Os
personagens de André Téchiné parecem
estar sempre desgarrados de um contexto maior, buscando
alguma espécie de subsistência pelas margens.
Esta tendência é bastante literalizada
no movimento dos protagonistas de Anjo da Guerra
(cujo título original, Les Égarés,
quer dizer justamente "os afastados", "os
extraviados"): Odile e seus dois filhos, Philippe,
de treze anos, e Cathy, de sete, seguem o imenso comboio
que ruma para sul pelo campo, após o ataque alemão
a Paris em 1940. Dentro de seu carro, eles carregam
tudo que lhes resta. O avanço, moderado, é
interrompido pelas metralhadoras de Stukas que sobrevoam
a região. O desespero toma conta e todos se protegem
como podem. Subitamente vemos Philippe sair correndo
e um jovem ir atrás dele. A floresta próxima
aponta como um abrigo possível. Eles voltam,
resgatam Odile e a menina e tomam em disparada esta
deriva.
Toda a ambiência de guerra que víamos se
desenhando passa para motivo de fundo, enquanto as relações
familiares que vinham sendo delineadas ganham outros
contornos pela inserção daquele estrangeiro.
O movimento de grua do primeiro plano, que descreve
em plano geral a enorme fila de gente avançando
numa estrada em meio aos campos dourados de trigo margeados
pelo verde forte das florestas subjacentes (é
impressionante o belíssimo contraste conseguido
por Agnés Godard entre as duas cores, predominantes
em toda sua palheta para o filme), e vai se aproximando
dela até encontrar o rosto de Odile, já
nos indicava o foco no particular a partir de uma contextualização
primeira. Mas o que acontece quando acompanhamos os
quatro personagens correndo no campo ocre em direção
ao abrigo da floresta fechada, é o progressivo
abandono de toda referência externa e a centralização
nas relações entre os quatro. O rapaz
que se junta à família vindo de lugar
nenhum imediatamente se apresenta como protetor e empreendedor
misterioso. Após uma primeira noite dormida ao
relento, Yvan descobre uma mansão abandonada
por seus moradores. A prontidão e sagacidade
deste estranho, assim como sua imediata familiaridade,
causa aproximação (em nós espectadores
e nos membros da família), ao mesmo tempo em
que desperta desconfiança.
A decisão de se instalar na casa por falta de
opções instaura a convivência comunal-familiar
entre os quatro e o filme se detém então
na observação das dinâmicas que
ali se estabelecem. Philippe faz de tudo para ganhar
a confiança de Yvan, presença masculina
jovem e ao mesmo tempo adulta, Odile se sente ameaçada
pelo rapaz, mas também seduzida, e Cathy regozija-se
com a estabilidade e a experiência idílica.
Odile vê sua autoridade materna desafiada por
Philippe e sua injunção com aquele quase-homem
que não se dá a conhecer. Yvan, por sua
vez, provê a casa, mas deve alguma obediência
àquela mãe. A confusão completa
de papéis e comportamentos, a configuração
peculiar das relações, que acaba por se
estabelecer na vivência de uma situação-limite,
aponta para uma complexa rede de sentimentos e ensejos
que não podem ser circunscritos à caracterização-modelo
que poderíamos esperar destes personagens a partir
do que eles carregam de "típico". Como
um dos sentidos possíveis do título original
sugere, eles "se abismam", como que por perda
de referências. A família que perdeu o
pai e também todos os seus pertences encontra
uma aparente possibilidade de reestruturação
(uma casa, um "provedor"), que termina se
revelando algo irrealizável de fato. O adolescente
autônomo não é filho e não
é pai. Não tem passado nem personalidade
perscrutáveis. E seu jogo é um misto de
agressividade e sedução.
Nestes enlaços de permissividades e interditos,
ao mesmo tempo em que uma certa economia familiar nova
é estabelecida, vemos desfuncionalidades tomarem
conta. A oscilação comportamental, que
abre espaço para gestos de afeto e de repulsa,
e o desequilíbrio constante nas relações
(que não respeitam mais "protocolos"),
que suscita uma apreensão quase permanente, geram
um suspense movido por sentimentos e expectativas. Téchiné,
no entanto, não os trabalha em termos de interiorização.
Temos acesso pela observação ao que anima
cada um dos personagens e não somos explicitamente
convidados pela narrativa a simpatizar com nenhum deles
em especial. Este quase-mapeamento de uma inesperada
convivência, que não toma partido nem sugere
julgamentos, denota claramente o interesse do cineasta
em particularidades das existências dos indivíduos.
Em captar químicas "originais", como
se estas estivessem acontecendo o tempo todo, espalhadas
pelos mais variados cantos, à espera apenas da
atenção de uma câmera para se fazerem
perceber. E aí está o grande encanto do
seu cinema. O que nos chega como uma narrativa simples,
de descrição de fatos e atitudes, acaba
por desvelar algumas singelezas de comportamentos humanos
deveras "comuns". E, nesse discreto deslocamento
operado no seio de um cinema preocupado prioritariamente
com a narrativa, temos concretas experiências
do particular como tudo o que há, como manifestação
mais do que "autorizada" do mundo e não
como transgressão ou excepcionalidade a contrastar
com um "arranjamento oficial" das coisas.
Quando em Anjo da Guerra dois soldados franceses
aportam no refúgio isolado do "grupamento
familiar", temos ali a impressão pela primeira
vez dentro do filme de nos deparar com uma referência
externa que poderia vir reconfigurar uma pretensa "naturalização"
daquela situação extra-ordinária.
Mas os soldados não chegam a representar nenhum
tipo de instância reguladora e acabam por integrar
brevemente aquela experiência de exceção
- não sem introduzir um novo desequilíbrio,
é claro. Robert, o mais velho, traz para a cena
a figura do homem feito, pai de família dono
da razão, da sensatez e de um senso de ordem.
Odile cambaleia e como que nos damos conta junto a ela
de um extravio definitivo de sua família da "normalidade",
de uma cômoda inserção na sociedade.
A irregularidade da guerra, que se anuncia nos flashes
silenciosos e em câmera lenta das imagens de arquivo
em preto e branco, passará eventualmente, mas
talvez sua vida estável e comportada de classe
média alta não possa mais ser vislumbrada.
Nos perguntamos então se o mesmo não acontece
em outros recantos do mundo que a imagem que acompanhamos
não foi buscar. E onde estaria, portanto, esse
estado de coisas padrão que se anuncia como organizador
da vida, a pairar por sobre os indivíduos, já
que no universo de Téchiné tudo é
comum e simultaneamente não o é; já
que tudo para ele é decalcado de narrativas reconhecíveis
e formas simples, mas almeja meandros sutis de personagens,
para nos enredar em qualquer coisa que diga que vale
a pena fazer do cinema um contemplador de vidas.
O desv(ar)io que Yvan apresenta - a afronta à
moral familiar, à moral social, aos bons costumes
e à sua própria vida -, exposto aos poucos
e "revelado" por completo no final, coloca-o
como agente catalisador de um rompimento do que se teria
como "estabelecido". Mas como não temos
contraposições e apenas seguimos a narrativa,
ficamos com a sensação de um olhar multifacetado
sobre as situações, que é na verdade
a operação que Téchiné empreende
de soma infinita de detalhes bastante diversos dos comportamentos
de cada um. Ficamos com a impossibilidade de fechar
um personagem pela acumulação de cenas
em torno dele. Mas ficamos, também, com a sensação
de ter conhecido alguém.
Tatiana Monassa
(DVD Europa)
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