AS CRÔNICAS DE NÁRNIA: O LEÃO, A FEITICEIRA E O GUARDA-ROUPA
Andrew Adamson, the Chronicles of Narnia: The Lion, the Sorcerer and the Wardrobe, EUA, 2005

A impossibilidade da ação heróica como eixo da narrativa contemporânea aparece aqui em As Crônicas de Nárnia como exercício de fuga pela fabulação. As metáforas diretas que contrapõem a impotência dos protagonistas diante dos eventos da 2ª Guerra com a narrativa épica do mundo de Nárnia dão ao filme, assim, um lugar interessante como sintoma da insurgência que um certo cinema de aventura e fantasia dos EUA (vide O Senhor Dos Anéis, o retorno da saga Star Wars e a profusão de filmes de super-heróis) parece ter assumido para si como gesto de afirmação de uma imagem submetida à ação positiva dos corpos presentes.

Essa tentativa de (re)encontrar a ação/o ato como eixo da narrativa aparece nessa linhagem de filme associada diretamente a um universo de fabulação – geralmente filmado/encenado com o naturalismo dos filmes épicos históricos que marcaram uma certa Hollywood em crise aberta no final dos anos 50. Esse naturalismo tende a eleger como seus protagonistas, figuras associadas à infância/juventude (Harry Poter está aí na cabeça da lista) ou a ingenuidade como forma de desenhar a ação (e aqui se entenda como ação física) como gesto de coragem e bravura inconseqüente e, como nos lembra o bordão do homem-aranha, um "dever" do qual não se pode fugir. Esse belicismo, associado a um arsenal de figuras fabulares/irreais, desenham esses filmes como obras de mitologia atemporal e não-localizada, fazendo de sua moral uma moral universalizada e absoluta em que o discurso direto dos contos de fada se mescla à narrativa da guerra, do surgimento de líderes para a vitória. Uma suposta coragem/nobreza para se tomar a liderança é, então, associada na narrativa de Nárnia a um sentido de humanidade ("os filhos de Adão") que surge no território encantado como sinal carismático para a ordenação de uma horda multi-racial e dividida. Não é difícil ver na imagem dos irmãos branquelos e singelos o lugar do reinado dos EUA (a jovem potência dos anos 40) e de sua "chegada" à 2ª Guerra (o texto original é assumidamente uma ode simbolista a vitória do bem ocidental contra a liderança nazista), com o Rei Leão da vez representando um Churchill/Inglaterra que se retira para o reinado yankee.

Essa maçaroca de simbolismos e de diretrizes morais encontra em Nárnia, então, um objeto que ao mesmo tempo reage à apatia reflexiva clichê do abismo contemporâneo mas também a reitera ao fazer da ação possível um mero discurso sobre a liderança centralizada e a "bondade" como sentido unilateral personalizado. Um discurso reacionário – para dizer com todas as letras. Não à toa, o filme é um verdadeiro desastre no campo das atuações individuais (os atores/corpos não sabem como agir para além da "imitação" de atos nobres) e um bizarro prodígio de animação 3D com figuras/símbolos como o Leão e os castores tomando a dramaturgia e o filme em suas patas. Se em Shrek Adamson havia realizado uma paródia bem-feitinha sobre os contos de fada Disney, aqui, precisando trabalhar por dentro de um, digamos, "discurso oficial", deixou clara a sua limitação crítica ao conjunto de sacadas amenas de seu monstro verde. As Crônicas de Nárnia são assim mais um típico e atual produto da indústria de aventuras norte-americana, que pode soar tanto como desastre estéril e boçal, como um objeto privilegiado para se destrinchar o estranho limbo em que a ação, o corpo atuando e o gesto positivo foram colocados num certo "cinema contemporâneo" de manual – seja o manual industrial, seja o do "cinema de arte". Alguns querendo domá-lo como gesto de justiça unilateral (alguém pensou em Ken Loach?), outros querendo driblá-lo como arapuca do dirigismo narrativo.


Felipe Bragança