Há
dois fluxos constantes na obra de Carlos Reichenbach:
de um lado há os filmes celebratórios
e do outro os lamentos amargos (que geralmente tomam
a forma de intensos melodramas). Isto talvez fique bem
representado pela oposição da dupla O
Império do Desejo (80) e Amor, Palavra
Prostituta (81): no primeiro filme, pela forma como
se constrói num clima de "tudo pode acontecer",
enquanto o segundo mantém uma estrutura extremamente
fechada (um prólogo, um epílogo e quatro
capítulos dedicados a cada protagonista).
Bens Confiscados é talvez o mais duro
filme do cineasta desde Amor, Palavra Prostituta,
um filme quase todo na negativa cujos momentos de alento
surgem pela inabalável crença do cineasta
na força do cinema. Assim como no filme anterior,
Bens Confiscados é desenvolvido a partir
de um formato dramático bastante rígido,
com três atos demarcados por três espaços
específicos (a metrópole, a chácara
de interior e o hotel de litoral), cujo tom é
ditado por um coadjuvante (o assessor político,
o caseiro chucro, o húngaro). Ao optar por trabalhar
o filme a partir deste princípio, Reichenbach
- um cineasta que tendemos a associar com uma liberdade
de filmar - não deixa de abrir mão de
parte do que torna seu cinema especial. Só que
esta limitação termina por se revelar
um benefício a longo prazo, na maneira com que
um certo desespero formal por parte do cineasta espelha
o que se vê na tela.
Ao escalar Beth Goulart como a ex-esposa do senador
corrupto cujas denúncias são o ponto de
partida da ação do filme, Reichenbach
torna inevitável uma aproximação
com Dois Córregos, onde a atriz também
era usada nas cenas que serviam de moldura para o drama
de sentimentos que estava no cerne do filme. Mas aqui,
ao dar tom de chanchada a estas cenas, Reichenbach foi
especialmente feliz. Não deixa de valer a pena
apontar que, desde que Bens Confiscados foi exibido
pela primeira vez, a forma de representação
que o cineasta encontrou para este material de moldura
ganhou ainda mais força. Há algo de profundamente
político em Bens Confiscados, mas isso
reside para bem além das cenas com Goulart ou
mesmo na constatação mais didática
do filme de que a figura mais destrutiva não
é o peão violento, mas a do assessor de
bons modos. O que há de político em Bens
Confiscados é mais direto, atinge o espectador
como um soco bem dado na cabeça do estômago.
Serena (Betty Faria) detém uma rara passividade
para uma protagonista de Reichenbach. À primeira
vista ela parece quase existir como testemunha para
os dramas ao seu redor (o da garota, da mulher do caseiro).
Até o momento em que aceita sair com Miklos (Eduardo
Dusek) podemos mesmo afirmar que ela nada faz. Betty
Faria – que, como produtora, de certa forma divide com
o cineasta a condição de dona do filme
– plana sobre Bens Confiscados como uma musa
intocável (trata-se do raro verdadeiro exemplar
de veículo para estrela no cinema brasileiro
contemporâneo), ou ao menos é o que filme
nos leva a crer, enquanto sutilmente vai trabalhando
sobre ela desde seu primeiro plano. Quando se escreve
sobre Reichenbach costuma-se usar o substantivo "generosidade",
que decerto é bastante correto, mas vale também
observar que ocasionalmente esta generosidade vem complementada
por um grande senso de crueldade. O que é Bens
Confiscados se não um lentamente organizado
estupro emocional? O que mais podemos tirar do rosto
de Serena nas imagens finais? As certezas de Serena
– que de certa forma espelham as do espectador diante
de um material à primeira vista bastante convencional
– vão sendo discretamente dissolvidas. A rigidez
da mise en scène de Reichenbach - talvez
a mais clássica do cineasta – revela algo de
sufocante que permanece no ar. Se Serena termina por
se revelar a grande vitima de Bens Confiscados,
é justamente por, ao contrário do garoto
ou da mulher do caseiro, crer que tudo sabe – quando
pouco compreende da cadeia de eventos à sua volta.
É justamente a sua posição de testemunha
complacente que precisa aos poucos ruir. Bens Confiscados,
um perfeito exemplar de parceria bem sucedida entre
diretor/atriz, poderia ser descrito como um filme sobre
um cineasta que aos poucos conduz sua atriz a uma armadilha,
não fosse este comentário soar como a
subvalorização da inteligência do
trabalho de Betty Faria no filme.
Não podemos deixar de mencionar as diferentes
maneiras com que o cineasta encontra camadas de manobra
dentro da rigidez da forma que se auto-impôs.
Basta observar a figura de Eduardo Dusek, que parece
existir para além do filme, injetando em cada
uma das suas cenas uma vitalidade bem particular; ou
a seqüência em que o garoto passeia na praia
com as duas pedagogas. Bens Confiscados reafirma
a crença do cineasta em seu universo particular,
na sua capacidade de trabalhar a partir de tipos (Antonio
Grassi, excepcional), no artifício das suas imagens.
Carlos Reichenbach acredita no cinema, algo que a maior
parte dos nossos diretores apenas finge crer. Suas imagens
significam e comentam a si mesmas, em vez de nos serem
simplesmente dadas. Só por isso qualquer filme
seu, mesmo os menores, é sempre um acontecimento
no cenário do cinema brasileiro. Logo, Bens
Confiscados - seu melhor trabalho desde Alma
Corsária - não deixa de se afirmar
como um dos grandes filmes que chegaram a nós
em 2005.
Filipe Furtado
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