ACTO DA PRIMAVERA

"Mostrar que se estava a representar um acontecimento passado há dois mil anos, reescrito no século XVI, refeito no século XX, com magnetofones, máquinas, etc., de maneira que fiz questão de filmar as próprias máquinas que filmavam, o próprio gravador que gravava. Portanto, temos o tempo de Cristo, o século XVI e o século XX. Tudo dado ao mesmo tempo, tudo visto simultaneamente. Só o cinema pode dar este artifício. É por isso que o cinema é realmente sedutor"1. Assim Manoel de Oliveira equacionou, em 1998, o principal interesse que o levou a fazer Acto da Primavera, mas curiosamente também é esse tipo de acumulação – das camadas, dos tempos e dos tipos de registros – que impulsiona a quase totalidade de suas obras dos anos 90, sobretudo as do final, como Inquietude e A Carta. Oliveira 1963 sobre Oliveira 1998, mais uma das camadas-sobre-camadas que o grande cineasta da História nos entrega sem mesmo perceber? Resta que a nós, muito mais familiarizados com os filmes que Oliveira fez a partir de Vale Abraão, sentir de Acto da Primavera ao mesmo tempo um gosto semelhante e um gosto inteiramente diferente do que estamos acostumados a ter vendo um filme de sua lavra. Porque Acto da Primavera, como grande parte dos filmes de Oliveira feitos antes de Benilde ou a Virgem Mãe, é como uma ilha dentro de sua filmografia, algo sem muito paralelismo estético, temático ou cronológico gritante, sobretudo em approach ou método ou estilo, com o resto de sua obra. Resta que essa ilha, e é o mínimo que se pode dizer, é uma obra-prima.

Acto da Primavera é um filme-dispositivo, e como tal não estabelece seus critérios de fabulação nem exatamente no terreno do cinema de ficção e tampouco no cinema documentário, embora possa ser considerado ao mesmo tempo como ambos. É mais um procedimento de fixação, uma tentativa de trabalhar as bifurcações do tempo como paradoxos. Qual a função de contar uma história? E, em se tratando da civilização ocidental que emergiu da cristandade, o que é contar A história, ou seja, contar a paixão de Cristo? Manoel de Oliveira, no entanto, é um maníaco pelo texto, e principalmente pelo texto como produção histórica. Resulta disso que, ao invés de criar uma outra versão para o auto da paixão, Oliveira filmou a peça de um autor do século XVI, Francisco Vaz de Guimarães, como ela era anualmente encenada pelos habitantes do vilarejo da Curalha, em Trás-os-Montes. Que relação se estabelece entre câmera e atores, e em seguida entre tela e espectador? Vemos uma ficção ou vemos um registro da encenação dos habitantes? A ficção, no entanto, pertence a outro (o autor do auto original), e a graça do registro pertence aois habitantes da região. Qual é então o trabalho de Oliveira? Diríamos que a tensão que faz desse filme uma obra sui generis na história do cinema é toda do diretor: uma sobreposição de tipos de apreensão que se transforma numa espécie de polifonia temporal, cada personagem sendo ao mesmo tempo o médium de uma palavra de um autor, um personagem bíblico e tendo sua existência própria, seu corpo, seu semblante. Naturalmente, pode-se dizer isso de todos os filmes ficcionais, mas aqui é a própria mise-en-scène e o dispositivo do filme que nos obriga a considerar todas essas etapas do processo enquanto assistimos ao filme (ao contrário dos filmes ficcionais, que tentam esconder as camadas não-ficcionais através das naturalidades de interpretação e da verossimilhança, ou dos documentários, que nos colam a equivalência entre imagem e "realidade").

Espaço, então, para a criação de uma nova relação do espectador com aquilo que aparece na tela. E estranha coincidência, porque o começo dos anos 60 também era o momento em que outro grande cineasta do dispositivo, Jean Rouch, curto-circuitava de maneira completamente diferente o registro documental com o ficcional para fazer surgir um outro tipo de cinema – mais social, é verdade, do que histórico. Acto da Primavera começa e termina pelas "atualidades", notícias vindas dos jornais impressos e cinejornais, contrastando o "mundo de informação" de 1963 com o mundo camponês, tradicional, dir-se-ia atemporal de Trás-os-Montes. Muito rapidamente, o campo se reveste com a metáfora de "espaço de todos os tempos", fazendo confluir um presente midiático estranho a ele, um presente eterno do trabalho da lavoura, um passado histórico da tradição de encenação do auto da paixão e o passado mitológico da chegada do messias. Com Acto da Primavera, não é tanto uma religiosidade cristã que busca Manoel de Oliveira, mas uma pesquisa do papel da religiosidade na civilização, a forma como o homem presta louvor a seu deus. Colocando-se ao mesmo tempo fora (pela estratégia não-ilusionista da encenação) e dentro (fixando um momento apaixonante e mágico de crença) do processo litúrgico, Oliveira cria para o seu cinema pela primeira vez uma virtude passiva da câmera que funciona pelo acréscimo e pela acumulação de camadas (e..., e...), não pela contradição (dialética) e tampouco pela alternativa (ou/ou)2.

Fujamos das possíveis interpretações diretas ou das determinações específicas das imagens de atualidades (gueras, cogumelos atômicos em stock-shot) sobre a diegese da paixão do Cristo3. Parece que, ao inserir essas imagens no começo e no fim do filme, Oliveira deseja mesmo é perspectivar historicamente o tempo da feitura do filme com os tempos históricos-mitológicos recuperados pela encenação e filmagem do Auto da Paixão de Francisco Vaz de Guimarães. Da mesma forma que Oliveira se dá o trabalho de filmar a câmera porque o importante de tudo é o ritual de fixação proporcionado pela câmera, é necessário também expor as imagens do tempo presente, e sem dúvida aquelas que marcam, até estigmatizam, o presente em 1963 (a Guerra Fria e o medo de uma hecatombe nuclear). É a partir delas, da familiaridade com elas, que o espectador citadino pode deslocar-se geografica e temporalmente para a temporalidade do ato dentro de Acto.

Por fim, nenhuma reflexão sobre Acto da Primavera estaria completa sem a menção da fala dos atores, num tom meio declamatório e meio cantado, que certamente deve-se muito mais à tradição do que à intervenção de Oliveira na direção. Sendo "simplesmente" a filmagem de uma encenação não-profissional – mas uma encenação para o cinema –, a questão da naturalidade dos atores se desloca: eles não precisam ser os personagene, eles só precisam cumprir certos gestos e emitir certas vozes. O que a câmera pega inevitavelmente acaba sendo autêntico. Isso quando não é totalmente sublime no registro, como a cena do véu de Verônica, possivelmente a melhor filmagem do episódio na história do cinema: um único plano, o véu é estendido em segundo plano, em cima de um barranco, e enquanto as tropas caminham em primeiro plano e tiram o véu do campo de visão, ele aos poucos passa a mostrar o rosto do Cristo. O véu de Verônica é uma das mais belas metáforas de André Bazin para o realismo no cinema, em que o mundo apareceria na tela do cinema tal qual o rosto do cristo no pano de Verônica. Com Acto da Primavera, Manoel de Oliveira nos mostra menos um mundo do que a co-habitação de mundos distintos que é o mundo.

Ruy Gardnier

1. Entrevista concedida a João Bénard da Costa na revista Público nº 133, intitulada "O cinema não é o caminho para a santidade".

2. Em entrevista, Oliveira diz preferir agregar a sobrepor, acumular a contrapor.

3. Espécie de pecado recorrente em que até Serge Daney caiu quando travou seu primeiro contato com as obras de Oliveira, "Notes sur les films de Manuel de Oliveira", Cahiers du Cinéma nº276, p.35.

 

 





Cena de Acto da Primavera


Manoel de Oliveira posando junto com o
painel de apresentação de Acto da Primavera