Afinal:
quantos Manoel de Oliveira há? Porque, sempre
que falamos de uma obra que atravessa mais de sete décadas,
por mais que se trate do mesmo realizador e que se possa
encontrar nela constantes preocupações,
linhas de conexão (sejam elas temáticas,
estilísticas, filosóficas) e, porque não
dizer, obsessões mesmo, também cabem no
seu cinema inúmeros "Manoéis"
distintos. E não se trata aqui só de diferenciar
o jovem que despretensiosamente monta Douro, Faina
Fluvial em cima da sua mesa de bilhar do diretor
seguro de uma complexa revisão da História
e da mitologia de seu país em um filme como Non.
Trata-se de perceber também as enormes diferenças
(e complementaridades, porque não?) que separam
dois filmes feitos em anos consecutivos, como é
o caso de O Dia do Desespero e Vale Abraão.
Filmes distintos, mas interligados já de saída,
porque um nasce do atraso na produção
do outro: enquanto espera Agustina Bessa-Luis escrever
o livro Vale Abraão, curiosamente (como
muitas outras coisas na relação entre
esses dois) encomendado por ele para que depois possa
adaptá-lo no roteiro que dará origem ao
seu filme, Manoel de Oliveira acaba realizando O
Dia do Desespero. Originalmente tratava-se de um
filme curto, onde o diretor revisitaria a casa (tornada
um museu) do escritor Camilo Castelo Branco, cuja obra
adaptou em Amor de Perdição e que
foi personagem de Francisca (filme, aliás,
baseado em Agustina - aí estão as tais
conexões que não param...) – casa na qual
já havia rodado cenas do seu curta Famalicão,
no longínquo 1939. Ou seja: não é
por acaso que o diretor escolhe este tema, com o qual
já possuía enorme familiaridade, para
"passar o tempo" enquanto esperava sua colaboradora
terminar o trabalho dela.
É fácil entender, dentro deste contexto,
porque no livro-entrevista de Antoine de Baecque e Jacques
Parsi, Oliveira se refere a O Dia do Desespero
como um "filme "menor": trata-se, afinal,
de projeto nascido com enorme despretensão, com
o cineasta filmando aquele espaço quase mítico,
para apenas então trabalhar num roteiro que alinhavasse
sua narrativa. Nada mais oposto, portanto, ao que viria
a ser Vale Abraão: filme de mais de três
horas de duração, autêntico épico
familiar passado na região do rio Douro, cujas
raízes de projeto ensaiam uma relação
com um dos maiores livros da História da Literatura,
o Madame Bovary de Flaubert. No entanto, se o
próprio Oliveira cria uma divisão hierárquica
entre os dois filmes na sua obra, não é
esta a impressão que fica de uma revisão
de cada um deles: seja no filme-ensaio que é
O Dia do Desespero, seja no moderno classicismo
do Vale Abraão, o que podemos reconhecer
são duas facetas de um artista no ápice
do domínio sobre seu meio de expressão,
o cinema. São duas obras de igual estatura(a
das obras-primas), que passamos agora a analisar em
separado.
* * *
Na mesma entrevista em que chama O Dia do Desespero
um filme menor, Oliveira também fala de um realizador
português que havia chamado o filme de documentário,
classificação da qual discorda radicalmente.
Pois eu me permito discordar do realizador, sobre sua
própria obra, mais uma vez. Na verdade não
sou eu quem discorda, é o próprio Oliveira
(e lendo algumas de suas entrevistas vemos que ele se
contradiz muitas vezes, como aliás qualquer pessoa
com um mínimo de bom senso precisa fazer diante
da vida): em 2001 ele realiza Porto da Minha Infância
que, nos seus próprios créditos, assume-se
como um documentário (a entrevista, é
importante notar, data de 1996 – diferença de
cinco anos que, em anos-Manoel, equivale à obra
completa de muitos realizadores). No entanto, são
filmes que guardam muitas semelhanças de método,
no trabalho com os espaços físicos, com
o lugar da memória, com passado e presente. Considero,
por isso mesmo, que quem me autoriza a chamar O Dia
do Desespero de documentário é o próprio
Oliveira – ou pelo menos o Oliveira de 2001.
Claro, bem entendido: trata-se de um documentário
oliveiriano, assim como há uma ficção
oliveiriana. No mesmo trecho da entrevista, ele
nos ajuda um pouco a conceituar o que poderiam ser estas
duas categorias. Defendendo o filme como ficção,
ele diz: "É verdadeira ficção.
Mas sem enganar o espectador". Frase importante
para entender e apreciar toda a relação
do diretor com a noção mesmo da ficção
no cinema. Mais na frente, porém, ele continua:
"...não sabemos se ele (Camilo) fez tal
movimento com o braço para a direita ou para
a esquerda. Mas o que disse, sabemo-lo. É um
encaminhamento para a verdade. Uma procura da verdade.
A verdade é o fato, a casa, o que Camilo deixou
escrito". Curiosamente, Oliveira usa estas frases
dentro do mesmo raciocínio das anteriores, para
explicitar o filme como ficção. No entanto,
elas soam a mim como a teorização de um
documentário oliveiriano, que é
o que considero que o filme seja. Nos dois, a divisão
tênue entre a busca de uma verdade e as barreiras
entre ela e a construção do filme, sempre
explicitadas.
Claro que a melhor das opções é
esquecermos um termo ou outro, e aceitarmos os filmes
de Oliveira pelo que são, em sua complexidade.
No entanto, me parece útil estabelecer esta distinção
apenas por uma questão de método, quiçá
de estatuto das imagens, de origem do projeto: esta
casa, este museu que está no cerne do nascimento
de O Dia do Desespero ("temos a sua casa,
seus livros", diz um dos atores – "não
basta!", responde o outro) dá ao filme uma
sólida relação com um real, com
uma existência passada naquele ambiente (que talvez
só encontre paralelos na obra de Oliveira no
seu filme-testamento inédito de 1981, Visita,
que se passa todo na própria casa do diretor).
Esta profunda relação com os fatos, com
a realidade da vida de algumas pessoas que habitaram
este espaço onde o filme se passa (e que se espalha
pelo filme através da narração
que nos narra passagens da vida de Camilo), é
que me leva a considerar o filme geneticamente documental.
Seu movimento é o de aproximar-se da realidade
de algumas vidas. Mas, claro, isso "não
basta".
Me parece mesmo ser a "presença" que
o espaço evoca (como de resto, mesmo nas mais
completas ficções, Oliveira sempre tenta
alcançar na forma como filma as casas) o que
compele-o a estabelecer, ainda mais do que em qualquer
outro de seus filmes, a separação entre
ator e personagem: Mário Barroso e Teresa Madruga
viram-se para o espectador e anunciam seus nomes e quais
personagens interpretarão naquele filme. A "presença"
de Camilo e Ana Plácido naquele espaço
parece pedir esta reverência. E é esta
casa ainda, protagonista do filme que é, que
inspira em Oliveira seguidos jogos de entrada e saída
dos personagens em cena: Ana Plácido começa
a subir uma escada, mas quem chega no andar de cima
é Teresa Madruga; Teresa Madruga olha para Camilo
Castelo Branco em sua mesa de escrita; a belíssima
cena do abrir e fechar de uma cortina que separa dois
ambientes, e que, a cada movimento dela, nos coloca
num tempo diferente. Mas a mais forte delas talvez seja
aquela em que Mário Barroso "sai" do
personagem no meio de um plano, porém a fumaça
do charuto que ele fumava interpretando Camilo continua
a ser consumida em cinzas.
É este jogo (entre passado e presente, construção
e realidade, ficção e documentário),
e a maestria sutil com que ele é urdido, que
eleva O Dia do Desespero para muito além
do patamar de "filme menor". Jogo que, é
importante ressaltar, nada tem de frio, de "sacada
de linguagem", por um simples motivo: ele é
apenas a encarnação da profunda relação
de Oliveira com seu personagem, e com as relações
entre vida e morte, tema principal aqui, e tão
presente na obra dos dois artistas. Finitude e permanência:
opostos encarnados na imagem-símbolo do filme
(a mesma que estava lá no Famalicão,
documentário assumido, vejam só, em 1939):
a da cadeira de balanço que continua a balançar
já sem o corpo de Camilo, que sobre ela se suicidara.
Mas que volta à vida aqui, mais uma vez, pelas
mãos de Oliveira.
* * *
Curiosamente, Vale Abraão também
termina com um suicídio. E, retrospectivamente,
sem dúvida sua personagem principal está
tão fadada a esta morte quanto podemos ver o
Camilo Castelo Branco de O Dia do Desespero.
Ema, mulher com "apetite pelas coisas tristes",
flutua através do filme (como a veremos finalmente
fazer no belíssimo plano do laranjal, já
quase no final), sem de fato conseguir tocar ou ser
tocada por nenhum dos personagens à sua volta
– especialmente os homens. Ela representa algo de ameaçador
para todos que a rodeiam, por tudo que representa com
sua beleza, curiosidade, ardor. Ou talvez porque, nas
palavras de um dos personagens, "Ema funciona como
um homem".
Se esta presença ameaçadora pode ser considerada
a principal semelhança com a Bovary de Flaubert
(não custa lembrar que Flaubert foi processado
na França por ter escrito o livro), Oliveira
coloca na boca de sua personagem a complexidade do jogo
que sua "adaptação" faz, afinal
Ema diz que "nunca percebi porque me chamam de
Bovarinha, e já li o livro duas vezes!"
Pois na identificação clássica
entre autor e objeto (o histórico "Bovary
sou eu", de Flaubert), Oliveira complica ainda
mais a equação, igualando sua personagem
aos homens, enquanto adapta o romance escrito por uma
mulher (Agustina Bessa-Luis) a partir do olhar de Flaubert
sobre a Bovary original.
O que resulta desta sucessão de recuos de pontos
de vista sobre o mundo é aquele que se pode chamar,
sem medo, o maior filme de Oliveira. Entenda-se bem
que por maior não se quer aqui fazer uma qualificação
(afinal, o "melhor filme" será sempre
uma escolha profundamente pessoal), nem uma consideração
prática (porque O Sapato de Cetim será
sempre imbatível na duração, e
Non representa uma produção mais
ambiciosa). Falamos aqui de uma junção
de todos estes conceitos com um que é um tanto
mais fluido, mas perceptível: o que vemos em
Vale Abraão é quase que uma prova
de força de um cineasta no seu ápice.
Pois, ao lidar neste trabalho com uma herança
do peso canônico de um Madame Bovary, sentimos
em Oliveira a intenção de realizar um
equivalente cinematográfico deste. Por isso mesmo,
seu filme é daquele tipo do qual se pode dizer
que "já nasceu clássico".
Clássico, no caso, em várias das acepções
do termo, a começar pela própria referência
à linguagem cinematográfica. Vale Abraão
talvez seja o filme de Oliveira que mais se aproxima
de utilizar eminentemente uma linguagem clássica
do cinema, apropriando para si uma série de procedimentos
narrativos e dramatúrgicos típicos desta.
É como se Oliveira quisesse, com o filme, provar
a todos os críticos de seus trabalhos (principalmente
em Portugal, onde são inúmeros) que ele
poderia ser um dos maiores cineastas do mundo em qualquer
registro narrativo – mesmo que ele realize este intento
sem abrir mão de seus interesses temáticos,
filosóficos, e até mesmo alguns procedimentos
de linguagem (para escolher um exemplo, aqui também
há os personagens que se dirigem diretamente
à câmera). Para além disso, porém,
impressiona no filme a auto-consciência da grandiosidade
de seu intento. Vale Abraão é um
filme de proporções épicas, talvez
ainda mais do que o Non. Já anuncia isso
no seu começo, com os planos abertos da magnífica
paisagem do Rio Douro, enquanto o narrador (instância
que também atravessa o filme de uma solenidade
acachapante) começa com um texto que parte das
raízes históricas do nome e dos personagens,
para só então introduzi-los. Depois, mantém
esta forma através das elipses temporais que
o vão tornando cada vez mais abrangente no alcance
da dimensão "maior-que-a-vida" que
sua personagem principal vai tomando no curso da sua
vida – e, neste processo, opera o milagre dos épicos
que parecem conter na história de alguns personagens
a história de toda a humanidade, e, por conseqüência,
a de cada um de nós.
Nem por isso deixa de surpreender o domínio de
Oliveira dos três elementos em cuja união
ele sempre enxergou a essência do cinema: imagem,
palavra, som (aí incluído a música)
e atores. A fusão destes, que gera constantes
maravilhamentos em vários de seus filmes, não
se dá de forma mais arrebatadora do que neste
filme. Usando como trilha musical duas versões
do Clair de lune (de Debussy e Beethoven), Oliveira
opera um incessante jogo entre sua composição
de imagens (onde vários momentos são notáveis
por si só, como o encontro de Ema e suas tias,
a noite com Carlos no quarto, o acender do cigarro de
Ema no de Lumiares, a composição teatral
do velório de sua tia, etc) e a narração
– cheio de antecipações, repetições,
transposições – onde nunca cada uma delas
deixa de existir em sua especificidade enunciativa (visual
ou de palavras).
Mas, não se pode falar de Vale Abraão
sem seus atores, e principalmente sem falar de Leonor
Silveira. Se ela pode ser considerada uma das maiores
atrizes do cinema mundial, é sem dúvida
Vale Abraão que confirma isso para além
de qualquer dúvida. De fato, sua interpretação
(onde incorporação talvez pareça
um termo mais adequado) neste filme, se fosse sua única,
já bastaria para justificar o superlativo acima.
De uma presença física tão impressionante
quanto sutil, Leonor Silveira consegue ser todas as
mulheres (e homens, porque não?) que sua Ema
precisa ser ao longo do filme. Casta, devassa, maliciosa,
enciumada, sofisticada, simples, impossível de
definir, em suma. E é por conseguir ser indefinível,
portanto impossível de ser categorizada e "domada",
que ela precisa se sacrificar ao final do filme. Sua
Ema não é deste mundo – assim como muitas
vezes Leonor não parece ser. E, talvez, assim
também seja o cinema de Manoel de Oliveira que,
no entanto (e para nossa sorte), não precisou
ser sacrificado.
***
Da experiência de ver estes dois filmes em seqüência,
o que nos chama a atenção é mesmo
a sempre surpreendente mistura de maturidade (de linguagem,
de visão) e inquietação (idem)
que marca a obra de Oliveira. Dois filmes tão
distintos, dois autênticos mergulhos nos limites
e possibilidades da linguagem cinematográfica,
duas articulações de temas tão
incrivelmente complexos, resolvidos com uma simplicidade
comovente. No microcosmo de dois anos numa carreira
tão longeva, os dois filmes bastariam para comprovar
o alcance da obra de um cineasta que sabe alternar tão
delicadamente o seu registro entre um pequeno e um grande
filme – ambos, absolutamente maiores.
Eduardo Valente
|