WALLACE E GROMIT - A BATALHA DOS VEGETAIS
Steve Box e Nick Park, Wallace and Gromit in the Curse of thw Were-Rabbit, Inglaterra, 2005

Qualquer um que já tenha visto pelo menos uma aventura da dupla Wallace e Gromit, antes de se deparar com este A Batalha dos Vegetais já traz claro em mente que o guia das ações deles é Wallace. E não apenas porque ele seja o humano dos dois. Mas é por conta de dois elementos de seu estatuto de personagem: 1) uma crença de que a tecnologia é um bem inestimável e um transformador obrigatório do cotidiano; 2) uma dependência profunda dele em relação a Gromit. Homem de ciência, o britânico de grandes orelhas e fanatismo por queijo precisa de alguém mais realista que ele, no caso, Gromit. O ar blasé do canino surge sempre em resposta ao tom histriônico e otimista do humano, que manipula a natureza, em uma espécie de engenharia do estado de bem-estar (assim mesmo, com minúsculas, no sentido de uma condição de bem-estar – no caso, o dele e de seus amigos). Para comer queijo, Wallace já foi (e obrigou Gromit a ir) à Lua (satélite feito da iguaria, segundo o mito) em A Grand Day Out (1989). Já produziu tecno-calças, capazes de grandes proezas, no clássico maior dos dois personagens, The Wrong Trousers (1993).

Entre 1) e 2), a noção elementar a se ter sobre Wallace: é sempre justamente essa utilização da tecnologia o responsável pelos próprios problemas que cada aventura deles lhes coloca. Ora, se eram justamente, por exemplo, as tecno-calças a fonte das dores de cabeça de ambos anos atrás, agora é também justamente uma incursão de Wallace no mundo das invencionices o que marca a problemática em A Batalha dos Vegetais. Em outro momento (1995), em A Close Shave, uma invenção de Wallace levou Gromit à cadeia. Agora, é a máquina que promete lobotomizar sua gula, e com a qual espera alterar o apetite dos coelhos por legumes e verduras, que promove a mutação-problema.

Por outro lado, Gromit, o animal racional, traz em si a praticidade de quem resolve os problemas de seu dono constantemente. Educado, informado, Gromit lê “A república” – que é escrita não por Platão (Plato, em inglês), e sim por Pluto – e lê mais de um jornal por dia – em uma sátira impagável à obsessão noticiosa dos britânicos. Ergue os olhos em sinal de “Ai, meu Deus!” a cada pérola de alienação lançada por Wallace. É graças mesmo a sua própria ação que ele é libertado da prisão em Close Shave – notícia que lê, cheio de si, em um hilário Daily Beagle.

Mas, não se pode esquecer, A Batalha dos Vegetais é um filme de lobisomem. É, portanto, um filme sobre a dualidade entre concórdia e violência que habita cada homem. E seu grande achado é o “coelhomem” que usou para dar forma a este elemento. Não apenas pela ironia por oposição que consegue, ao usar em vez do lobo, o coelho como índice do lupino, do homem-lobo-do-homem. Ora, o coelho é um animal constantemente associado à doçura. Mas o segundo movimento dessa transferência é o mais interessante: o coelho é um animal que se reproduz em larga escala. Daí ele assumir duas dimensões na semiologia do filme. A primeira é como praga, como consumidor insaciável dos vegetais que a população quer conservar intactos, e como consumidor que se multiplica em grande quantidade (como os pobres do Terceiro Mundo). E a segunda, essa sim a mais relevante, é a de praga que guarda em si certa inocência, mas que não pode evitar ser uma ameaça.

A primeira leitura a se tirar daí é a da crítica à manipulação genética. Os vegetais supercrescidos e os próprios coelhos são índices dessa discussão. Mas os coelhos acabam se tornando índice de uma outra problemática, a do conflito, a da violência urbana. Veja-se: o que está em jogo na cidade é o sistema de segurança que ela criou para proteger seu patrimônio de consumidores não permitidos. Um brasileiro mais ousado poderia chegar a dizer que os coelhos simbolizam a criança de rua (o que não funciona muito bem como argumento para um filme inglês). Não é o caso. Mas o problema da juventude criminosa, delinqüente é um britânico e está claramente no horizonte de eventos do filme. Sobretudo porque, simbolicamente, o que está em jogo nas discussões dos personagens é qual o melhor sistema “correcional” a ser usado. De um lado, o de isolamento, em um primeiro momento, e de correção (por via behaviorista) de Wallace. De outro, o de eliminação, proposto pelo armado e estranho pretendente da rica local.

A solução, vemos, é um repensar para ambos. Nem tanto uma solução de um nem absolutamente a solução do outro: o filme propõe, como bom espetáculo infantil que é, a concórdia negociada, a compreensão das necessidades intrínsecas dos sofredores, no caso, os coelhos. De certa forma, é uma ecologia o que ele prega: os coelhos se reproduzem demais e comem as hortaliças premiadas porque não há uma aceitação da sociedade local da participação deles na cadeia alimentar, ou, desvendando a metáfora, não se dá à sua classe a abertura para a participação efetiva no consumo, o que os leva à tomar. É, de certa forma, a aposta em uma tese antiga sobre a criminalidade, a de que pobreza e criminalidade estão associadas. Mas introduz um novo elemento, o de um certo “ethos guerreiro” defendido por pensadores como Norbert Elias, uma certa lógica do enfrentamento, da valorização da luta. Se ela não aparece nos coelhos em um primeiro momento, está claramente no mito do lobisomem que o coelhomem corporifica.

É uma discussão plana, é verdade, mas o filme dá a ela as cores de um debate travado em um campo de crítica importante. Isso por conta justamente do elemento tradicional de Wallace e Gromit: a crítica à aposta pura e simples na tecnologia que Wallace representa. De certa maneira, boa parte do problema da discussão sobre violência advém de uma vontade de se fazer ciência exata com a questão. E o filme trabalha a produção de discurso sobre a criminalidade como algo essencialmente anti-tecnológico: não é nenhuma invenção disciplinadora nem de vigilância o que garante segurança.

Ao mesmo tempo, ele faz uma aposta muito clara: separa crime de violência, no sentido em que trabalha apenas com a tomada de posse de bens e não na violência física (na ação dos coelhos, os criminosos “formados”, aqueles que carregam a estigmatização). Nesse sentido, seu problema é o crime, aquilo que uma sociedade acordou como sendo crime e que, depois, compreende-se, não é uma categoria dada a priori. E é graças a Gromit, como sempre, que se consegue esse avanço.

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Mas há um lado de A Batalha dos Vegetais que não se pode ignorar: como é um filme de stop motion, o tempo todo grita na tela a espetacularidade. A habilidade dos animadores é um elemento do qual é difícil escapar em um filme com essa técnica. Cada vez mais, sobretudo diante do cinema de animação digital, um filme que usa bonecos e fotografia quadro a quadro chama a atenção para uma dimensão olímpica do fazer, seu traço de trabalho de artífice mais do que de artista. E, nesse sentido, Wallace e Gromit sempre tiveram uma espécie de private joke pública curiosa: Gromit tem uma “assinatura”. Está lá, em sua testa: uma marca de impressão digital. Wallace não tem, nenhum personagem tem (a Aardman, a produtora britânica que os criou e que é reconhecida como estado da arte do stop motion produz bonecos com enorme competência). Gromit não, ele é artesanal. Curiosamente, é o personagem de maior personalidade do filme. Mesmo que seja um cão e que seja mudo.

Há um conflito entre essa personalidade e com uma certa necessidade de inserção do filme no mercado da animação. O longa é levemente contaminado pela ditadura da referência que vitimou essa indústria com a transformação do gênero em blockbuster (e com a criação da necessidade de se produzir uma piada para os pais, além de para os filhos). Mas o filme não se rende a isso. Tem lá suas referências (como a mais explícita, a King Cong), mas seu principal elemento de tratamento para os adultos é a maneira como localiza, como poucos filmes recentes, o problema da violência pensando nela como um adjetivo e não como um substantivo. Crime é uma atribuição dada por alguém a uma ação que não é boa nem ruim a priori e o filme trabalha com o processo de atribuição, antes de lidar puramente com uma oposição entre gente “de bem” e criminoso.

Alexandre Werneck