Três
seqüências conseguem resumir de forma bastante
expressiva esse admirável – como se todos os
demais igualmente não o fossem – filme de Samuel
Fuller. A primeira, e mais célebre delas, vem
logo na abertura, quando vemos a protagonista Kelly
(Constance Towers) espancar violentamente um homem com
o salto de seu sapato alto. E fica já bem definida
não somente a porrada que a personagem dá
em seu antagonista, mas também a porrada que
Fuller deseja, a seu modo, proporcionar com seu filme.
Rapidamente temos caracterizadas no estilo direto e
sem firulas, que marca toda a carreira do autor, todo
o presente e passado de Kelly: prostituta, explorada
até a raiz dos cabelos – e, para quem conhece
a cena, não está aí somente uma
mera metáfora – mas também acima de tudo
buscando-se dona de si e de seu destino. Com a entrada
dos créditos, vemos Kelly no espelho recompor
sua aparência e semblante sofridos, é hora
de ir em frente.
A segunda seqüência chave seria um breve
momento de sonho, com Kelly, dois anos depois, já
instalada na pacata cidade de Grantsville e trabalhando
em um hospital onde cuida de crianças deficientes
físicas. O sonho, que se intercala às
imagens de Kelly e seus pacientes na enfermaria, em
que ela conta a eles uma história de piratas,
retrata a personagem correndo em uma praça com
os garotos, livres dos andadores e cadeiras de roda
aos quais suas vidas os limitam. O sonho confunde-se
como vindo tanto da mente das crianças, como
da imaginação de Kelly, ciosa de uma nova
vida, após o momento quase epifânico no
qual, outra vez em frente a um espelho, resolve alterar
seu trajeto, constatando que o produto que seu trabalho
oferecia, o "champanhe White Foam"
estaria prestes a, digamos, "perder a validade".
O sonho antecede justamente a entrada em cena de Grant,
bem quisto milionário e quase dono da cidade,
possível passaporte de Kelly para o ideário
de uma vida familiar e maternal.
A terceira das seqüências é antecedida
por um estranho momento no qual Kelly e as crianças
cantam uma canção que parece funcionar
como um oráculo de que, mesmo dentro de uma aparente
harmonia, as coisas não estariam todas em seu
devido lugar. Nela Fuller consegue ser mais brutal que
na apresentação, mas guardando, ao mesmo
tempo, uma inusitada tangente poética. Após
fixar a câmera no rosto da personagem e destacar
de forma mais que expressiva em poucos segundos toda
a queda de uma vida de esperança, Fuller registra,
como em flashes que simulam reproduzir a sensação
de um choque, as palavras que parecem praticamente causar
uma espécie de morte em Kelly e que a fazem retomar,
de forma ainda mais radical, o seu ato da seqüência
inicial. Após sobreposição do vestido
de noiva – símbolo da quase materialização
dos sonhos de Kelly – à figura de um cadáver
– que marcará uma nova derrocada para a personagem
– vemos o vestido retornar, amarfanhado, à sua
caixa, assim como Kelly, semi-catatônica, configurada
então como figura trágica que não
pode fugir a seu destino.
Em O Beijo Amargo temos Samuel Fuller trabalhando
uma curiosa mistura de filme noir e melodrama
rasgado para, muito à maneira do que fizera Douglas
Sirk durante a década anterior, utilizar-se do
melodrama para criticar o que ocultava a hipocrisia
da sociedade americana. Fuller, no entanto, como sempre
foi de seu feitio, é muito mais direto e menos
sutil. As metáforas ficam pelas deliciosas ironias
de tratar o mercado do sexo como o da venda de "champanhes"
ou "bombons". Mas, no fundo, Fuller faz da
pacata Grantsville – e essa cidade serve como um modelo
para o qual David Lynch regressaria décadas depois
com Veludo Azul ou Twin Peaks – um microcosmo
para uma América ideal na qual as sujeiras parecem
estar sempre ocultas para baixo do tapete.
A visão extremamente corajosa do diretor caracteriza-se
principalmente, numa época na qual ainda inocentemente
acreditava-se na realização do tão
decantado "american dream", em mostrar
que para Kelly esse sonho nunca chegaria, não
pelo fato de que ela, por sua trajetória, estivesse
distante dele, mas por que tal sonho simplesmente não
existiria. Não deixa, inclusive, de mostrar o
cinema como um eterno propagador desse sonho falido,
como vemos nos momentos em que Grant e Kelly assistem
a imagens filmadas em Veneza. E mais, apresenta o destino
de Kelly como partilhado, de uma forma ou de outra,
pela grande totalidade das mulheres, sujeitas a tê-lo
traçado pelas figuras masculinas. Curioso ver
que em O Beijo Amargo a única figura feminina
detentora de alguma espécie de poder, a cafetina
Candy, reproduz os códigos de dominação
masculina. Para um cineasta que não poucas vezes
foi taxado como "misógino", temos aí
um filme com uma visão, mesmo que bastante particular,
inequivocamente feminista, com uma protagonista que
sempre, de alguma maneira, busca, trafegando quase sempre
em contramão, manter o controle das rédeas
de sua existência.
Gilberto Silva Jr.
(DVD Aurora)
|