AGONIA E GLÓRIA
Samuel Fuller, The Big Red One: The Reconstruction, EUA, 1980-2005

Preferindo denominá-la "The Reconstruction" a assegurar qualquer fidelidade às intenções originais de Samuel Fuller, os responsáveis pela tão aguardada versão estendida de Agonia e Glória não escondem a peculiaridade do projeto. O filme não é propriamente um director’s cut: Fuller não estava vivo para acompanhar a reconstrução do filme e portanto não se pode afirmar que esse era o corte que ele gostaria de ter feito (na época ou hoje). Embora o roteiro original do filme tenha servido de guia para a nova montagem, muita coisa ainda ficou de fora, por motivos técnicos ou mesmo estéticos. E mais: sabe-se lá se Fuller gostaria ou não de incluir no filme todas essas cenas que ficaram de fora na época do lançamento. O aspecto crucial reside na reconstrução digital do filme. Como um documentário que vem de extra no DVD demonstra, várias imagens foram tratadas – nem sempre apenas num sentido de restauração – e a edição de som precisou ser "adaptada" a novos padrões. O que temos, portanto, e aqui não se insinua nenhum demérito, são basicamente duas coisas: primeiro uma versão aproximativa em relação ao que Fuller supostamente desejava do filme na época, e que não conseguiu levar a cabo por questões de pós-produção e de comercialização do filme, e segundo uma versão atualizada, remasterizada. O novo Agonia e Glória é um produto da era digital, uma re-montagem tornada possível por facilidades tecnológicas. Um dado técnico impressionante, por exemplo, é que boa parte da banda sonora estava severamente danificada e várias cenas precisaram de re-sonorização. Outro exemplo significativo sobre o que representa essa reconstrução é o número 1 que aparece na insígnia de Lee Marvin no prólogo do filme. A seqüência é em preto e branco, e embora o roteiro indicasse que este 1 ficasse em vermelho, na época não se fez a colorização. Uma vez que hoje essa é uma técnica relativamente simples, lá está a insígnia com o 1 em vermelho, enquanto todo o resto continua em preto e branco.

Em 1980, após a exibição do filme em Cannes, Serge Daney percebeu que era possível enxergar nas entrelinhas os traços de alguma obra maior, que ali se apresentava incompleta. Hoje, assistindo à versão estendida, pensamos estar diante do espectro de um outro filme que na verdade nunca existiu. Se o filme lançado em 1980 não era o que Fuller desejava ter apresentado, este aqui tampouco o é. Resta uma obra condenada à eterna dúvida. As cenas adicionadas, todas fascinantes de alguma forma, desmontam o filme anterior sem construir um novo para substituí-lo. Antes havia uma lacuna, um sentimento de que algo ficara de fora, uma percepção de arquitetura elíptica, em suma, havia ausências sensíveis. Agora, estranhamente, o filme inteiro parece a grande desertificação de um mapa sobre o qual se desejava na verdade fazer enxertos para terminar com as zonas vazias – as cenas novas, mas também as antigas, se abismam numa incógnita que no fundo diz respeito à própria natureza de um filme: eternamente sujeito a reconfigurações, desde a intervenção direta na película (cortar e colar ou, mais modernamente, interferir em qualquer local da faixa de imagem-som através das ilhas de edição digitalizadas, sem maiores limitações materiais no processo) até a reinvenção de cenas que deriva da imaginação e da memória falha do espectador. Apesar dos 160 minutos, tive a impressão de ter assistido a um filme sem corpo (só uma pele recobrindo um objeto oco). Pura – velha – questão de ontologia da imagem: as cenas estavam lá, avassaladoras em seu conteúdo, mas a reprodução fantasmática dos planos reconstruídos à sombra da obra original traía a todo instante a palpabilidade do filme. Experiência não mais tátil e direta – como todo filme de Samuel Fuller costuma ser –, e sim espectral e flutuante (e ainda mágica, decerto).

O cineasta que mais vezes filmou os pés de seus personagens fincados no chão – fosse marchando, andando, dançando ou simplesmente repousando – construiu em Agonia e Glória sua obra de maior apelo biográfico e de maior envergadura do ponto de vista da produção e da transformação de seu lançamento em um grande acontecimento (como está sendo agora o da reconstrução). Cineasta dos pés no chão, Fuller transfere seu "espetáculo do mundo físico", já antes trabalhado e retrabalhado, a uma dimensão épica. A Segunda Guerra, grande cenário histórico do século XX, é levada à tela com uma fisicalidade e uma secura descritiva inauditas, sem excluir do filme um amplíssimo alcance de enredo e de encenação. São conhecidas as raízes jornalísticas do cinema de Fuller, o que por si só imprime um ritmo ágil e econômico no registro, mas aqui o dispositivo passeia por um cenário monumental o suficiente para obrigar uma variação da pulsação. Da mesma forma que o filme atinge ápices de ação mais longos e intensos, seus intervalos de descanso também se dilatam. O jogo se enriquece: o épico e o minimalista se sobrepõem. Mesmo uma cena de melodrama, como a morte do menino que o Sargento interpretado por Lee Marvin carrega na corcunda, se produz como decorrência natural do universo bélico, como casualidade do conflito – o que dá um contorno surreal ao evento e só aumenta a crueldade da guerra, tornando esse filme ainda mais contrário ao que ela representa. O que Sam Fuller acha da guerra? "Suja, amoral, sem saudades, sem amigos, assim é a guerra", ele afirma categoricamente (ver Cahiers du Cinéma nΊ 193, setembro/1967). Há uma poética mórbida nisso tudo, como Fuller bem sabe – basta lembrar daquela imagem de um relógio, preso ao pulso de algum soldado morto, sendo banhado pela onda de sangue que a batalha gerou.

Numa seqüência que não conseguiu espaço nem na versão estendida, uma das principais características de Fuller teria em Agonia e Glória sua expressão mais evidente. É conhecida a recorrência em seus filmes de personagens sem estagnação personalística e, sobretudo, que são como duplos complementares: personagens que ocupam posições antagônicas não raro se contaminam e se mostram indiscerníveis. Mudança no interior de um mesmo personagem, espelhamento de personagens, posição social ambígua: há sempre "identidades-em-fluxo". Um jornalista que se mistura ao ambiente de um hospício a ponto dele mesmo se tornar esquizofrênico (Shock Corridor); um policial cuja identidade se associa aos gangsteres (Casa de Bambu); uma prostituta que se torna enfermeira, cuidando de crianças com paralisia infantil, e de uma hora para outra pode parecer o protótipo de "mulher para casar", sua raiva explodindo justamente depois que o noivo pedófilo a ela se compara (O Beijo Amargo). O estudo comparativo entre dois personagens que caminham em sentidos opostos pode criar uma justaposição que Agonia e Glória coloca já na sua primeira parte: quando Griff (Mark Hamill) se mostra atormentado pela guerra e diz que não quer mais assassinar ninguém, o Sargento lhe chama a atenção afirmando que "na guerra você não assassina, apenas mata". Logo depois, o filme corta para uma cena com o exército alemão: aos protestos de um soldado que se assume descrente de Hitler e esbraveja contra os assassinatos cometidos, o sargento Schroeder surge no filme para dizer exatamente a mesma frase de Lee Marvin. A aproximação entre Schroeder e o Sargento (assim se chama o personagem de Marvin, sem um nome próprio, mas apenas com um posto militar) se acentuaria numa cena descartada em que a montagem se interpõe entre eles como um verdadeiro espelho, fazendo com que um pareça se aproximar do outro enquanto caminham, filmados em planos laterais de mesmo enquadramento. O paradoxo é enorme: embora seja o nazismo/fascismo o assunto que mais "preocupa" a obra de Fuller (de Verboten! a Cão Branco), fascismo que pode assumir formas as mais diversas, o inimigo muitas vezes se apresenta bastante abstrato e ambíguo. Em certos filmes, a exemplo de Shock Corridor, nem sabemos se há inimigo, ou onde ele está – ainda que o mundo pareça ameaçado por uma força maléfica incalculável (talvez ela esteja infiltrada em todas as coisas, manifestamente ou não). "Hitler viverá mil anos", diz Schroeder. Hitler, em pessoa, certamente não; mas o nazismo (interior, não-político), este sim continuará sendo a tentação obscura com que os personagens de Fuller devem sempre se confrontar.

Uma outra cena inédita, incluída na reconstrução do filme, é aquela em que os soldados americanos fazem o parto de uma criança francesa, dentro de um tanque de guerra alemão. A cena tinha começado com uma sangrenta troca de tiros entre americanos e alemães, mas depois chega um casal com a mulher grávida já em trabalho de parto. Depois que a criança nasce, vem a voz off de Zab (Robert Carradine, antes de A Vingança dos Nerds, fazendo o personagem mais aparentado ao próprio Fuller – a filha do diretor, presente nos depoimentos que estão nos extras, aposta na tese de que todo o pelotão formava um painel da personalidade do pai). Seu relato é melancólico e irônico ao mesmo tempo: "Ganhamos um monte de medalhas. Não pelo bebê que ajudamos a nascer, mas pelos alemães que matamos".

Apesar das novidades, a seqüência que continua mais impressionante é mesmo a da chegada do pelotão a um campo de concentração na Tchecoslováquia. Quando os soldados abrem uma portinhola e se deparam com presos moribundos, raquíticos, mal-tratados, Fuller, o homem da "câmera fácil", da câmera que desliza sem dificuldade, com gratuidade mesmo ("é em função do poder de emoção do movimento que se ordena a cena" – Luc Moullet no célebre artigo "Sur les brisées de Marlowe", Cahiers du Cinéma nΊ 93, março/1959), exibe uma sucessão de closes estáticos que certamente podem constar numa antologia da história do cinema (é notável como um dos mais americanos dos cineastas americanos rejeita quase que sistematicamente o plano... americano: sua decupagem é uma mestria de close-ups e planos de conjunto). A expressão ocular é o que o filme imprime naquele momento; a reação facial ao holocausto. O próprio Fuller foi um daqueles soldados que, portando uma câmera 16 mm, registrou o terror dos campos de concentração com um olhar absolutamente perdido e estupefato perante tudo que via (algumas dessas imagens estão nos numerosos e preciosos extras do DVD). Um olhar desnudo, incapaz de julgar, pois não conhecia o que via e de qualquer modo não estava preparado para aquilo. Um olhar inocente, antecipatório da moral que o cinema moderno deveria buscar já não mais como inocência, porém como ponto de vista justo. Corpos empilhados uns sobre os outros, ossos carbonizados, valas repletas de cadáveres, rostos desfigurados: imagens que chegavam a adquirir uma força estética que, ao lado das imagens das bombas atômicas sobre o Japão, mudaria a face da produção de imagens no século XX. Foi a queda da inocência não apenas para a tropa que chegava ao local, não apenas para os quatro rapazes comandados pelo Sargento de Agonia e Glória, mas para todo o ocidente que ainda vivia sob algum resquício de pensamento humanista.

Aquela seqüência é o máximo de sensibilidade e de loucura dentro do filme. De um lado, Griff inverte o sentido de seu atordoamento do início e metralha alucinadamente o soldado alemão já abatido à queima-roupa ("matar um inimigo à distância é uma coisa", diz Fuller na entrevista que permeia os extras, "mas estar perto o suficiente para conseguir ver seus olhos, isso muda tudo"). Do outro lado, Lee Marvin carrega no colo o menino que ele acha em meio à fumaça, cena de uma extraordinária candura. Quando o menino morre lentamente, desfalecendo sobre o ombro do Sargento, Fuller atinge o máximo de crueldade e de tristeza que uma guerra pode provocar na sua acepção. Como disse Adrian Martin no texto que consta na seção "Great Directors" do site australiano Senses of Cinema, "nada era mais sentimentalmente sagrado para Fuller do que a infância, e nada mais hediondo do que sua violação". Em Agonia e Glória, é como se a guerra acabasse porque já se tinha atingido o fundo do poço, abaixo daquilo era impossível chegar. O máximo de maldade e absurdo havia se condensado na morte daquela criança. Não havia mais o que acontecer. Para piorar a situação, tudo não passa de um genocídio contratual. "É tudo uma questão de relógio, caneta e papel", resmunga o Sargento, veterano assombrado pelo episódio em que havia matado um soldado alemão poucas horas após o fim oficial da Primeira Guerra. Assinado o armistício, esfaquear o inimigo – mesmo sem estar sabendo do término da guerra – significa cometer assassinato. De uma hora para outra, o estatuto da morte de uma pessoa muda completamente. "A real glória da guerra é sobreviver", esta é a última fala em off de Zab, a frase que define o filme.


Luiz Carlos Oliveira Jr.

(DVD Warner)

 

 







O parto em meio à guerra (uma das cenas
inéditas da reconstrução de Agonia e Glória)


"...o máximo de crueldade e de tristeza
que uma guerra pode provocar"