O SEGREDO DE BROKEBACK MOUNTAIN
Ang Lee, Brokeback Mountain, EUA, 2005
 

A notícia se espalhou rápido: um western gay levou o Leão de Ouro em Veneza. Isso lembra um episódio que já tem mais de dez anos, quando Sundance – praticamente outro festival, se comparado com esse que hoje premia Quarenta Tons de Azul – consagrou Veneno, de Todd Haynes, e muitos jornais noticiaram que o vencedor era um exemplar do new queer cinema. Quem viu o belíssimo filme de Haynes sabe que o rótulo não se aplica. Da mesma forma, dizer que Brokeback Mountain é um western gay não revela quase nada sobre o filme melancólico e emotivo que Ang Lee dirigiu, e que responde mesmo é a uma pergunta atualmente feita entre uma narrativa deflacionada e outra (A Criança, Batalha no Céu, Flores Partidas, Estrela Solitária), ou entre uma e outra tentativa de aplicar o modelo narrativo convencional a universos temáticos distantes de Hollywood: por onde andam os bons filmes clássico-narrativos? Pois os ruins estão lá aos montes. Os não-narrativos antipsicológicos (um novo academicismo que vemos se aprumar de uns anos para cá) também. Mas cadê aquele plano que em três segundos constrói o personagem – psicologicamente – e o introduz na ação? Ang Lee tem uma resposta bem interessante e bonita.

O casal protagonista, que não demora a se formar, é composto por Jack Twist (Jake Gyllenhaal), um cowboy de rodeios não muito talentoso, e Ennis Del Mar (Heath Ledger), rancheiro que trabalha de free-lance. Eles se conhecem em 1963, quando são contratados para atravessar as montanhas conduzindo um rebanho de ovelhas. Lee e Rodrigo Prieto (diretor de fotografia) filmam o movimento das ovelhas e dos personagens sobre seus cavalos com uma notável elegância; às vezes parece que estamos vendo um rio de lã descendo a montanha, ou uma lava que escorre sem a raiva do vulcão. Há um certo academicismo imediatamente identificável, sem dúvida, mas há também um olhar dissolvido na paisagem e disposto a ser um comunicante sensível, um romântico desregrado. Principalmente na primeira parte, quando nasce a paixão entre Jack e Ennis, Brokeback Mountain é conduzido com um classicismo siderante, seqüências cósmicas em que a paisagem e os personagens falam no mesmo volume, constroem uma mesma narrativa.

Se há uma estrutura de western se configurando quando o primeiro terço do filme transita do conflito homem-natureza (os primeiros obstáculos de Jack e Ennis são o frio, as tempestades, a irregularidade do relevo, os lobos que comem as ovelhas) para o conflito homem-homem (o empregador assiste de binóculo a uma troca de carícias dos dois, revoltando-se e demitindo-os), o decorrer do filme contraria o que seria mais óbvio nesse segundo confronto – que, em se tratando de um casal gay que vive numa parte conservadora dos EUA, seria o atrito entre o desviante e a intolerância de sua comunidade. Mesmo quando a mulher de Ennis, Alma (Michelle Williams, bem distante do clichê da adolescente-tornada-adulta-antes-da-hora que fazia em Dawson’s Creek), vê os dois se beijando calorosamente, nada de muito significativo acontece em relação a isso. Não vemos a notícia se espalhar e Ennis passar por humilhações coletivas ao sentar ao balcão de um bar e pedir um uísque. O filme prefere mostrar a dificuldade de se tomar uma decisão aparentemente simples – “vá onde seu coração mandar”, diz o velho ditado – por conta de empecilhos que englobam desde uma lembrança traumática (a história que Ennis conta sobre os vizinhos homossexuais espancados até a morte) até circunstâncias mais fluidas e incontroláveis.

Após o fim do trabalho em Brokeback, um pouco como as ovelhas que caminham sem saber para onde vão, Ennis se casa, tem filhas, empregos de ocasião, vida sexual ativa. Numa patada de elefante que destoa em relação à capacidade do filme de construir os personagens econômica e inequivocamente, Lee mostra o personagem de Heath Ledger virando sua mulher de costas na cama e ela em seguida com cara de dor – exagero na ilustração da sexualidade de Ennis que beira a caricatura. Mas uma cena como essa é compensada por bons momentos de caracterização dos personagens e do espaço. O segundo marido de Alma, por exemplo, só precisa aparecer duas vezes no filme para que saibamos tudo de que necessitamos sobre sua personalidade e seu papel dentro da narrativa. Com igual eficácia, as passagens de tempo nos são indicadas por construções minimais de figurino, cenografia e maquiagem. A comunicação à distância rende também algumas das melhores cenas do filme, com trocas de cartões-postais que falam uma linguagem prosaica e abreviativa, mas claramente carinhosa.

Enquanto Ennis fica ainda mais pobre após o casamento e o divórcio, chegando ao final do filme já morando num trailer, Jack conhece uma nova-rica texana e também se casa durante os quatro anos que separam o idílio amoroso do início e o segundo encontro dos dois. Jack consegue levar adiante uma vida confortável e abastada, suportando o sogro mala e a economia familiar asfixiante somente por poder contar esporadicamente com as “pescarias” ao lado de Ennis. A dialética que Lee cria basicamente através dos cenários caminha no sentido de opor a vida de plástico (para Jack) ou de frangalhos (para Ennis) dos espaços domésticos do filme à exuberância e ao frescor das cenas em Brokeback. Toda vez que eles se encontram, o filme adquire um desejo de natureza e de esplendor. Se a solidão é uma tranqüilidade de que os amantes que vivem juntos sentem falta, para eles há a angústia de nem poder fazer – ou de não ter a coragem e a iniciativa para tanto – daquele sentimento de oásis que experimentam em Brokeback uma opção de vida a dois. Ennis parece até saber que nasceu para ser solitário – e a morte de Jack no final nunca soa como uma resolução atropelada do filme. Essa é a grande dor de seu personagem: mais do que um amor perdido, para ele se trata da negação de qualquer possibilidade de vida em companhia de alguém. O final é triste como dificilmente se podia prever: Ennis sozinho no trailer, após a filha ir embora e “esquecer” o casaco, que será guardado no armário em cuja porta está pendurada a blusa de Jack, ainda manchada com seu sangue na briga que tiveram lá no início de tudo. “Jack, eu juro...”, ele fala e se interrompe. Tudo que ele queria naquele momento era sentir falta da solidão.


Luiz Carlos Oliveira Jr.