Terra
Estrangeira é um filme de destaque no panorama
do cinema brasileiro recente. Menos por sua relação
com o todo desta produção do que por suas
características internas, poderíamos dizer.
O lançamento recente de uma edição
em DVD comemorativa de 10 anos do filme coloca-o em
perspectiva e permite uma boa análise da significação
da sua construção como objeto artístico
e cultural e do papel ocupado por ele no cenário
cinematográfico no qual está inserido.
A faixa comentada por Daniela Thomas, Walter Salles
e Carlos Alberto de Mattos, presente nos extras, nos
dá toda a dimensão do valor agregado ao
filme, desde sua concepção até
o próprio lançamento desta edição
especial – cuja bela embalagem em papel vem repleta
de comentários críticos das mais variadas
publicações ao redor do mundo aclamando
o filme. Assim sendo, Terra Estrangeira apresenta-se
desde o início para nós como uma produção
fora do ordinário, um filme que se furta um tanto
explicitamente de uma inserção em um todo,
pois que nasce diretamente da vontade de fazer um filme
de impacto, tanto estética quanto politicamente,
e um filme "de geração", feito
com "um sentido de urgência" como afirma
Salles na faixa comentada.
Essa vontade clara de criar um filme para comentar um
momento histórico do país (que termina
por refletir também uma contemporaneidade mundial)
pauta toda a construção significante de
Terra Estrangeira, ainda que aqui e ali as próprias
imagens do filme pareçam ganhar uma autonomia
que aponta para pouca coisa além da narrativa
em si. Todo este envolvimento que o filme perpetra,
com seus traços de um autêntico "bom
narrar", é resultado em grande parte de
sua excelente mise-en-scéne, dos seus
enquadramentos bastante expressivos, da fotografia estonteante
de Walter Carvalho e da sua montagem exata. No entanto,
observando-se com maior atenção, pode-se
perceber o esqueleto que sustenta tudo isso: um roteiro
muito bem-ancorado que busca falar da situação
periclitante do Brasil do início dos anos 90,
tanto internamente quanto em sua relação
com o "mundo civilizado", refletindo diversas
questões de identidade (cultural, nacional, pátria)
nos seus atravessamentos com memórias (pessoais
e históricas). Um brasileiro descendente de espanhóis
bascos perde a mãe – senhora que desejava mais
que tudo retornar à sua terra natal – quando
do anúncio traumático do congelamento
das contas bancárias durante o governo Collor.
Do outro lado do Atlântico, em Portugal pai ex-colonizador,
uma brasileira desterrada perde o namorado, também
brasileiro, para o tráfico internacional – tráfico
que irá por fim unir estas duas pontas: o rapaz
em busca de alguma identidade que o reestruture e a
moça que já não crê ser possível
encontrar uma. O romance surge então como um
redentor para estes sujeitos em pleno fluxo, buscando
alguma terra na qual repousar os pés. O realismo
social de um filme de cotidiano, que se anuncia no início,
cede lugar a uma narrativa policialesca, que, por sua
vez, cede ao road movie.
Talvez o aspecto mais impressionante do filme seja o
intercruzamento entre narrativa e espaço e como
ele reflete dinâmicas do contemporâneo ainda
em processo de conceitualização em 1995,
fazendo das questões de desterritorialização
e de crise da identidade como princípio organizador
do sujeito e da nação, que permeiam as
significações reverberadas pela narrativa,
autênticos testemunhos de um momento histórico,
para além das intenções explícitas
dos realizadores. Esta sensação de frescor
é certamente corroborada pelo fato da equipe
ser em grande parte uma equipe de estreantes em cinema.
Tudo parece realmente fruto de uma conjunção
de fatores única, que desembocou num filme em
grande medida atípico e permeado de contradições
internas, embora portador de um forte apelo "carismático".
O "sentir-se estrangeiro em qualquer lugar"
(estrangeirar-se em qualquer terra), que o filme evoca,
remete em parte à "geografia humana situada
numa geografia física", comentada por Walter
Salles, mas não se limita a isso. A viagem "de
volta" do Brasil para Portugal em meio à
crise, à perda de referências, no que ela
contém de simbólica, não dá
conta da sensação de "não-lugar"
que Terra Estrangeira deflagra em relação
ao mundo. O deslocamento dos personagens (em busca de
melhores oportunidades ou de uma origem quimérica),
sua transitoriedade pelos espaços, não
explica em si o mal-estar da ausência de um abrigo.
Nem o afeto dos personagens é capaz de conter
a deflagração do mal, que os assolará
a partir de uma questão básica: a econômica.
É por ela que morre a mãe de Paco e por
ela que o sonho do rapaz é posto a pique. Num
esquema de coisas em que não se entende muito
bem a regra do jogo, porque estamos sempre jogados pra
escanteio (o Brasil no subdesenvolvimento, Portugal
fora da Europa, Paco excluído da negociação
do contrabando), estamos destinados a ficar à
deriva. E é esta incapacidade de fixação
(ao contrário da imagem síntese do navio
encalhado) o grande encanto do filme.
Por outro lado, o excesso de significação
estruturante de cada dado do roteiro, assim como a proliferação
de referencialidades, tira de Terra Estrangeira
a possibilidade de sintetizar uma personalidade cinematográfica
de maior impacto. Dividido entre a influência
do cinema noir (na fotografia e na intriga policial),
seu itinerário do realismo social ao road
movie, alusões a Fernando Pessoa, o encantamento
com uma iconicidade e referências a filmes ou
cineastas, ele perde vigor e dilui de certa forma a
força de diversos grandes momentos.
Tatiana Monassa
(DVD Videofilmes)
|