ANIKI-BOBÓ (1942)

Habitar uma cidade, passar de porta em porta, por ruelas, vielas, sombras.

Manoel de Oliveira constrói seu cinema sobre o signo do espaço-geométrico por onde circulam suas figuras: seus filmes se passam em grandes casas habitadas por corpos, fantasmas, palavras e espelhos, jardins, territórios demarcados, seja Portugal, seja um navio em cruzeiro, em um sentido de cena pós-teatral em que o recorte do palco mais se redobra do que se rarefaz. A cidade do Porto de Aniki-Bobó é o primeiro grande palco, o palco primordial de Oliveira, desde seus primeiros curtas, lugar em que a cena é trazida por dentro mesmo da estrutura de um perambular/brincar com a cidade.

Esse gesto de jogo com o espaço-ritual como lugar de secreção de sentidos/rituais, esse movimento presente em Aniki-Bobó é um sintoma da temporalidade reflexiva que Oliveira viria a, em esforço cinematográfico, transformar em gesto indispensável ao longo de sua filmografia.

Habitar uma cidade como habitar um certo tempo, um certo um filme – e o inverso. Trançar tramas como a arquitetura de um certo lugar-de-cena. Aniki-Bobó é uma crônica de costumes através do espelho juvenil de um triângulo amoroso, filtrado pela ingenuidade com que as crianças-personagens repetem seus gestos característicos. O bando de aventureiros mirins liderados por Eduardinho encena entre si o teatro comum da pequena burguesia portuense, colocando o universo adulto cristalizado sob o foco ainda da descoberta, do desconhecido, da aventura. A simplicidade narrativa abre brecha a um entregar-se à encenação que busca encontrar no olhar cotidiano da cidade uma força de real em forma de encantamento.

O próprio título, proveniente do palavreado ouvido nas ruas e nas brincadeiras infantis, comprova o movimento de Oliveira no sentido de se dar ao contato com o tempo de seus personagens. Um tempo repleto de mistério e jogo, fantasmagoria e descoberta, como nas conversas dos pequenos sobre a morte, Deus, o diabo, as estrelas.

Essa verdade do gesto a um só tempo mágico e banal, da construção do cinema através do gestual cotidiano repetido e da observação poética e crítica dos sentimentos naturalizados, dá ao filme sua força criadora muitas vezes descrita como precursora do neo-realismo cinematográfico. Ainda que não nos interesse destrinchar cronologias ou mapear influências, é certo que o sentido de reconstrução cênica como construção da vida, de vivacidade cotidiana diante de ruínas e incertezas, presentes neste Oliveira de 1942, também estariam presentes nos esforços do cinema de pós-guerra italiano.

Optando por uma história de estrutura direta e simples, Oliveira constrói uma rede social em estado embrionário tomando como tom para seu realismo um aproximar-se do sentimento e da imaginação dos personagens. Esboçando um dos interesses mais caros ao diretor, a palavra cantada-atuada "Aniki-Bobó" ressoa aqui como um lema abstrato, um gesto perdido de avanço e atração à vida. Uma vida que pulsa em cada coisa, ao redor das banalidades e delas provindo.

Um filme ciente e alegre por sua candura. Da singeleza de sentimentos que é como um levantar de cabeça de um corpo frágil e corajoso a dizer: isto aqui é o cinema, isto aqui é a vida. Vasta e inesgotável em sua banalidade, em sua previsibilidade, simples como um jogo e inexplicável para além dele.

A ciranda, a palavra, a brincadeira, aparecem então para corroborar o sentido de respeito e desafio que Oliveira leva a caminhos preciosos em seu cinema: não se filmar a vida, se filmar o teatro. Aniki-Bobó adianta o sentido da narrativa a um só tempo seca e declamada de Oliveira, de dramaturgia ao mesmo tempo simples e rebuscada, direta e grávida de divergências.

E são as palavras faladas, ainda que não sejam neste filme protagonistas maiores de sua engrenagem (como depois se tornariam da obra do diretor), que aparecem provocando, na figura ciranda, da rima fácil, a peraltice ingênua e bela que é tentar estabelecer um sentido, um lugar de papéis determinados para um esforço de vida que é acima de tudo sempre presente e indevassável. E que o cinema não faz mais do que abismar, criando mitos, heróis, vilões, belezas, dramas, finais felizes e finais tristes. Essa vontade de determinação de papéis e sentidos, força motriz da narrativa cinematográfica cristalizada como clássica, ganha em Aniki-Bobó, portanto, uma de suas críticas mais amorosas e perspicazes ao se ver espelhada/redobrada na delicada forma de um teatro infantil:

"Anikibébé. Anikibóbó. Passarinho. Tótó.
Berimbau. Cavaquinho. Salomão. Sacristão.
Tu és polícia. Tu és ladrão."

Felipe Bragança

 

 





Dois momentos de Aniki-Bobó (1942)