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notícia se espalhou rápido: um western gay levou
o Leão de Ouro em Veneza. Isso lembra um episódio que
já tem mais de dez anos, quando Sundance – praticamente
outro festival, se comparado com esse que hoje premia
Quarenta Tons de Azul – consagrou Veneno,
de Todd Haynes, e muitos jornais noticiaram que o vencedor
era um exemplar do new queer cinema. Quem viu
o belíssimo filme de Haynes sabe que o rótulo não se
aplica. Da mesma forma, dizer que Brokeback Mountain
é um western gay não revela quase nada
sobre o filme melancólico e emotivo que Ang Lee dirigiu,
e que responde mesmo é a uma pergunta atualmente feita
entre uma narrativa deflacionada e outra (A Criança,
Batalha no Céu, Flores Partidas, Estrela
Solitária), ou entre uma e outra tentativa de aplicar
o modelo narrativo convencional a universos temáticos
distantes de Hollywood: por onde andam os bons filmes
clássico-narrativos? Pois os ruins estão lá aos montes.
Os não-narrativos antipsicológicos (um novo academicismo
que vemos se aprumar de uns anos para cá) também. Mas
cadê aquele plano que em três segundos constrói o personagem
– psicologicamente – e o introduz na ação? Ang Lee tem
uma resposta bem interessante e bonita.
O casal protagonista, que não demora a se formar, é
composto por Jack Twist (Jake Gyllenhaal), um cowboy
de rodeios não muito talentoso, e Ennis Del Mar
(Heath Ledger), rancheiro que trabalha de free-lance.
Eles se conhecem em 1963, quando são contratados para
atravessar as montanhas conduzindo um rebanho de ovelhas.
Lee e Rodrigo Prieto (diretor de fotografia) filmam
o movimento das ovelhas e dos personagens sobre seus
cavalos com uma notável elegância; às vezes parece que
estamos vendo um rio de lã descendo a montanha, ou uma
lava que escorre sem a raiva do vulcão. Há um certo
academicismo imediatamente identificável, sem dúvida,
mas há também um olhar dissolvido na paisagem e disposto
a ser um comunicante sensível, um romântico desregrado.
Principalmente na primeira parte, quando nasce a paixão
entre Jack e Ennis, Brokeback Mountain é conduzido
com um classicismo siderante, seqüências cósmicas em
que a paisagem e os personagens falam no mesmo volume,
constroem uma mesma narrativa.
Se há uma estrutura de western se configurando
quando o primeiro terço do filme transita do conflito
homem-natureza (os primeiros obstáculos de Jack e Ennis
são o frio, as tempestades, a irregularidade do relevo,
os lobos que comem as ovelhas) para o conflito homem-homem
(o empregador assiste de binóculo a uma troca de carícias
dos dois, revoltando-se e demitindo-os), o decorrer
do filme contraria o que seria mais óbvio nesse segundo
confronto – que, em se tratando de um casal gay que
vive numa parte conservadora dos EUA, seria o atrito
entre o desviante e a intolerância de sua comunidade.
Mesmo quando a mulher de Ennis, Alma (Michelle Williams,
bem distante do clichê da adolescente-tornada-adulta-antes-da-hora
que fazia em Dawson’s Creek), vê os dois se beijando
calorosamente, nada de muito significativo acontece
em relação a isso. Não vemos a notícia se espalhar e
Ennis passar por humilhações coletivas ao sentar ao
balcão de um bar e pedir um uísque. O filme prefere
mostrar a dificuldade de se tomar uma decisão aparentemente
simples – “vá onde seu coração mandar”, diz o velho
ditado – por conta de empecilhos que englobam desde
uma lembrança traumática (a história que Ennis conta
sobre os vizinhos homossexuais espancados até a morte)
até circunstâncias mais fluidas e incontroláveis.
Após o fim do trabalho em Brokeback, um pouco como as
ovelhas que caminham sem saber para onde vão, Ennis
se casa, tem filhas, empregos de ocasião, vida sexual
ativa. Numa patada de elefante que destoa em relação
à capacidade do filme de construir os personagens econômica
e inequivocamente, Lee mostra o personagem de Heath
Ledger virando sua mulher de costas na cama e ela em
seguida com cara de dor – exagero na ilustração da sexualidade
de Ennis que beira a caricatura. Mas uma cena como essa
é compensada por bons momentos de caracterização dos
personagens e do espaço. O segundo marido de Alma, por
exemplo, só precisa aparecer duas vezes no filme para
que saibamos tudo de que necessitamos sobre sua personalidade
e seu papel dentro da narrativa. Com igual eficácia,
as passagens de tempo nos são indicadas por construções
minimais de figurino, cenografia e maquiagem. A comunicação
à distância rende também algumas das melhores cenas
do filme, com trocas de cartões-postais que falam uma
linguagem prosaica e abreviativa, mas claramente carinhosa.
Enquanto Ennis fica ainda mais pobre após o casamento
e o divórcio, chegando ao final do filme já morando
num trailer, Jack conhece uma nova-rica texana e também
se casa durante os quatro anos que separam o idílio
amoroso do início e o segundo encontro dos dois. Jack
consegue levar adiante uma vida confortável e abastada,
suportando o sogro mala e a economia familiar asfixiante
somente por poder contar esporadicamente com as “pescarias”
ao lado de Ennis. A dialética que Lee cria basicamente
através dos cenários caminha no sentido de opor a vida
de plástico (para Jack) ou de frangalhos (para Ennis)
dos espaços domésticos do filme à exuberância e ao frescor
das cenas em Brokeback. Toda vez que eles se encontram,
o filme adquire um desejo de natureza e de esplendor.
Se a solidão é uma tranqüilidade de que os amantes que
vivem juntos sentem falta, para eles há a angústia de
nem poder fazer – ou de não ter a coragem e a iniciativa
para tanto – daquele sentimento de oásis que experimentam
em Brokeback uma opção de vida a dois. Ennis parece
até saber que nasceu para ser solitário – e a morte
de Jack no final nunca soa como uma resolução atropelada
do filme. Essa é a grande dor de seu personagem: mais
do que um amor perdido, para ele se trata da negação
de qualquer possibilidade de vida em companhia de alguém.
O final é triste como dificilmente se podia prever:
Ennis sozinho no trailer, após a filha ir embora e “esquecer”
o casaco, que será guardado no armário em cuja porta
está pendurada a blusa de Jack, ainda manchada com seu
sangue na briga que tiveram lá no início de tudo. “Jack,
eu juro...”, ele fala e se interrompe. Tudo que ele
queria naquele momento era sentir falta da solidão.
Luiz Carlos Oliveira Jr.
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