Qualquer um que já tenha visto
pelo menos uma aventura da dupla Wallace e Gromit, antes
de se deparar com este A Batalha dos Vegetais
já traz claro em mente que o guia das ações deles é
Wallace. E não apenas porque ele seja o humano dos dois.
Mas é por conta de dois elementos de seu estatuto de
personagem: 1) uma crença de que a tecnologia é um bem
inestimável e um transformador obrigatório do cotidiano;
2) uma dependência profunda dele em relação a Gromit.
Homem de ciência, o britânico de grandes orelhas e fanatismo
por queijo precisa de alguém mais realista que ele,
no caso, Gromit. O ar blasé do canino surge sempre
em resposta ao tom histriônico e otimista do humano,
que manipula a natureza, em uma espécie de engenharia
do estado de bem-estar (assim mesmo, com minúsculas,
no sentido de uma condição de bem-estar – no caso, o
dele e de seus amigos). Para comer queijo, Wallace já
foi (e obrigou Gromit a ir) à Lua (satélite feito da
iguaria, segundo o mito) em A Grand Day Out (1989).
Já produziu tecno-calças, capazes de grandes
proezas, no clássico maior dos dois personagens, The
Wrong Trousers (1993).
Entre 1) e 2), a noção elementar a se ter sobre Wallace:
é sempre justamente essa utilização da tecnologia o
responsável pelos próprios problemas que cada aventura
deles lhes coloca. Ora, se eram justamente, por exemplo,
as tecno-calças a fonte das dores de cabeça de ambos
anos atrás, agora é também justamente uma incursão de
Wallace no mundo das invencionices o que marca a problemática
em A Batalha dos Vegetais. Em outro momento (1995),
em A Close Shave, uma invenção de Wallace levou
Gromit à cadeia. Agora, é a máquina que promete lobotomizar
sua gula, e com a qual espera alterar o apetite dos
coelhos por legumes e verduras, que promove a mutação-problema.
Por outro lado, Gromit, o animal racional, traz em si
a praticidade de quem resolve os problemas de seu dono
constantemente. Educado, informado, Gromit lê “A república”
– que é escrita não por Platão (Plato, em inglês), e
sim por Pluto – e lê mais de um jornal por dia – em
uma sátira impagável à obsessão noticiosa dos britânicos.
Ergue os olhos em sinal de “Ai, meu Deus!” a cada pérola
de alienação lançada por Wallace. É graças mesmo a sua
própria ação que ele é libertado da prisão em Close
Shave – notícia que lê, cheio de si, em um hilário
Daily Beagle.
Mas, não se pode esquecer, A Batalha dos Vegetais
é um filme de lobisomem. É, portanto, um filme sobre
a dualidade entre concórdia e violência que habita cada
homem. E seu grande achado é o “coelhomem” que usou
para dar forma a este elemento. Não apenas pela ironia
por oposição que consegue, ao usar em vez do lobo, o
coelho como índice do lupino, do homem-lobo-do-homem.
Ora, o coelho é um animal constantemente associado à
doçura. Mas o segundo movimento dessa transferência
é o mais interessante: o coelho é um animal que se reproduz
em larga escala. Daí ele assumir duas dimensões na semiologia
do filme. A primeira é como praga, como consumidor insaciável
dos vegetais que a população quer conservar intactos,
e como consumidor que se multiplica em grande quantidade
(como os pobres do Terceiro Mundo). E a segunda, essa
sim a mais relevante, é a de praga que guarda em si
certa inocência, mas que não pode evitar ser uma ameaça.
A primeira leitura a se tirar daí é a da crítica à manipulação
genética. Os vegetais supercrescidos e os próprios coelhos
são índices dessa discussão. Mas os coelhos acabam se
tornando índice de uma outra problemática, a do conflito,
a da violência urbana. Veja-se: o que está em jogo na
cidade é o sistema de segurança que ela criou para proteger
seu patrimônio de consumidores não permitidos. Um brasileiro
mais ousado poderia chegar a dizer que os coelhos simbolizam
a criança de rua (o que não funciona muito bem como
argumento para um filme inglês). Não é o caso. Mas o
problema da juventude criminosa, delinqüente é um britânico
e está claramente no horizonte de eventos do filme.
Sobretudo porque, simbolicamente, o que está em jogo
nas discussões dos personagens é qual o melhor sistema
“correcional” a ser usado. De um lado, o de isolamento,
em um primeiro momento, e de correção (por via behaviorista)
de Wallace. De outro, o de eliminação, proposto pelo
armado e estranho pretendente da rica local.
A solução, vemos, é um repensar para ambos. Nem tanto
uma solução de um nem absolutamente a solução do outro:
o filme propõe, como bom espetáculo infantil que é,
a concórdia negociada, a compreensão das necessidades
intrínsecas dos sofredores, no caso, os coelhos. De
certa forma, é uma ecologia o que ele prega: os coelhos
se reproduzem demais e comem as hortaliças premiadas
porque não há uma aceitação da sociedade local da participação
deles na cadeia alimentar, ou, desvendando a metáfora,
não se dá à sua classe a abertura para a participação
efetiva no consumo, o que os leva à tomar. É, de certa
forma, a aposta em uma tese antiga sobre a criminalidade,
a de que pobreza e criminalidade estão associadas. Mas
introduz um novo elemento, o de um certo “ethos guerreiro”
defendido por pensadores como Norbert Elias, uma certa
lógica do enfrentamento, da valorização da luta. Se
ela não aparece nos coelhos em um primeiro momento,
está claramente no mito do lobisomem que o coelhomem
corporifica.
É uma discussão plana, é verdade, mas o filme dá a ela
as cores de um debate travado em um campo de crítica
importante. Isso por conta justamente do elemento tradicional
de Wallace e Gromit: a crítica à aposta pura e simples
na tecnologia que Wallace representa. De certa maneira,
boa parte do problema da discussão sobre violência advém
de uma vontade de se fazer ciência exata com a questão.
E o filme trabalha a produção de discurso sobre a criminalidade
como algo essencialmente anti-tecnológico: não é nenhuma
invenção disciplinadora nem de vigilância o que garante
segurança.
Ao mesmo tempo, ele faz uma aposta muito clara: separa
crime de violência, no sentido em que trabalha apenas
com a tomada de posse de bens e não na violência física
(na ação dos coelhos, os criminosos “formados”, aqueles
que carregam a estigmatização). Nesse sentido, seu problema
é o crime, aquilo que uma sociedade acordou como sendo
crime e que, depois, compreende-se, não é uma categoria
dada a priori. E é graças a Gromit, como sempre, que
se consegue esse avanço.
* * *
Mas há um lado de A Batalha dos Vegetais que
não se pode ignorar: como é um filme de stop motion,
o tempo todo grita na tela a espetacularidade. A habilidade
dos animadores é um elemento do qual é difícil escapar
em um filme com essa técnica. Cada vez mais, sobretudo
diante do cinema de animação digital, um filme que usa
bonecos e fotografia quadro a quadro chama a atenção
para uma dimensão olímpica do fazer, seu traço de trabalho
de artífice mais do que de artista. E, nesse sentido,
Wallace e Gromit sempre tiveram uma espécie de private
joke pública curiosa: Gromit tem uma “assinatura”.
Está lá, em sua testa: uma marca de impressão digital.
Wallace não tem, nenhum personagem tem (a Aardman, a
produtora britânica que os criou e que é reconhecida
como estado da arte do stop motion produz bonecos
com enorme competência). Gromit não, ele é artesanal.
Curiosamente, é o personagem de maior personalidade
do filme. Mesmo que seja um cão e que seja mudo.
Há um conflito entre essa personalidade e com uma certa
necessidade de inserção do filme no mercado da animação.
O longa é levemente contaminado pela ditadura da referência
que vitimou essa indústria com a transformação do gênero
em blockbuster (e com a criação da necessidade
de se produzir uma piada para os pais, além de para
os filhos). Mas o filme não se rende a isso. Tem lá
suas referências (como a mais explícita, a King Cong),
mas seu principal elemento de tratamento para os adultos
é a maneira como localiza, como poucos filmes recentes,
o problema da violência pensando nela como um adjetivo
e não como um substantivo. Crime é uma atribuição dada
por alguém a uma ação que não é boa nem ruim a priori
e o filme trabalha com o processo de atribuição, antes
de lidar puramente com uma oposição entre gente “de
bem” e criminoso.
Alexandre Werneck
|