Iracema,
que demorou a ser liberado pela censura e acabou sendo
um dos filmes-símbolo do cinema brasileiro pré-abertura
política, correu diversos riscos mas incrivelmente
superou o desgaste teórico que o tempo tenderia
a lhe imprimir. Embora uma posição ideológica
muitas vezes ameace tomar as rédeas na lista
de méritos mais comumente atribuídos ao
filme, o contentamento estético sobreviveu aos
cacoetes retóricos dos estudos culturais, e sobreviveu
à velha mania de, ao tratar do cinema brasileiro,
colocar-se o índice nacionalista acima do filme
em si, como se o evento cultural (seu potencial de transmissão,
de abastecimento "educacional" da população)
valesse mais que o produto artístico (a pura
e simples experiência que se torna possível
a partir e através de uma obra). O documentário
– dirigido pelo próprio Bodansky – que vem de
extra no DVD, com depoimentos que variam de Ismail Xavier
a Fernando Meirelles e Hector Babenco, vez ou outra
também reforça essa idéia, meio
que aprisionando o filme em formulações
teóricas já consagradas. Isso fere mesmo
o corolário ético-estilístico mais
corrente sobre o filme, ou seja, a noção
de uma perturbação do presente que nega,
não sem veemência, o didatismo conformado
dos filmes históricos pautados na solenidade
cenográfica, no "respeito" ao passado
brasileiro – logo, na conformação ao presente.
Para além de ter ido contra uma postura criativa
(típica de classe dominante) e um historicismo
incomodamente ornamentais – que o cinema patrocinado
pela Embrafilme não cansava de promulgar naquele
momento –, contudo, Iracema é um belo
filme porque Bodansky e Senna fizeram uma arte do espaço
e dos corpos que o atritam. Basicamente isso – e, antes
que se cometa uma injustiça com o documentário,
as análises e os depoimentos nele contidos dão
sim uma idéia interessante das conquistas estéticas
e dramatúrgicas mais evidentes no filme.
É bem verdade que Iracema rejeitou todos
os pressupostos ideológicos comuns à ficção
histórico-lendária convencional, assim
como não quis de modo algum se filiar a uma História
concebida enquanto acervo de fatos cuja atualização
cumpre um efeito apaziguante, anestésico mesmo.
Sua contribuição política foi da
ordem da provocação e da intervenção.
Uma urgência jornalística veio se substituir
a toda a fossilização arquivista do cinema
oficial. Era a metade dos anos 70 e o governo brasileiro
incentivava o gênero histórico, prometendo
prioridade no planejamento orçamentário
da Embrafilme e até sugerindo temas e abordagens
de predileção. Uma pressão político-administrativa,
portanto, estimulava o cineasta brasileiro a produzir
uma imagem oficialesca da história nacional.
Versão da História que se deveria produzir
segundo um ponto de vista inequívoco: vultuosa,
repleta de heroísmo e pompa e, principalmente,
marcada pelo andamento pacífico dos acontecimentos.
Os filmes funcionariam como "aulas divertidas"
para as massas. Assim recomendava o ministério.
E o que Iracema mostrou, porém, foi um
registro que era tudo menos pacífico. A agressividade
da câmera, a intempestividade da atuação
de Pereio, a hostilidade do ambiente, a promiscuidade
da vida na estrada, as queimadas filmadas com um sentido
de denúncia e também com uma perversa
sedução estética pela destruição,
a recusa a qualquer teleologia incrustada naquela estrada
inacabada, símbolo ao mesmo tempo de um projeto
faraônico e de um fracasso de nação:
tudo nos joga para um universo caótico e flamejante.
Uma passagem curiosa do tal documentário é
quando Fernando Meirelles diz que Iracema foi
o filme que o despertou para o cinema: quem não
se lembra daquela conversa sobre a verdade das atuações
e dos diálogos em Cidade de Deus, não
raro tornada pedra angular dos discursos a favor do
filme? Iracema de fato inunda a tela com uma
espontaneidade da fala e uma liberdade de expressão
do corpo que fazem inveja a muito documentarista. A
própria mise en scène quer ser
coloquial. Em boa parte, o filme fabrica uma nova embalagem
para um mesmo fetiche do real que era alimentado pela
crítica e por alguns cineastas. Os ingredientes
são conhecidos: câmera na mão, inclusão
de atores não-profissionais, som direto, nada
de maquiar o espaço. Se há um clichê
de argumentação sobre o filme, aliás,
é o de sua fusão bem-sucedida entre ficção
e documentário. Mas Iracema não
respondia a quem cobrava o real de uma "construção
nacional" (horizonte identitário que parece
desbotado desde a origem), e sim surpreendia através
do real de um encontro – aquele entre câmera de
cinema e pessoas. O reflexo da realidade cede lugar
à realidade de um reflexo, enfim (lembrar a fórmula
godardiana a esse respeito). Iracema, por um
lado, resolveria todas as questões que ficavam
pela metade no cinema novo: o olhar – agora sem os vícios
de culpa ou paternalismo – sobre o outro da classe-média,
o imediatismo do registro como tomada de posição
política, a pura presenciação como
estratégia ficcional contrária ao decoro
dos modos de representação institucionalizados.
E no outro ponto de amarração da sua estrutura,
o que o filme de Bodansky e Senna realizaria a contento
seria justamente uma nova estratégia para entrelaçar
o estilo direto – aqui com uma animalidade nunca antes
alcançada – do cinema idéia-na-cabeça-câmera-na-mão
à vontade de alegoria que perpassava esse mesmo
cinema. Cai uma certa ilusão de objetividade
e também de elaboração conteudista.
O filme vale mais pelo confronto que promove entre o
alegórico-tipológico e as simples zonas
de real que ele intensifica.
O personagem de Pereio, o caminhoneiro Tião Brasil
Grande, é quem melhor mostra como isso funciona:
muito mais próximo de uma figura provocadora,
que a TV depois consagraria, do que de qualquer outro
personagem anterior do cinema brasileiro, ele é
tanto o sujeito que chega para instigar e tentar extrair
reações do entorno, ou seja, figura que
se constrói durante a filmagem, como também
ele é a metáfora de um Brasil que expande
suas fronteiras sócio-econômicas ao passo
que desanda em degradação e exploração,
visão esta que, por sua vez, preexiste ao ato
de filmagem. O resultado consiste em imagens de pregnância
rara, talvez mais marcantes até do que muitos
cânones do cinema novo. Como esquecer o último
plano do filme, com Iracema (Edna de Cássia impressionante,
apesar de não ter seguido carreira de atriz)
berrando palavrões enquanto o caminhão
de Tião se distancia até perder-se na
poeira da estrada? Aquela jovem indiazinha, antes heroína
de um regionalismo romântico, despede-se de nós
ali, suja e desdentada, com uma galocha em uma das pernas,
rindo como se estivesse embriagada. Atrás dela,
o ponto de fuga se acha encoberto pela fumaça
da terra que o caminhão levantou ao passar.
Luiz Carlos Oliveira Jr.
(DVD Videofilmes)
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