Habitar
uma cidade, passar de porta em porta, por ruelas, vielas,
sombras.
Manoel de Oliveira constrói seu cinema sobre
o signo do espaço-geométrico por onde
circulam suas figuras: seus filmes se passam em grandes
casas habitadas por corpos, fantasmas, palavras e espelhos,
jardins, territórios demarcados, seja Portugal,
seja um navio em cruzeiro, em um sentido de cena pós-teatral
em que o recorte do palco mais se redobra do que se
rarefaz. A cidade do Porto de Aniki-Bobó
é o primeiro grande palco, o palco primordial
de Oliveira, desde seus primeiros curtas, lugar em que
a cena é trazida por dentro mesmo da estrutura
de um perambular/brincar com a cidade.
Esse gesto de jogo com o espaço-ritual como lugar
de secreção de sentidos/rituais, esse
movimento presente em Aniki-Bobó é
um sintoma da temporalidade reflexiva que Oliveira viria
a, em esforço cinematográfico, transformar
em gesto indispensável ao longo de sua filmografia.
Habitar uma cidade como habitar um certo tempo, um certo
um filme – e o inverso. Trançar tramas como a
arquitetura de um certo lugar-de-cena. Aniki-Bobó
é uma crônica de costumes através
do espelho juvenil de um triângulo amoroso, filtrado
pela ingenuidade com que as crianças-personagens
repetem seus gestos característicos. O bando
de aventureiros mirins liderados por Eduardinho encena
entre si o teatro comum da pequena burguesia portuense,
colocando o universo adulto cristalizado sob o foco
ainda da descoberta, do desconhecido, da aventura. A
simplicidade narrativa abre brecha a um entregar-se
à encenação que busca encontrar
no olhar cotidiano da cidade uma força de real
em forma de encantamento.
O próprio título, proveniente do palavreado
ouvido nas ruas e nas brincadeiras infantis, comprova
o movimento de Oliveira no sentido de se dar ao contato
com o tempo de seus personagens. Um tempo repleto de
mistério e jogo, fantasmagoria e descoberta,
como nas conversas dos pequenos sobre a morte, Deus,
o diabo, as estrelas.
Essa verdade do gesto a um só tempo mágico
e banal, da construção do cinema através
do gestual cotidiano repetido e da observação
poética e crítica dos sentimentos naturalizados,
dá ao filme sua força criadora muitas
vezes descrita como precursora do neo-realismo cinematográfico.
Ainda que não nos interesse destrinchar cronologias
ou mapear influências, é certo que o sentido
de reconstrução cênica como construção
da vida, de vivacidade cotidiana diante de ruínas
e incertezas, presentes neste Oliveira de 1942, também
estariam presentes nos esforços do cinema de
pós-guerra italiano.
Optando por uma história de estrutura direta
e simples, Oliveira constrói uma rede social
em estado embrionário tomando como tom para seu
realismo um aproximar-se do sentimento e da imaginação
dos personagens. Esboçando um dos interesses
mais caros ao diretor, a palavra cantada-atuada "Aniki-Bobó"
ressoa aqui como um lema abstrato, um gesto perdido
de avanço e atração à vida.
Uma vida que pulsa em cada coisa, ao redor das banalidades
e delas provindo.
Um filme ciente e alegre por sua candura. Da singeleza
de sentimentos que é como um levantar de cabeça
de um corpo frágil e corajoso a dizer: isto aqui
é o cinema, isto aqui é a vida. Vasta
e inesgotável em sua banalidade, em sua previsibilidade,
simples como um jogo e inexplicável para além
dele.
A ciranda, a palavra, a brincadeira, aparecem então
para corroborar o sentido de respeito e desafio que
Oliveira leva a caminhos preciosos em seu cinema: não
se filmar a vida, se filmar o teatro. Aniki-Bobó
adianta o sentido da narrativa a um só tempo
seca e declamada de Oliveira, de dramaturgia ao mesmo
tempo simples e rebuscada, direta e grávida de
divergências.
E são as palavras faladas, ainda que não
sejam neste filme protagonistas maiores de sua engrenagem
(como depois se tornariam da obra do diretor), que aparecem
provocando, na figura ciranda, da rima fácil,
a peraltice ingênua e bela que é tentar
estabelecer um sentido, um lugar de papéis determinados
para um esforço de vida que é acima de
tudo sempre presente e indevassável. E que o
cinema não faz mais do que abismar, criando mitos,
heróis, vilões, belezas, dramas, finais
felizes e finais tristes. Essa vontade de determinação
de papéis e sentidos, força motriz da
narrativa cinematográfica cristalizada como clássica,
ganha em Aniki-Bobó, portanto, uma de
suas críticas mais amorosas e perspicazes ao
se ver espelhada/redobrada na delicada forma de um teatro
infantil:
"Anikibébé. Anikibóbó.
Passarinho. Tótó.
Berimbau. Cavaquinho. Salomão. Sacristão.
Tu és polícia. Tu és
ladrão."
Felipe Bragança
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