PEQUENO GRANDE OLIVEIRA
O Dia do Desespero (1992) e Vale Abraão (1993)

Afinal: quantos Manoel de Oliveira há? Porque, sempre que falamos de uma obra que atravessa mais de sete décadas, por mais que se trate do mesmo realizador e que se possa encontrar nela constantes preocupações, linhas de conexão (sejam elas temáticas, estilísticas, filosóficas) e, porque não dizer, obsessões mesmo, também cabem no seu cinema inúmeros "Manoéis" distintos. E não se trata aqui só de diferenciar o jovem que despretensiosamente monta Douro, Faina Fluvial em cima da sua mesa de bilhar do diretor seguro de uma complexa revisão da História e da mitologia de seu país em um filme como Non. Trata-se de perceber também as enormes diferenças (e complementaridades, porque não?) que separam dois filmes feitos em anos consecutivos, como é o caso de O Dia do Desespero e Vale Abraão.

Filmes distintos, mas interligados já de saída, porque um nasce do atraso na produção do outro: enquanto espera Agustina Bessa-Luis escrever o livro Vale Abraão, curiosamente (como muitas outras coisas na relação entre esses dois) encomendado por ele para que depois possa adaptá-lo no roteiro que dará origem ao seu filme, Manoel de Oliveira acaba realizando O Dia do Desespero. Originalmente tratava-se de um filme curto, onde o diretor revisitaria a casa (tornada um museu) do escritor Camilo Castelo Branco, cuja obra adaptou em Amor de Perdição e que foi personagem de Francisca (filme, aliás, baseado em Agustina - aí estão as tais conexões que não param...) – casa na qual já havia rodado cenas do seu curta Famalicão, no longínquo 1939. Ou seja: não é por acaso que o diretor escolhe este tema, com o qual já possuía enorme familiaridade, para "passar o tempo" enquanto esperava sua colaboradora terminar o trabalho dela.

É fácil entender, dentro deste contexto, porque no livro-entrevista de Antoine de Baecque e Jacques Parsi, Oliveira se refere a O Dia do Desespero como um "filme "menor": trata-se, afinal, de projeto nascido com enorme despretensão, com o cineasta filmando aquele espaço quase mítico, para apenas então trabalhar num roteiro que alinhavasse sua narrativa. Nada mais oposto, portanto, ao que viria a ser Vale Abraão: filme de mais de três horas de duração, autêntico épico familiar passado na região do rio Douro, cujas raízes de projeto ensaiam uma relação com um dos maiores livros da História da Literatura, o Madame Bovary de Flaubert. No entanto, se o próprio Oliveira cria uma divisão hierárquica entre os dois filmes na sua obra, não é esta a impressão que fica de uma revisão de cada um deles: seja no filme-ensaio que é O Dia do Desespero, seja no moderno classicismo do Vale Abraão, o que podemos reconhecer são duas facetas de um artista no ápice do domínio sobre seu meio de expressão, o cinema. São duas obras de igual estatura(a das obras-primas), que passamos agora a analisar em separado.

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Na mesma entrevista em que chama O Dia do Desespero um filme menor, Oliveira também fala de um realizador português que havia chamado o filme de documentário, classificação da qual discorda radicalmente. Pois eu me permito discordar do realizador, sobre sua própria obra, mais uma vez. Na verdade não sou eu quem discorda, é o próprio Oliveira (e lendo algumas de suas entrevistas vemos que ele se contradiz muitas vezes, como aliás qualquer pessoa com um mínimo de bom senso precisa fazer diante da vida): em 2001 ele realiza Porto da Minha Infância que, nos seus próprios créditos, assume-se como um documentário (a entrevista, é importante notar, data de 1996 – diferença de cinco anos que, em anos-Manoel, equivale à obra completa de muitos realizadores). No entanto, são filmes que guardam muitas semelhanças de método, no trabalho com os espaços físicos, com o lugar da memória, com passado e presente. Considero, por isso mesmo, que quem me autoriza a chamar O Dia do Desespero de documentário é o próprio Oliveira – ou pelo menos o Oliveira de 2001.

Claro, bem entendido: trata-se de um documentário oliveiriano, assim como há uma ficção oliveiriana. No mesmo trecho da entrevista, ele nos ajuda um pouco a conceituar o que poderiam ser estas duas categorias. Defendendo o filme como ficção, ele diz: "É verdadeira ficção. Mas sem enganar o espectador". Frase importante para entender e apreciar toda a relação do diretor com a noção mesmo da ficção no cinema. Mais na frente, porém, ele continua: "...não sabemos se ele (Camilo) fez tal movimento com o braço para a direita ou para a esquerda. Mas o que disse, sabemo-lo. É um encaminhamento para a verdade. Uma procura da verdade. A verdade é o fato, a casa, o que Camilo deixou escrito". Curiosamente, Oliveira usa estas frases dentro do mesmo raciocínio das anteriores, para explicitar o filme como ficção. No entanto, elas soam a mim como a teorização de um documentário oliveiriano, que é o que considero que o filme seja. Nos dois, a divisão tênue entre a busca de uma verdade e as barreiras entre ela e a construção do filme, sempre explicitadas.

Claro que a melhor das opções é esquecermos um termo ou outro, e aceitarmos os filmes de Oliveira pelo que são, em sua complexidade. No entanto, me parece útil estabelecer esta distinção apenas por uma questão de método, quiçá de estatuto das imagens, de origem do projeto: esta casa, este museu que está no cerne do nascimento de O Dia do Desespero ("temos a sua casa, seus livros", diz um dos atores – "não basta!", responde o outro) dá ao filme uma sólida relação com um real, com uma existência passada naquele ambiente (que talvez só encontre paralelos na obra de Oliveira no seu filme-testamento inédito de 1981, Visita, que se passa todo na própria casa do diretor). Esta profunda relação com os fatos, com a realidade da vida de algumas pessoas que habitaram este espaço onde o filme se passa (e que se espalha pelo filme através da narração que nos narra passagens da vida de Camilo), é que me leva a considerar o filme geneticamente documental. Seu movimento é o de aproximar-se da realidade de algumas vidas. Mas, claro, isso "não basta".

Me parece mesmo ser a "presença" que o espaço evoca (como de resto, mesmo nas mais completas ficções, Oliveira sempre tenta alcançar na forma como filma as casas) o que compele-o a estabelecer, ainda mais do que em qualquer outro de seus filmes, a separação entre ator e personagem: Mário Barroso e Teresa Madruga viram-se para o espectador e anunciam seus nomes e quais personagens interpretarão naquele filme. A "presença" de Camilo e Ana Plácido naquele espaço parece pedir esta reverência. E é esta casa ainda, protagonista do filme que é, que inspira em Oliveira seguidos jogos de entrada e saída dos personagens em cena: Ana Plácido começa a subir uma escada, mas quem chega no andar de cima é Teresa Madruga; Teresa Madruga olha para Camilo Castelo Branco em sua mesa de escrita; a belíssima cena do abrir e fechar de uma cortina que separa dois ambientes, e que, a cada movimento dela, nos coloca num tempo diferente. Mas a mais forte delas talvez seja aquela em que Mário Barroso "sai" do personagem no meio de um plano, porém a fumaça do charuto que ele fumava interpretando Camilo continua a ser consumida em cinzas.

É este jogo (entre passado e presente, construção e realidade, ficção e documentário), e a maestria sutil com que ele é urdido, que eleva O Dia do Desespero para muito além do patamar de "filme menor". Jogo que, é importante ressaltar, nada tem de frio, de "sacada de linguagem", por um simples motivo: ele é apenas a encarnação da profunda relação de Oliveira com seu personagem, e com as relações entre vida e morte, tema principal aqui, e tão presente na obra dos dois artistas. Finitude e permanência: opostos encarnados na imagem-símbolo do filme (a mesma que estava lá no Famalicão, documentário assumido, vejam só, em 1939): a da cadeira de balanço que continua a balançar já sem o corpo de Camilo, que sobre ela se suicidara. Mas que volta à vida aqui, mais uma vez, pelas mãos de Oliveira.

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Curiosamente, Vale Abraão também termina com um suicídio. E, retrospectivamente, sem dúvida sua personagem principal está tão fadada a esta morte quanto podemos ver o Camilo Castelo Branco de O Dia do Desespero. Ema, mulher com "apetite pelas coisas tristes", flutua através do filme (como a veremos finalmente fazer no belíssimo plano do laranjal, já quase no final), sem de fato conseguir tocar ou ser tocada por nenhum dos personagens à sua volta – especialmente os homens. Ela representa algo de ameaçador para todos que a rodeiam, por tudo que representa com sua beleza, curiosidade, ardor. Ou talvez porque, nas palavras de um dos personagens, "Ema funciona como um homem".

Se esta presença ameaçadora pode ser considerada a principal semelhança com a Bovary de Flaubert (não custa lembrar que Flaubert foi processado na França por ter escrito o livro), Oliveira coloca na boca de sua personagem a complexidade do jogo que sua "adaptação" faz, afinal Ema diz que "nunca percebi porque me chamam de Bovarinha, e já li o livro duas vezes!" Pois na identificação clássica entre autor e objeto (o histórico "Bovary sou eu", de Flaubert), Oliveira complica ainda mais a equação, igualando sua personagem aos homens, enquanto adapta o romance escrito por uma mulher (Agustina Bessa-Luis) a partir do olhar de Flaubert sobre a Bovary original.

O que resulta desta sucessão de recuos de pontos de vista sobre o mundo é aquele que se pode chamar, sem medo, o maior filme de Oliveira. Entenda-se bem que por maior não se quer aqui fazer uma qualificação (afinal, o "melhor filme" será sempre uma escolha profundamente pessoal), nem uma consideração prática (porque O Sapato de Cetim será sempre imbatível na duração, e Non representa uma produção mais ambiciosa). Falamos aqui de uma junção de todos estes conceitos com um que é um tanto mais fluido, mas perceptível: o que vemos em Vale Abraão é quase que uma prova de força de um cineasta no seu ápice. Pois, ao lidar neste trabalho com uma herança do peso canônico de um Madame Bovary, sentimos em Oliveira a intenção de realizar um equivalente cinematográfico deste. Por isso mesmo, seu filme é daquele tipo do qual se pode dizer que "já nasceu clássico".

Clássico, no caso, em várias das acepções do termo, a começar pela própria referência à linguagem cinematográfica. Vale Abraão talvez seja o filme de Oliveira que mais se aproxima de utilizar eminentemente uma linguagem clássica do cinema, apropriando para si uma série de procedimentos narrativos e dramatúrgicos típicos desta. É como se Oliveira quisesse, com o filme, provar a todos os críticos de seus trabalhos (principalmente em Portugal, onde são inúmeros) que ele poderia ser um dos maiores cineastas do mundo em qualquer registro narrativo – mesmo que ele realize este intento sem abrir mão de seus interesses temáticos, filosóficos, e até mesmo alguns procedimentos de linguagem (para escolher um exemplo, aqui também há os personagens que se dirigem diretamente à câmera). Para além disso, porém, impressiona no filme a auto-consciência da grandiosidade de seu intento. Vale Abraão é um filme de proporções épicas, talvez ainda mais do que o Non. Já anuncia isso no seu começo, com os planos abertos da magnífica paisagem do Rio Douro, enquanto o narrador (instância que também atravessa o filme de uma solenidade acachapante) começa com um texto que parte das raízes históricas do nome e dos personagens, para só então introduzi-los. Depois, mantém esta forma através das elipses temporais que o vão tornando cada vez mais abrangente no alcance da dimensão "maior-que-a-vida" que sua personagem principal vai tomando no curso da sua vida – e, neste processo, opera o milagre dos épicos que parecem conter na história de alguns personagens a história de toda a humanidade, e, por conseqüência, a de cada um de nós.

Nem por isso deixa de surpreender o domínio de Oliveira dos três elementos em cuja união ele sempre enxergou a essência do cinema: imagem, palavra, som (aí incluído a música) e atores. A fusão destes, que gera constantes maravilhamentos em vários de seus filmes, não se dá de forma mais arrebatadora do que neste filme. Usando como trilha musical duas versões do Clair de lune (de Debussy e Beethoven), Oliveira opera um incessante jogo entre sua composição de imagens (onde vários momentos são notáveis por si só, como o encontro de Ema e suas tias, a noite com Carlos no quarto, o acender do cigarro de Ema no de Lumiares, a composição teatral do velório de sua tia, etc) e a narração – cheio de antecipações, repetições, transposições – onde nunca cada uma delas deixa de existir em sua especificidade enunciativa (visual ou de palavras).

Mas, não se pode falar de Vale Abraão sem seus atores, e principalmente sem falar de Leonor Silveira. Se ela pode ser considerada uma das maiores atrizes do cinema mundial, é sem dúvida Vale Abraão que confirma isso para além de qualquer dúvida. De fato, sua interpretação (onde incorporação talvez pareça um termo mais adequado) neste filme, se fosse sua única, já bastaria para justificar o superlativo acima. De uma presença física tão impressionante quanto sutil, Leonor Silveira consegue ser todas as mulheres (e homens, porque não?) que sua Ema precisa ser ao longo do filme. Casta, devassa, maliciosa, enciumada, sofisticada, simples, impossível de definir, em suma. E é por conseguir ser indefinível, portanto impossível de ser categorizada e "domada", que ela precisa se sacrificar ao final do filme. Sua Ema não é deste mundo – assim como muitas vezes Leonor não parece ser. E, talvez, assim também seja o cinema de Manoel de Oliveira que, no entanto (e para nossa sorte), não precisou ser sacrificado.

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Da experiência de ver estes dois filmes em seqüência, o que nos chama a atenção é mesmo a sempre surpreendente mistura de maturidade (de linguagem, de visão) e inquietação (idem) que marca a obra de Oliveira. Dois filmes tão distintos, dois autênticos mergulhos nos limites e possibilidades da linguagem cinematográfica, duas articulações de temas tão incrivelmente complexos, resolvidos com uma simplicidade comovente. No microcosmo de dois anos numa carreira tão longeva, os dois filmes bastariam para comprovar o alcance da obra de um cineasta que sabe alternar tão delicadamente o seu registro entre um pequeno e um grande filme – ambos, absolutamente maiores.


Eduardo Valente

 

 


Mário Barroso como Camilo Castelo Branco
em O Dia do Desespero (1992)


Leonor Silveira como Ema "Bovarinha" em Vale Abraão (1993)