ANJO DA GUERRA
André Techiné, Les Egarés, França, 2003

Os personagens de André Téchiné parecem estar sempre desgarrados de um contexto maior, buscando alguma espécie de subsistência pelas margens. Esta tendência é bastante literalizada no movimento dos protagonistas de Anjo da Guerra (cujo título original, Les Égarés, quer dizer justamente "os afastados", "os extraviados"): Odile e seus dois filhos, Philippe, de treze anos, e Cathy, de sete, seguem o imenso comboio que ruma para sul pelo campo, após o ataque alemão a Paris em 1940. Dentro de seu carro, eles carregam tudo que lhes resta. O avanço, moderado, é interrompido pelas metralhadoras de Stukas que sobrevoam a região. O desespero toma conta e todos se protegem como podem. Subitamente vemos Philippe sair correndo e um jovem ir atrás dele. A floresta próxima aponta como um abrigo possível. Eles voltam, resgatam Odile e a menina e tomam em disparada esta deriva. 

Toda a ambiência de guerra que víamos se desenhando passa para motivo de fundo, enquanto as relações familiares que vinham sendo delineadas ganham outros contornos pela inserção daquele estrangeiro. O movimento de grua do primeiro plano, que descreve em plano geral a enorme fila de gente avançando numa estrada em meio aos campos dourados de trigo margeados pelo verde forte das florestas subjacentes (é impressionante o belíssimo contraste conseguido por Agnés Godard entre as duas cores, predominantes em toda sua palheta para o filme), e vai se aproximando dela até encontrar o rosto de Odile, já nos indicava o foco no particular a partir de uma contextualização primeira. Mas o que acontece quando acompanhamos os quatro personagens correndo no campo ocre em direção ao abrigo da floresta fechada, é o progressivo abandono de toda referência externa e a centralização nas relações entre os quatro. O rapaz que se junta à família vindo de lugar nenhum imediatamente se apresenta como protetor e empreendedor misterioso. Após uma primeira noite dormida ao relento, Yvan descobre uma mansão abandonada por seus moradores. A prontidão e sagacidade deste estranho, assim como sua imediata familiaridade, causa aproximação (em nós espectadores e nos membros da família), ao mesmo tempo em que desperta desconfiança. 

A decisão de se instalar na casa por falta de opções instaura a convivência comunal-familiar entre os quatro e o filme se detém então na observação das dinâmicas que ali se estabelecem. Philippe faz de tudo para ganhar a confiança de Yvan, presença masculina jovem e ao mesmo tempo adulta, Odile se sente ameaçada pelo rapaz, mas também seduzida, e Cathy regozija-se com a estabilidade e a experiência idílica. Odile vê sua autoridade materna desafiada por Philippe e sua injunção com aquele quase-homem que não se dá a conhecer. Yvan, por sua vez, provê a casa, mas deve alguma obediência àquela mãe. A confusão completa de papéis e comportamentos, a configuração peculiar das relações, que acaba por se estabelecer na vivência de uma situação-limite, aponta para uma complexa rede de sentimentos e ensejos que não podem ser circunscritos à caracterização-modelo que poderíamos esperar destes personagens a partir do que eles carregam de "típico". Como um dos sentidos possíveis do título original sugere, eles "se abismam", como que por perda de referências. A família que perdeu o pai e também todos os seus pertences encontra uma aparente possibilidade de reestruturação (uma casa, um "provedor"), que termina se revelando algo irrealizável de fato. O adolescente autônomo não é filho e não é pai. Não tem passado nem personalidade perscrutáveis. E seu jogo é um misto de agressividade e sedução. 

Nestes enlaços de permissividades e interditos, ao mesmo tempo em que uma certa economia familiar nova é estabelecida, vemos desfuncionalidades tomarem conta. A oscilação comportamental, que abre espaço para gestos de afeto e de repulsa, e o desequilíbrio constante nas relações (que não respeitam mais "protocolos"), que suscita uma apreensão quase permanente, geram um suspense movido por sentimentos e expectativas. Téchiné, no entanto, não os trabalha em termos de interiorização. Temos acesso pela observação ao que anima cada um dos personagens e não somos explicitamente convidados pela narrativa a simpatizar com nenhum deles em especial. Este quase-mapeamento de uma inesperada convivência, que não toma partido nem sugere julgamentos, denota claramente o interesse do cineasta em particularidades das existências dos indivíduos. Em captar químicas "originais", como se estas estivessem acontecendo o tempo todo, espalhadas pelos mais variados cantos, à espera apenas da atenção de uma câmera para se fazerem perceber. E aí está o grande encanto do seu cinema. O que nos chega como uma narrativa simples, de descrição de fatos e atitudes, acaba por desvelar algumas singelezas de comportamentos humanos deveras "comuns". E, nesse discreto deslocamento operado no seio de um cinema preocupado prioritariamente com a narrativa, temos concretas experiências do particular como tudo o que há, como manifestação mais do que "autorizada" do mundo e não como transgressão ou excepcionalidade a contrastar com um "arranjamento oficial" das coisas. 

Quando em Anjo da Guerra dois soldados franceses aportam no refúgio isolado do "grupamento familiar", temos ali a impressão pela primeira vez dentro do filme de nos deparar com uma referência externa que poderia vir reconfigurar uma pretensa "naturalização" daquela situação extra-ordinária. Mas os soldados não chegam a representar nenhum tipo de instância reguladora e acabam por integrar brevemente aquela experiência de exceção - não sem introduzir um novo desequilíbrio, é claro. Robert, o mais velho, traz para a cena a figura do homem feito, pai de família dono da razão, da sensatez e de um senso de ordem. Odile cambaleia e como que nos damos conta junto a ela de um extravio definitivo de sua família da "normalidade", de uma cômoda inserção na sociedade. A irregularidade da guerra, que se anuncia nos flashes silenciosos e em câmera lenta das imagens de arquivo em preto e branco, passará eventualmente, mas talvez sua vida estável e comportada de classe média alta não possa mais ser vislumbrada. Nos perguntamos então se o mesmo não acontece em outros recantos do mundo que a imagem que acompanhamos não foi buscar. E onde estaria, portanto, esse estado de coisas padrão que se anuncia como organizador da vida, a pairar por sobre os indivíduos, já que no universo de Téchiné tudo é comum e simultaneamente não o é; já que tudo para ele é decalcado de narrativas reconhecíveis e formas simples, mas almeja meandros sutis de personagens, para nos enredar em qualquer coisa que diga que vale a pena fazer do cinema um contemplador de vidas. 

O desv(ar)io que Yvan apresenta - a afronta à moral familiar, à moral social, aos bons costumes e à sua própria vida -, exposto aos poucos e "revelado" por completo no final, coloca-o como agente catalisador de um rompimento do que se teria como "estabelecido". Mas como não temos contraposições e apenas seguimos a narrativa, ficamos com a sensação de um olhar multifacetado sobre as situações, que é na verdade a operação que Téchiné empreende de soma infinita de detalhes bastante diversos dos comportamentos de cada um. Ficamos com a impossibilidade de fechar um personagem pela acumulação de cenas em torno dele. Mas ficamos, também, com a sensação de ter conhecido alguém.


Tatiana Monassa

(DVD Europa)