenas uma: azar de Hollywood e da Academia de Artes e Ciências Cinematográficas.


Paulo Ricardo de Almeida

(DVD Fox)