O
mal estar instala-se em um ambiente familiar logo nos
primeiros minutos de Brothers: um irmão,
recém-saído da prisão (a ameaça
à ordem) e outro prestes a ir à guerra
no Afeganistão (a defesa da ordem), chegam a
um almoço com os parentes diretos. Bate-boca.
Tratado quase sempre com maniqueísmo, o pai,
logo percebemos, rejeita o filho com currículo
de instabilidade existencial. A família já
tensa sofre um trauma, potencializador da tensão
inicial. O evento da ruptura é a notícia
da morte militar no solo afegão. Veremos, em
breve, que não morreu; foi feito prisioneiro.
Instala-se o absurdo no mundo de Brothers. Primeiro
com a estranha situação de vermos um dinamarquês,
com ares de aplicado pai de família, arriscar
a vida em uma missão de Estado no Afeganistão.
Segundo porque a falsa notícia da morte dele
e as posteriores imagens de seu cativeiro introduzem
a semente do descarrilamento familiar.
Sua morte promove a aproximação do irmão
fora dos trilhos com a viúva carente e suas duas
filhas. Um irmão substitui o espaço do
outro e, nesse papel, começa a tomar sua linha.
Já a temporada como prisioneiro vai levar o militar
dado como morto a adquirir um trauma manifestado em
forma de culpa agressiva e violenta. Com o retorno do
ausente ao lar, duas linhas de conflito são adicionadas
uma à outra: o ciúme do irmão e
a crise de consciência (por um gesto-limite no
campo de prisioneiros). Brothers não se
furta a promover algumas faíscas dramáticas,
como o nascente desejo entre o irmão encrenqueiro
com a cunhada supostamente viúva, mas não
leva a cabo alguns de seus flertes, sempre em nome de
uma conclusão que, embora seja manifestação
de crise aguda, acena com a possibilidade de reconciliação,
com o irmão da ordem iniciando seu restabelecimento
e o irmão desordeiro terminando educado para
se adaptar às regras.
Essa quase faísca, portanto, parece "a mais"
(talvez porque esteja de menos), seja no processo de
desejo interrompido entre cunhados, seja nos efeitos
de um show de constrangimento à mesa, quando
uma das meninas joga na cara do pai que a mãe
mantém relações sexuais frequentes
com o irmão dele. Nesses momentos, Brothers,
quem sabe se para se atrelar ao segmento mais visível
de sua comunidade cinematográfica nacional (os
Dogmáticos e os filhos do Dogma), olha para Festa
de Família, de Thomas Vintenberg, mas sem
reproduzir a explosão daquele outro, provavelmente
apenas porque não tem a mesma fúria indignada
e ressentida manifestada no filme de Vintenberg.
Os melhores momentos de Brothers, por sinal,
são de natureza oposta à de Festa de
Família. Se a energia da obra de Vintenberg,
acima de tudo, está na representação
de impacto, com câmeras e cortes destinados a
sacudir os sentidos e nos jogar contra a parede, em
Brothers as cenas de maior poder, em termos dramáticos,
são aquelas onde o filme pára, abre mão
de significar e investe na percepção mais
direta, acreditando na força da imagem enquanto
comunicação de sentimentos. O momento
em que a esposa recebe a notícia da morte do
marido, em silêncio, assim como as situações
posteriores, com ela deitada com as filhas também
em silêncio, são exemplos dessa prática
bem sucedida da diretora Susanne Bier.
Toda a dor e a confusão gerada pelo luto, com
misto de recusa à aceitação da
morte e afirmação de abertura para nova
vida, são bem representadas pelos elementos em
quadro (atores, o comportamento sóbrio da câmera,
o tempo dos planos). Bier trabalha mais na extensão
de alguns momentos, sobretudo aqueles em que dispensa
as palavras, do que na composição das
formas dos planos. Isso não significa que, em
determinadas passagens, a funcionalidade dos enquadramentos,
sem perder essa característica, não conviva
com o formalismo – como quando, por exemplo, a diretora
filma a notícia do desmentido da morte na guerra
pelo telefone, com a esposa em quadro e o cunhado brincando
com suas filhas no reflexo da janela, os dois planos
fundidos em um. Nestas passagens, Brothers ergue
a cabeça acima da média de lançamentos
europeus no Brasil, mas não sem uns tantos senões.
Cléber Eduardo
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