A
impossibilidade da ação heróica
como eixo da narrativa contemporânea aparece aqui
em As Crônicas de Nárnia como exercício
de fuga pela fabulação. As metáforas
diretas que contrapõem a impotência dos
protagonistas diante dos eventos da 2ª Guerra com a
narrativa épica do mundo de Nárnia dão
ao filme, assim, um lugar interessante como sintoma
da insurgência que um certo cinema de aventura
e fantasia dos EUA (vide O Senhor Dos Anéis,
o retorno da saga Star Wars e a profusão
de filmes de super-heróis) parece ter assumido
para si como gesto de afirmação de uma
imagem submetida à ação positiva
dos corpos presentes.
Essa tentativa de (re)encontrar a ação/o
ato como eixo da narrativa aparece nessa linhagem de
filme associada diretamente a um universo de fabulação
– geralmente filmado/encenado com o naturalismo dos
filmes épicos históricos que marcaram
uma certa Hollywood em crise aberta no final dos anos
50. Esse naturalismo tende a eleger como seus protagonistas,
figuras associadas à infância/juventude
(Harry Poter está aí na cabeça
da lista) ou a ingenuidade como forma de desenhar a
ação (e aqui se entenda como ação
física) como gesto de coragem e bravura inconseqüente
e, como nos lembra o bordão do homem-aranha,
um "dever" do qual não se pode fugir. Esse belicismo,
associado a um arsenal de figuras fabulares/irreais,
desenham esses filmes como obras de mitologia atemporal
e não-localizada, fazendo de sua moral uma moral
universalizada e absoluta em que o discurso direto dos
contos de fada se mescla à narrativa da guerra,
do surgimento de líderes para a vitória.
Uma suposta coragem/nobreza para se tomar a liderança
é, então, associada na narrativa de Nárnia
a um sentido de humanidade ("os filhos de Adão")
que surge no território encantado como sinal
carismático para a ordenação de
uma horda multi-racial e dividida. Não é
difícil ver na imagem dos irmãos branquelos
e singelos o lugar do reinado dos EUA (a jovem potência
dos anos 40) e de sua "chegada" à 2ª Guerra (o
texto original é assumidamente uma ode simbolista
a vitória do bem ocidental contra a liderança
nazista), com o Rei Leão da vez representando
um Churchill/Inglaterra que se retira para o reinado
yankee.
Essa maçaroca de simbolismos e de diretrizes
morais encontra em Nárnia, então,
um objeto que ao mesmo tempo reage à apatia reflexiva
clichê do abismo contemporâneo mas também
a reitera ao fazer da ação possível
um mero discurso sobre a liderança centralizada
e a "bondade" como sentido unilateral personalizado.
Um discurso reacionário – para dizer com todas
as letras. Não à toa, o filme é
um verdadeiro desastre no campo das atuações
individuais (os atores/corpos não sabem como
agir para além da "imitação" de
atos nobres) e um bizarro prodígio de animação
3D com figuras/símbolos como o Leão e
os castores tomando a dramaturgia e o filme em suas
patas. Se em Shrek Adamson havia realizado uma
paródia bem-feitinha sobre os contos de fada
Disney, aqui, precisando trabalhar por dentro de um,
digamos, "discurso oficial", deixou clara a sua limitação
crítica ao conjunto de sacadas amenas de seu
monstro verde. As Crônicas de Nárnia
são assim mais um típico e atual produto
da indústria de aventuras norte-americana, que
pode soar tanto como desastre estéril e boçal,
como um objeto privilegiado para se destrinchar o estranho
limbo em que a ação, o corpo atuando e
o gesto positivo foram colocados num certo "cinema contemporâneo"
de manual – seja o manual industrial, seja o do "cinema
de arte". Alguns querendo domá-lo como gesto
de justiça unilateral (alguém pensou em
Ken Loach?), outros querendo driblá-lo como arapuca
do dirigismo narrativo.
Felipe Bragança
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