Além
do Azul Selvagem se anuncia como “fábula de ficção
científica”, embora, em aparência, seja unm documentário.
A ambivalência se justifica: utillizando imagens captadas
por terceiros, mas lhes alterando o contexto e o significado,
Werner Herzog, na prática, explana a respeito da relação
conturbada que mantém com a natureza em seu próprio
cinema, no qual ela não é mãe, mas madrasta de personagens
que se autodestroem por sonharem demais.
Em Aguirre, A Cólera dos Deuses, em Fitzcarraldo
e em Cobra Verde, Werner Herzog mergulha na natureza
para mostrar os devaneios megalomaníacos de Klaus Kinski,
cujos personagens representam o apogeu do homem ocidental
individualista e empreendedor. Contudo, ao invés de
subjugarem o meio ambiente como desejam, os heróis do
cineasta acabam dominados por ele, na medida em que,
apesar de “civilizados”, guardam em si as pulsões animais
que os levam rumo à loucura. Sonhadores ensandecidos,
eles encarnam ao mesmo tempo o estado de cultura e o
estado de natureza, esquizofrenia que os corrompe e
que inevitavelmente os aniquila.
A narrativa de Além do Azul Selvagem é conduzida
por extraterrestre que, vindo da galáxia de Andrômeda,
enxerga no avanço terráqueo pelo espaço sideral o mesmo
motivo – a destruição do planeta natal – e a mesma consequência
– a destruiçâo do novo planeta descoberto – da jornada
empreendida por sua própria espécie há milhares de anos.
Herzog transforma imagens subaquáticas da Terra em visôes
do “Azul Selvagem” para dizer que a exploraçâo humana
está indelevelmente associada à conquista, que a aventura
e a ousadia da descoberta termina na pilhagem do ambiente,
que o sonho da civilizaçâo racionalista deságua na loucura
da seleçâo natural. Antes de sujeitos à Lei dos Homens,
os personagens que habitam os contos-de-fadas do diretor
– inclusive esta “fábula de ficçâo científica – encontram-se
presos à Lei da Selva, que nâo apenas se situa no mundo
exterior agindo de fora para dentro, como também está
impresso no código genético de cada um, prestes a explodir.
A natureza para Werner Herzog é violenta, assim como
os homens – mesmo que, pelo ponto de vista de Thomas
Hobbes, a organizaçâo geral do Estado procure estabelecer
a convivência comum ao retirar do indivíduo a violência
para concentrá-la na esfera supra-coletiva. Trata-se
de predadores que lutam para sobreviver em um ambiente
por si mesmo predatório: o meio natural não como lugar
de vida, mas de morte; não enquanto espaço para a criação,
e sim para a destruição. Assim, o que entender da afirmaçâo,
ao final de Além do Azul Selvagem, de que a Terra
se tornou um santuário, um recanto de férias para os
homens? Embora mais agradável, seria ingênuo pensar
na resoluçâo pacífica do conflito com a natureza que,
ao longo de quarenta anos, têm motivado os filmes de
Herzog. Deve-se, ao contrário, inferir que o cineasta
se vale da ironia para atacar novamente a corrupçâo
do habitat natural que se propaga em todas as espécies,
unidas que estão pelos genes: o terceiro planeta do
sistema solar já não dá conta dos desvarios humanos,
cujo relacionamento sado-masoquista com a natureza precisa
se estender rumo ao universo inteiro.
Sado-masoquismo à parte, Além do Azul Selvagem
deixa entrever que ainda existem sonhadores entre os
homens, dispostos a se baterem até o fim contra a natureza
que os subjuga. Se a fé quase cega no sonho termina
na loucura, tanto melhor: do que valeria viver, diz
Herzog, se não fosse para sonhar?.
Paulo Ricardo de Almeida
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