TERRA ESTRANGEIRA
Walter Salles e Daniela Thomas, Brasil, 1995

Terra Estrangeira é um filme de destaque no panorama do cinema brasileiro recente. Menos por sua relação com o todo desta produção do que por suas características internas, poderíamos dizer. O lançamento recente de uma edição em DVD comemorativa de 10 anos do filme coloca-o em perspectiva e permite uma boa análise da significação da sua construção como objeto artístico e cultural e do papel ocupado por ele no cenário cinematográfico no qual está inserido. A faixa comentada por Daniela Thomas, Walter Salles e Carlos Alberto de Mattos, presente nos extras, nos dá toda a dimensão do valor agregado ao filme, desde sua concepção até o próprio lançamento desta edição especial – cuja bela embalagem em papel vem repleta de comentários críticos das mais variadas publicações ao redor do mundo aclamando o filme. Assim sendo, Terra Estrangeira apresenta-se desde o início para nós como uma produção fora do ordinário, um filme que se furta um tanto explicitamente de uma inserção em um todo, pois que nasce diretamente da vontade de fazer um filme de impacto, tanto estética quanto politicamente, e um filme "de geração", feito com "um sentido de urgência" como afirma Salles na faixa comentada.

Essa vontade clara de criar um filme para comentar um momento histórico do país (que termina por refletir também uma contemporaneidade mundial) pauta toda a construção significante de Terra Estrangeira, ainda que aqui e ali as próprias imagens do filme pareçam ganhar uma autonomia que aponta para pouca coisa além da narrativa em si. Todo este envolvimento que o filme perpetra, com seus traços de um autêntico "bom narrar", é resultado em grande parte de sua excelente mise-en-scéne, dos seus enquadramentos bastante expressivos, da fotografia estonteante de Walter Carvalho e da sua montagem exata. No entanto, observando-se com maior atenção, pode-se perceber o esqueleto que sustenta tudo isso: um roteiro muito bem-ancorado que busca falar da situação periclitante do Brasil do início dos anos 90, tanto internamente quanto em sua relação com o "mundo civilizado", refletindo diversas questões de identidade (cultural, nacional, pátria) nos seus atravessamentos com memórias (pessoais e históricas). Um brasileiro descendente de espanhóis bascos perde a mãe – senhora que desejava mais que tudo retornar à sua terra natal – quando do anúncio traumático do congelamento das contas bancárias durante o governo Collor. Do outro lado do Atlântico, em Portugal pai ex-colonizador, uma brasileira desterrada perde o namorado, também brasileiro, para o tráfico internacional – tráfico que irá por fim unir estas duas pontas: o rapaz em busca de alguma identidade que o reestruture e a moça que já não crê ser possível encontrar uma. O romance surge então como um redentor para estes sujeitos em pleno fluxo, buscando alguma terra na qual repousar os pés. O realismo social de um filme de cotidiano, que se anuncia no início, cede lugar a uma narrativa policialesca, que, por sua vez, cede ao road movie.

Talvez o aspecto mais impressionante do filme seja o intercruzamento entre narrativa e espaço e como ele reflete dinâmicas do contemporâneo ainda em processo de conceitualização em 1995, fazendo das questões de desterritorialização e de crise da identidade como princípio organizador do sujeito e da nação, que permeiam as significações reverberadas pela narrativa, autênticos testemunhos de um momento histórico, para além das intenções explícitas dos realizadores. Esta sensação de frescor é certamente corroborada pelo fato da equipe ser em grande parte uma equipe de estreantes em cinema. Tudo parece realmente fruto de uma conjunção de fatores única, que desembocou num filme em grande medida atípico e permeado de contradições internas, embora portador de um forte apelo "carismático". O "sentir-se estrangeiro em qualquer lugar" (estrangeirar-se em qualquer terra), que o filme evoca, remete em parte à "geografia humana situada numa geografia física", comentada por Walter Salles, mas não se limita a isso. A viagem "de volta" do Brasil para Portugal em meio à crise, à perda de referências, no que ela contém de simbólica, não dá conta da sensação de "não-lugar" que Terra Estrangeira deflagra em relação ao mundo. O deslocamento dos personagens (em busca de melhores oportunidades ou de uma origem quimérica), sua transitoriedade pelos espaços, não explica em si o mal-estar da ausência de um abrigo. Nem o afeto dos personagens é capaz de conter a deflagração do mal, que os assolará a partir de uma questão básica: a econômica. É por ela que morre a mãe de Paco e por ela que o sonho do rapaz é posto a pique. Num esquema de coisas em que não se entende muito bem a regra do jogo, porque estamos sempre jogados pra escanteio (o Brasil no subdesenvolvimento, Portugal fora da Europa, Paco excluído da negociação do contrabando), estamos destinados a ficar à deriva. E é esta incapacidade de fixação (ao contrário da imagem síntese do navio encalhado) o grande encanto do filme.

Por outro lado, o excesso de significação estruturante de cada dado do roteiro, assim como a proliferação de referencialidades, tira de Terra Estrangeira a possibilidade de sintetizar uma personalidade cinematográfica de maior impacto. Dividido entre a influência do cinema noir (na fotografia e na intriga policial), seu itinerário do realismo social ao road movie, alusões a Fernando Pessoa, o encantamento com uma iconicidade e referências a filmes ou cineastas, ele perde vigor e dilui de certa forma a força de diversos grandes momentos.


Tatiana Monassa

(DVD Videofilmes)