EU MATEI JESSE JAMES
Samuel Fuller, I Shot Jesse James, EUA, 1949

Samuel Fuller precisa apenas de 81 minutos, em seu primeiro longa-metragem, para expor a insanidade do Oeste americano, terra em que a lei imposta pela comunidade patrocina a decadência moral do indivíduo. Traição, culpa e erotismo se misturam no explosivo Eu Matei Jesse James, que, embora integre a linha de westerns revisionistas da virada da década de 40 para a de 50, não possui qualquer traço do romantismo nostálgico tão caro, por exemplo, a Os Brutos Também Amam.

Em troca do perdão para seus crimes e da recompensa pela captura, vivo ou morto, de Jesse James, Bob Ford assassina o mentor e melhor amigo pelas costas, a fim de se casar com a atriz Cinthy Waters. Apesar de incentivado pela lei e pela própria namorada a trair o líder da gangue, Ford se vê discriminado tanto pela sociedade, quanto pela mulher que ama após realizar o ato hediondo. Solto da cadeia e sem o dinheiro da recompensa, negado pela autoridade que o prometera, o anti-herói de Fuller parte rumo à Califórnia, em busca de ouro, onde reencontra John Kelley, rival no coração de Cinthy.

No início dos anos 50, o western se transforma. A era do glamour e da heroicização dos fora-da-lei cede espaço aos pistoleiros cansados e desiludidos que desejam aposentar as armas e se estabelecer de vez dentro da comunidade que anteriormente aterrorizavam. Dos bandidos outonais, destaca-se o personagem de Gregory Peck em O Matador (do mesmo Henry King que, dez anos antes, dirigira Jesse James como a versão norte-americana da saga de Robin Hood), constantemente desafiado por jovens que almejam a fama obtida através de sua morte, da mesma forma que o interpretado por Henry Fonda em O Homem dos Olhos Frios, de Anthony Mann, que ajuda o xerife e se apaixona pela professora da cidade, até que seu passado obscuro vem à tona. Contudo, o símbolo máximo da revisão romântica que abala a mitologia do western – pois há inegável nostalgia pelas ações dos velhos criminosos, igualmente pioneiros que desbravaram o Oeste selvagem – é Shane, o pistoleiro arrependido de Alan Ladd que volta à ativa para ajudar e defender as famílias de agricultores contra os barões do gado em Os Brutos Também Amam, de George Stevens. Embora pouco se conheça da história de Shane, sabe-se que possui espírito nobre: trata-se de cavaleiro errante que, vestido de branco, personifica o anjo da guarda das pradarias (e a narração pelo ponto de vista da criança reforça o aspecto de fábula que pontua o filme).

Eu Matei Jesse James, no entanto, não é romântico, e muito menos nostálgico. Mesmo que Bob Ford queira largar a vida de crimes para se casar, tornando-se agricultor, não são os sentimentos nobres e abstratos que o movem. O anti-herói de Fuller, ao contrário de Shane, não tem a bondade impressa no coração: ele age em função de objetivos concretos, e fará de tudo para alcança-los, ainda que seja necessário abandonar a ética e a moral, ao atirar pelas costas (quebrando o código respeitado até pelo pistoleiro mais cruel) no melhor amigo. Ford se entrincheira atrás do suposto pragmatismo da ação covarde que praticou – procura se convencer a cada instante de que matou por amor à Cinthy –, com a qual a sociedade, a princípio, está de acordo, uma vez que a embasa através da Lei. Porém, traído por aqueles que agora lhe condenam a traição perpetrada contra James, Bob Ford descobre o meio insano onde existe, a "civilização" que, para se estabelecer no Oeste, também acredita que os fins justificam os meios, e que a corrupção é o mal necessário para que a Ordem se edifique.

Desse modo, para Fuller a realidade é fictícia, pois se fundamenta na Ordem imoral introduzida pela Lei civilizatória, ao mesmo tempo em que, em contrapartida, a ficção se mostra verdadeira, na seqüência em que Ford, ao encenar o assassinato de Jesse James no palco, finalmente se conscientiza da traição que cometeu. O real, em outras palavras, não como o mundo visível, objetivo e empírico, e sim enquanto a postura ética do indivíduo em relação a este mundo que tenta se impor à força e que o ameaça. Em Eu Matei Jesse James, o personagem Bob Ford não se encontra definido a priori pelo roteiro: está, ao inverso, em permanente desconstrução e reconstrução, de acordo com as escolhas que toma ao longo da narrativa.

Apesar da culpa que passa a sentir depois da peça, e da mudança para a Califórnia com o intuito de enriquecer o suficiente para se casar, o reencontro de Ford com John Kelley mergulha novamente o anti-herói no processo de loucura do qual não consegue mais escapar. Kelley representa o oposto, o rival: homem comedido, respeitado, trabalhador e aparentemente justo, que também está apaixonado por Cinthy. Assim como Bob Ford teve que matar Jesse James para conquistar o amor da atriz – livrar-se do Pai opressor que o tentava sexualmente (as seqüências que os envolvem, sobretudo a do banho, são homoeróticas ao extremo) –, ele precisa enfrentar o novo obstáculo que se coloca ante seu objetivo. E, no duelo, o até então honesto Kelley se revela igualmente corrupto, ao dar as costas a Ford para, enfim, destruí-lo por meio do remorso que nutre pelo assassinato do antigo companheiro.

Sozinho e vencido, resta ao trágico anti-herói de Fuller, em Eu Matei Jesse James, aguardar a morte inevitável nos braços da mulher que sempre amou, mas que não o amava.


Paulo Ricardo de Almeida

(DVD Aurora)