IRACEMA – UMA TRANSA AMAZÔNICA
Orlando Senna e Jorge Bodansky, Brasil, 1974

Iracema, que demorou a ser liberado pela censura e acabou sendo um dos filmes-símbolo do cinema brasileiro pré-abertura política, correu diversos riscos mas incrivelmente superou o desgaste teórico que o tempo tenderia a lhe imprimir. Embora uma posição ideológica muitas vezes ameace tomar as rédeas na lista de méritos mais comumente atribuídos ao filme, o contentamento estético sobreviveu aos cacoetes retóricos dos estudos culturais, e sobreviveu à velha mania de, ao tratar do cinema brasileiro, colocar-se o índice nacionalista acima do filme em si, como se o evento cultural (seu potencial de transmissão, de abastecimento "educacional" da população) valesse mais que o produto artístico (a pura e simples experiência que se torna possível a partir e através de uma obra). O documentário – dirigido pelo próprio Bodansky – que vem de extra no DVD, com depoimentos que variam de Ismail Xavier a Fernando Meirelles e Hector Babenco, vez ou outra também reforça essa idéia, meio que aprisionando o filme em formulações teóricas já consagradas. Isso fere mesmo o corolário ético-estilístico mais corrente sobre o filme, ou seja, a noção de uma perturbação do presente que nega, não sem veemência, o didatismo conformado dos filmes históricos pautados na solenidade cenográfica, no "respeito" ao passado brasileiro – logo, na conformação ao presente. Para além de ter ido contra uma postura criativa (típica de classe dominante) e um historicismo incomodamente ornamentais – que o cinema patrocinado pela Embrafilme não cansava de promulgar naquele momento –, contudo, Iracema é um belo filme porque Bodansky e Senna fizeram uma arte do espaço e dos corpos que o atritam. Basicamente isso – e, antes que se cometa uma injustiça com o documentário, as análises e os depoimentos nele contidos dão sim uma idéia interessante das conquistas estéticas e dramatúrgicas mais evidentes no filme.

É bem verdade que Iracema rejeitou todos os pressupostos ideológicos comuns à ficção histórico-lendária convencional, assim como não quis de modo algum se filiar a uma História concebida enquanto acervo de fatos cuja atualização cumpre um efeito apaziguante, anestésico mesmo. Sua contribuição política foi da ordem da provocação e da intervenção. Uma urgência jornalística veio se substituir a toda a fossilização arquivista do cinema oficial. Era a metade dos anos 70 e o governo brasileiro incentivava o gênero histórico, prometendo prioridade no planejamento orçamentário da Embrafilme e até sugerindo temas e abordagens de predileção. Uma pressão político-administrativa, portanto, estimulava o cineasta brasileiro a produzir uma imagem oficialesca da história nacional. Versão da História que se deveria produzir segundo um ponto de vista inequívoco: vultuosa, repleta de heroísmo e pompa e, principalmente, marcada pelo andamento pacífico dos acontecimentos. Os filmes funcionariam como "aulas divertidas" para as massas. Assim recomendava o ministério. E o que Iracema mostrou, porém, foi um registro que era tudo menos pacífico. A agressividade da câmera, a intempestividade da atuação de Pereio, a hostilidade do ambiente, a promiscuidade da vida na estrada, as queimadas filmadas com um sentido de denúncia e também com uma perversa sedução estética pela destruição, a recusa a qualquer teleologia incrustada naquela estrada inacabada, símbolo ao mesmo tempo de um projeto faraônico e de um fracasso de nação: tudo nos joga para um universo caótico e flamejante.

Uma passagem curiosa do tal documentário é quando Fernando Meirelles diz que Iracema foi o filme que o despertou para o cinema: quem não se lembra daquela conversa sobre a verdade das atuações e dos diálogos em Cidade de Deus, não raro tornada pedra angular dos discursos a favor do filme? Iracema de fato inunda a tela com uma espontaneidade da fala e uma liberdade de expressão do corpo que fazem inveja a muito documentarista. A própria mise en scène quer ser coloquial. Em boa parte, o filme fabrica uma nova embalagem para um mesmo fetiche do real que era alimentado pela crítica e por alguns cineastas. Os ingredientes são conhecidos: câmera na mão, inclusão de atores não-profissionais, som direto, nada de maquiar o espaço. Se há um clichê de argumentação sobre o filme, aliás, é o de sua fusão bem-sucedida entre ficção e documentário. Mas Iracema não respondia a quem cobrava o real de uma "construção nacional" (horizonte identitário que parece desbotado desde a origem), e sim surpreendia através do real de um encontro – aquele entre câmera de cinema e pessoas. O reflexo da realidade cede lugar à realidade de um reflexo, enfim (lembrar a fórmula godardiana a esse respeito). Iracema, por um lado, resolveria todas as questões que ficavam pela metade no cinema novo: o olhar – agora sem os vícios de culpa ou paternalismo – sobre o outro da classe-média, o imediatismo do registro como tomada de posição política, a pura presenciação como estratégia ficcional contrária ao decoro dos modos de representação institucionalizados. E no outro ponto de amarração da sua estrutura, o que o filme de Bodansky e Senna realizaria a contento seria justamente uma nova estratégia para entrelaçar o estilo direto – aqui com uma animalidade nunca antes alcançada – do cinema idéia-na-cabeça-câmera-na-mão à vontade de alegoria que perpassava esse mesmo cinema. Cai uma certa ilusão de objetividade e também de elaboração conteudista. O filme vale mais pelo confronto que promove entre o alegórico-tipológico e as simples zonas de real que ele intensifica.

O personagem de Pereio, o caminhoneiro Tião Brasil Grande, é quem melhor mostra como isso funciona: muito mais próximo de uma figura provocadora, que a TV depois consagraria, do que de qualquer outro personagem anterior do cinema brasileiro, ele é tanto o sujeito que chega para instigar e tentar extrair reações do entorno, ou seja, figura que se constrói durante a filmagem, como também ele é a metáfora de um Brasil que expande suas fronteiras sócio-econômicas ao passo que desanda em degradação e exploração, visão esta que, por sua vez, preexiste ao ato de filmagem. O resultado consiste em imagens de pregnância rara, talvez mais marcantes até do que muitos cânones do cinema novo. Como esquecer o último plano do filme, com Iracema (Edna de Cássia impressionante, apesar de não ter seguido carreira de atriz) berrando palavrões enquanto o caminhão de Tião se distancia até perder-se na poeira da estrada? Aquela jovem indiazinha, antes heroína de um regionalismo romântico, despede-se de nós ali, suja e desdentada, com uma galocha em uma das pernas, rindo como se estivesse embriagada. Atrás dela, o ponto de fuga se acha encoberto pela fumaça da terra que o caminhão levantou ao passar.


Luiz Carlos Oliveira Jr.

(DVD Videofilmes)