BENS CONFISCADOS
Carlos Reichenbach, Brasil, 2004

Há dois fluxos constantes na obra de Carlos Reichenbach: de um lado há os filmes celebratórios e do outro os lamentos amargos (que geralmente tomam a forma de intensos melodramas). Isto talvez fique bem representado pela oposição da dupla O Império do Desejo (80) e Amor, Palavra Prostituta (81): no primeiro filme, pela forma como se constrói num clima de "tudo pode acontecer", enquanto o segundo mantém uma estrutura extremamente fechada (um prólogo, um epílogo e quatro capítulos dedicados a cada protagonista).

Bens Confiscados é talvez o mais duro filme do cineasta desde Amor, Palavra Prostituta, um filme quase todo na negativa cujos momentos de alento surgem pela inabalável crença do cineasta na força do cinema. Assim como no filme anterior, Bens Confiscados é desenvolvido a partir de um formato dramático bastante rígido, com três atos demarcados por três espaços específicos (a metrópole, a chácara de interior e o hotel de litoral), cujo tom é ditado por um coadjuvante (o assessor político, o caseiro chucro, o húngaro). Ao optar por trabalhar o filme a partir deste princípio, Reichenbach - um cineasta que tendemos a associar com uma liberdade de filmar - não deixa de abrir mão de parte do que torna seu cinema especial. Só que esta limitação termina por se revelar um benefício a longo prazo, na maneira com que um certo desespero formal por parte do cineasta espelha o que se vê na tela.

Ao escalar Beth Goulart como a ex-esposa do senador corrupto cujas denúncias são o ponto de partida da ação do filme, Reichenbach torna inevitável uma aproximação com Dois Córregos, onde a atriz também era usada nas cenas que serviam de moldura para o drama de sentimentos que estava no cerne do filme. Mas aqui, ao dar tom de chanchada a estas cenas, Reichenbach foi especialmente feliz. Não deixa de valer a pena apontar que, desde que Bens Confiscados foi exibido pela primeira vez, a forma de representação que o cineasta encontrou para este material de moldura ganhou ainda mais força. Há algo de profundamente político em Bens Confiscados, mas isso reside para bem além das cenas com Goulart ou mesmo na constatação mais didática do filme de que a figura mais destrutiva não é o peão violento, mas a do assessor de bons modos. O que há de político em Bens Confiscados é mais direto, atinge o espectador como um soco bem dado na cabeça do estômago.

Serena (Betty Faria) detém uma rara passividade para uma protagonista de Reichenbach. À primeira vista ela parece quase existir como testemunha para os dramas ao seu redor (o da garota, da mulher do caseiro). Até o momento em que aceita sair com Miklos (Eduardo Dusek) podemos mesmo afirmar que ela nada faz. Betty Faria – que, como produtora, de certa forma divide com o cineasta a condição de dona do filme – plana sobre Bens Confiscados como uma musa intocável (trata-se do raro verdadeiro exemplar de veículo para estrela no cinema brasileiro contemporâneo), ou ao menos é o que filme nos leva a crer, enquanto sutilmente vai trabalhando sobre ela desde seu primeiro plano. Quando se escreve sobre Reichenbach costuma-se usar o substantivo "generosidade", que decerto é bastante correto, mas vale também observar que ocasionalmente esta generosidade vem complementada por um grande senso de crueldade. O que é Bens Confiscados se não um lentamente organizado estupro emocional? O que mais podemos tirar do rosto de Serena nas imagens finais? As certezas de Serena – que de certa forma espelham as do espectador diante de um material à primeira vista bastante convencional – vão sendo discretamente dissolvidas. A rigidez da mise en scène de Reichenbach - talvez a mais clássica do cineasta – revela algo de sufocante que permanece no ar. Se Serena termina por se revelar a grande vitima de Bens Confiscados, é justamente por, ao contrário do garoto ou da mulher do caseiro, crer que tudo sabe – quando pouco compreende da cadeia de eventos à sua volta. É justamente a sua posição de testemunha complacente que precisa aos poucos ruir. Bens Confiscados, um perfeito exemplar de parceria bem sucedida entre diretor/atriz, poderia ser descrito como um filme sobre um cineasta que aos poucos conduz sua atriz a uma armadilha, não fosse este comentário soar como a subvalorização da inteligência do trabalho de Betty Faria no filme.

Não podemos deixar de mencionar as diferentes maneiras com que o cineasta encontra camadas de manobra dentro da rigidez da forma que se auto-impôs. Basta observar a figura de Eduardo Dusek, que parece existir para além do filme, injetando em cada uma das suas cenas uma vitalidade bem particular; ou a seqüência em que o garoto passeia na praia com as duas pedagogas. Bens Confiscados reafirma a crença do cineasta em seu universo particular, na sua capacidade de trabalhar a partir de tipos (Antonio Grassi, excepcional), no artifício das suas imagens. Carlos Reichenbach acredita no cinema, algo que a maior parte dos nossos diretores apenas finge crer. Suas imagens significam e comentam a si mesmas, em vez de nos serem simplesmente dadas. Só por isso qualquer filme seu, mesmo os menores, é sempre um acontecimento no cenário do cinema brasileiro. Logo, Bens Confiscados - seu melhor trabalho desde Alma Corsária - não deixa de se afirmar como um dos grandes filmes que chegaram a nós em 2005.


Filipe Furtado