Preferindo denominá-la "The Reconstruction"
a assegurar qualquer fidelidade às intenções
originais de Samuel Fuller, os responsáveis pela
tão aguardada versão estendida de Agonia
e Glória não escondem a peculiaridade
do projeto. O filme não é propriamente
um directors cut: Fuller não estava vivo
para acompanhar a reconstrução do filme
e portanto não se pode afirmar que esse era o
corte que ele gostaria de ter feito (na época
ou hoje). Embora o roteiro original do filme tenha servido
de guia para a nova montagem, muita coisa ainda ficou
de fora, por motivos técnicos ou mesmo estéticos.
E mais: sabe-se lá se Fuller gostaria ou não
de incluir no filme todas essas cenas que ficaram de
fora na época do lançamento. O aspecto
crucial reside na reconstrução digital
do filme. Como um documentário que vem de extra
no DVD demonstra, várias imagens foram tratadas
nem sempre apenas num sentido de restauração
e a edição de som precisou ser "adaptada"
a novos padrões. O que temos, portanto, e aqui
não se insinua nenhum demérito, são
basicamente duas coisas: primeiro uma versão
aproximativa em relação ao que Fuller
supostamente desejava do filme na época, e que
não conseguiu levar a cabo por questões
de pós-produção e de comercialização
do filme, e segundo uma versão atualizada, remasterizada.
O novo Agonia e Glória é um produto
da era digital, uma re-montagem tornada possível
por facilidades tecnológicas. Um dado técnico
impressionante, por exemplo, é que boa parte
da banda sonora estava severamente danificada e várias
cenas precisaram de re-sonorização. Outro
exemplo significativo sobre o que representa essa reconstrução
é o número 1 que aparece na insígnia
de Lee Marvin no prólogo do filme. A seqüência
é em preto e branco, e embora o roteiro indicasse
que este 1 ficasse em vermelho, na época não
se fez a colorização. Uma vez que hoje
essa é uma técnica relativamente simples,
lá está a insígnia com o 1 em vermelho,
enquanto todo o resto continua em preto e branco.
Em 1980, após a exibição do filme
em Cannes, Serge Daney percebeu que era possível
enxergar nas entrelinhas os traços de alguma
obra maior, que ali se apresentava incompleta. Hoje,
assistindo à versão estendida, pensamos
estar diante do espectro de um outro filme que na verdade
nunca existiu. Se o filme lançado em 1980 não
era o que Fuller desejava ter apresentado, este aqui
tampouco o é. Resta uma obra condenada à
eterna dúvida. As cenas adicionadas, todas fascinantes
de alguma forma, desmontam o filme anterior sem construir
um novo para substituí-lo. Antes havia uma lacuna,
um sentimento de que algo ficara de fora, uma percepção
de arquitetura elíptica, em suma, havia ausências
sensíveis. Agora, estranhamente, o filme inteiro
parece a grande desertificação de um mapa
sobre o qual se desejava na verdade fazer enxertos para
terminar com as zonas vazias as cenas novas, mas também
as antigas, se abismam numa incógnita que no
fundo diz respeito à própria natureza
de um filme: eternamente sujeito a reconfigurações,
desde a intervenção direta na película
(cortar e colar ou, mais modernamente, interferir em
qualquer local da faixa de imagem-som através
das ilhas de edição digitalizadas, sem
maiores limitações materiais no processo)
até a reinvenção de cenas que deriva
da imaginação e da memória falha
do espectador. Apesar dos 160 minutos, tive a impressão
de ter assistido a um filme sem corpo (só uma
pele recobrindo um objeto oco). Pura velha questão
de ontologia da imagem: as cenas estavam lá,
avassaladoras em seu conteúdo, mas a reprodução
fantasmática dos planos reconstruídos
à sombra da obra original traía a todo
instante a palpabilidade do filme. Experiência
não mais tátil e direta como todo filme
de Samuel Fuller costuma ser , e sim espectral e flutuante
(e ainda mágica, decerto).
O cineasta que mais vezes filmou os pés de seus
personagens fincados no chão fosse marchando,
andando, dançando ou simplesmente repousando
construiu em Agonia e Glória sua obra
de maior apelo biográfico e de maior envergadura
do ponto de vista da produção e da transformação
de seu lançamento em um grande acontecimento
(como está sendo agora o da reconstrução).
Cineasta dos pés no chão, Fuller transfere
seu "espetáculo do mundo físico",
já antes trabalhado e retrabalhado, a uma dimensão
épica. A Segunda Guerra, grande cenário
histórico do século XX, é levada
à tela com uma fisicalidade e uma secura descritiva
inauditas, sem excluir do filme um amplíssimo
alcance de enredo e de encenação. São
conhecidas as raízes jornalísticas do
cinema de Fuller, o que por si só imprime um
ritmo ágil e econômico no registro, mas
aqui o dispositivo passeia por um cenário monumental
o suficiente para obrigar uma variação
da pulsação. Da mesma forma que o filme
atinge ápices de ação mais longos
e intensos, seus intervalos de descanso também
se dilatam. O jogo se enriquece: o épico e o
minimalista se sobrepõem. Mesmo uma cena de melodrama,
como a morte do menino que o Sargento interpretado por
Lee Marvin carrega na corcunda, se produz como decorrência
natural do universo bélico, como casualidade
do conflito o que dá um contorno surreal ao
evento e só aumenta a crueldade da guerra, tornando
esse filme ainda mais contrário ao que ela representa.
O que Sam Fuller acha da guerra? "Suja, amoral,
sem saudades, sem amigos, assim é a guerra",
ele afirma categoricamente (ver Cahiers du Cinéma
nΊ 193, setembro/1967). Há uma poética
mórbida nisso tudo, como Fuller bem sabe basta
lembrar daquela imagem de um relógio, preso ao
pulso de algum soldado morto, sendo banhado pela onda
de sangue que a batalha gerou.
Numa seqüência que não conseguiu espaço
nem na versão estendida, uma das principais características
de Fuller teria em Agonia e Glória sua
expressão mais evidente. É conhecida a
recorrência em seus filmes de personagens sem
estagnação personalística e, sobretudo,
que são como duplos complementares: personagens
que ocupam posições antagônicas
não raro se contaminam e se mostram indiscerníveis.
Mudança no interior de um mesmo personagem, espelhamento
de personagens, posição social ambígua:
há sempre "identidades-em-fluxo". Um
jornalista que se mistura ao ambiente de um hospício
a ponto dele mesmo se tornar esquizofrênico (Shock
Corridor); um policial cuja identidade se associa
aos gangsteres (Casa de Bambu); uma prostituta
que se torna enfermeira, cuidando de crianças
com paralisia infantil, e de uma hora para outra pode
parecer o protótipo de "mulher para casar",
sua raiva explodindo justamente depois que o noivo pedófilo
a ela se compara (O Beijo Amargo). O estudo
comparativo entre dois personagens que caminham em sentidos
opostos pode criar uma justaposição que
Agonia e Glória coloca já na sua
primeira parte: quando Griff (Mark Hamill) se mostra
atormentado pela guerra e diz que não quer mais
assassinar ninguém, o Sargento lhe chama a atenção
afirmando que "na guerra você não
assassina, apenas mata". Logo depois, o filme corta
para uma cena com o exército alemão: aos
protestos de um soldado que se assume descrente de Hitler
e esbraveja contra os assassinatos cometidos, o sargento
Schroeder surge no filme para dizer exatamente a mesma
frase de Lee Marvin. A aproximação entre
Schroeder e o Sargento (assim se chama o personagem
de Marvin, sem um nome próprio, mas apenas com
um posto militar) se acentuaria numa cena descartada
em que a montagem se interpõe entre eles como
um verdadeiro espelho, fazendo com que um pareça
se aproximar do outro enquanto caminham, filmados em
planos laterais de mesmo enquadramento. O paradoxo é
enorme: embora seja o nazismo/fascismo o assunto que
mais "preocupa" a obra de Fuller (de Verboten!
a Cão Branco), fascismo que pode assumir
formas as mais diversas, o inimigo muitas vezes se apresenta
bastante abstrato e ambíguo. Em certos filmes,
a exemplo de Shock Corridor, nem sabemos se há
inimigo, ou onde ele está ainda que o mundo
pareça ameaçado por uma força maléfica
incalculável (talvez ela esteja infiltrada em
todas as coisas, manifestamente ou não). "Hitler
viverá mil anos", diz Schroeder. Hitler,
em pessoa, certamente não; mas o nazismo (interior,
não-político), este sim continuará
sendo a tentação obscura com que os personagens
de Fuller devem sempre se confrontar.
Uma outra cena inédita, incluída na reconstrução
do filme, é aquela em que os soldados americanos
fazem o parto de uma criança francesa, dentro
de um tanque de guerra alemão. A cena tinha começado
com uma sangrenta troca de tiros entre americanos e
alemães, mas depois chega um casal com a mulher
grávida já em trabalho de parto. Depois
que a criança nasce, vem a voz off de
Zab (Robert Carradine, antes de A Vingança
dos Nerds, fazendo o personagem mais aparentado
ao próprio Fuller a filha do diretor, presente
nos depoimentos que estão nos extras, aposta
na tese de que todo o pelotão formava um painel
da personalidade do pai). Seu relato é melancólico
e irônico ao mesmo tempo: "Ganhamos um monte
de medalhas. Não pelo bebê que ajudamos
a nascer, mas pelos alemães que matamos".
Apesar das novidades, a seqüência que continua
mais impressionante é mesmo a da chegada do pelotão
a um campo de concentração na Tchecoslováquia.
Quando os soldados abrem uma portinhola e se deparam
com presos moribundos, raquíticos, mal-tratados,
Fuller, o homem da "câmera fácil",
da câmera que desliza sem dificuldade, com gratuidade
mesmo ("é em função do poder
de emoção do movimento que se ordena a
cena" Luc Moullet no célebre artigo "Sur
les brisées de Marlowe", Cahiers du Cinéma
nΊ 93, março/1959), exibe uma sucessão
de closes estáticos que certamente podem constar
numa antologia da história do cinema (é
notável como um dos mais americanos dos cineastas
americanos rejeita quase que sistematicamente o plano...
americano: sua decupagem é uma mestria de close-ups
e planos de conjunto). A expressão ocular é
o que o filme imprime naquele momento; a reação
facial ao holocausto. O próprio Fuller foi um
daqueles soldados que, portando uma câmera 16
mm, registrou o terror dos campos de concentração
com um olhar absolutamente perdido e estupefato perante
tudo que via (algumas dessas imagens estão nos
numerosos e preciosos extras do DVD). Um olhar desnudo,
incapaz de julgar, pois não conhecia o que via
e de qualquer modo não estava preparado para
aquilo. Um olhar inocente, antecipatório da moral
que o cinema moderno deveria buscar já não
mais como inocência, porém como ponto de
vista justo. Corpos empilhados uns sobre os outros,
ossos carbonizados, valas repletas de cadáveres,
rostos desfigurados: imagens que chegavam a adquirir
uma força estética que, ao lado das imagens
das bombas atômicas sobre o Japão, mudaria
a face da produção de imagens no século
XX. Foi a queda da inocência não apenas
para a tropa que chegava ao local, não apenas
para os quatro rapazes comandados pelo Sargento de Agonia
e Glória, mas para todo o ocidente que ainda
vivia sob algum resquício de pensamento humanista.
Aquela seqüência é o máximo
de sensibilidade e de loucura dentro do filme. De um
lado, Griff inverte o sentido de seu atordoamento do
início e metralha alucinadamente o soldado alemão
já abatido à queima-roupa ("matar
um inimigo à distância é uma coisa",
diz Fuller na entrevista que permeia os extras, "mas
estar perto o suficiente para conseguir ver seus olhos,
isso muda tudo"). Do outro lado, Lee Marvin carrega
no colo o menino que ele acha em meio à fumaça,
cena de uma extraordinária candura. Quando o
menino morre lentamente, desfalecendo sobre o ombro
do Sargento, Fuller atinge o máximo de crueldade
e de tristeza que uma guerra pode provocar na sua acepção.
Como disse Adrian Martin no texto que consta na seção
"Great Directors" do site australiano Senses
of Cinema, "nada era mais sentimentalmente sagrado
para Fuller do que a infância, e nada mais hediondo
do que sua violação". Em Agonia
e Glória, é como se a guerra acabasse
porque já se tinha atingido o fundo do poço,
abaixo daquilo era impossível chegar. O máximo
de maldade e absurdo havia se condensado na morte daquela
criança. Não havia mais o que acontecer.
Para piorar a situação, tudo não
passa de um genocídio contratual. "É
tudo uma questão de relógio, caneta e
papel", resmunga o Sargento, veterano assombrado
pelo episódio em que havia matado um soldado
alemão poucas horas após o fim oficial
da Primeira Guerra. Assinado o armistício, esfaquear
o inimigo mesmo sem estar sabendo do término
da guerra significa cometer assassinato. De uma hora
para outra, o estatuto da morte de uma pessoa muda completamente.
"A real glória da guerra é sobreviver",
esta é a última fala em off de
Zab, a frase que define o filme.
Luiz Carlos Oliveira Jr.
(DVD Warner)
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