O impacto da história
Estruturado no encadeamento de depoimentos de pessoas
que acompanhavam o jornalista Vladimir "Vlado"
Herzog nos ambientes particulares e profissionais, o
documentário Vlado - 30 anos depois sustenta
uma contradição: trata-se de uma peça de elucidação,
mas menos a respeito de quem foi e o que fez esse jornalista
e muito mais do contexto histórico imediato, os dias
antes, o dia em si, em que ele viveu, para muito repentinamente
morrer assassinado. Voluntária ou não, a verdade é que
essa contradição pavimenta para o filme um caminho muito
mais institucional do que privado, algo que não lhe
rouba a vida: nas entranhas de seu registro, o que João
Batista dimensiona é um inventário de existência comunitária.
Não é tanto Herzog quem determina o rumo aqui, mas esses
elos constituidores de uma geração, de sua atividade
e de seu pensamento compartilhado, que são evocados,
de forma quase religiosa, por dentro do filme e de dentro
das salas em que as pessoas relembram alguns meses do
período Ernesto Geisel. Neles, o jornalista, foi torturado
e morto, em um ciclo no qual o esmagamento de pessoas
atreladas a uma racionalista, e já mais serena, ação
de esquerda se dava como demonstração de força das alas
mais radicais do Exército perante as mais brandas. Se
o filme soa como um ritual de reanimação, o é menos
para a reanimação de Herzog ou de seu mito do que dessa
comunidade informalizada que formava, "infiltrada"
nos meios de comunicação oficiais ou não do regime,
a resistência intelectual nos anos militares. É um ritual
das feridas, do compromisso e da memória carcerária
dessas pessoas. Herzog é o símbolo, mas estamos em terreno
associado.
Nesse sentido, coerente e tão expressiva quanto o conteúdo
dos depoimentos é a opção de João Batista de Andrade
por encarar a si próprio, sua figura, seu corpo, como
personagem. Pelo quadro, ele parece transitar ou se
posicionar tranqüilamente, na frente de conhecidos.
João Batista foi "soldado" audiovisual (produtor
de TV, documentarista) atuante no período da repressão,
parte da equipe de "campo" do corpo jornalístico
liderado por Herzog no início dos anos 70 na TV Cultura.
Foi Herzog o autor do roteiro de seu filme premiado,
Doramundo, e companheiro de catequese estética
sob a tutela do documentarista argentino Fernando Birri.
Nesse posicionamento autorizado, desconstrangido, as
entrevistas soam não tanto como entrevistas, e mais
como relatos íntimos, relatos de cumplicidade. Situar-se
dentro do quadro ou quase, para o diretor, não é um
simples fetiche de credibilidade ou de intervenção,
mas, sempre, uma maneira de se entender como agente
da história que o filme habita e remonta. O caminho
para o diretor é, claramente, o de desengavetar, compilar,
uma história da qual ele mesmo pertence.
O motor desse filme, assim, é a evocação, quase uma
reexperiência mística, sempre tensa, de uma história,
"da" história. Se João Batista não sabia disso
na época de filmagem, certamente descobriu na época
de montagem, com o material filmado pronto e à disposição
para ser articulado. É aqui que o diretor, talvez seduzido
por uma possibilidade de melodrama nacional retrospectivo,
patina. Andrade apresenta o filme, cerimonialmente em
seu início, não de forma solene, em 2005 na frente da
Catedral da Sé, cenário no qual o corpo de Herzog foi
velado. Um tipo de postura que, mesmo sem solenidade,
acentua e comprova o teor místico do filme: é uma evidência
territorial. Entretanto, a última imagem de todas, fechadura
da obra, contradiz esse sentido com uma concretude sociológica,
uma concretude barata, diga-se. João Batista levanta-se
de uma pequena cadeira na Sé e vai embora: o ritual
está encerrado. Perdendo-se em meio a transeuntes populares,
passa bem perto de um mendigo deitado ao lado de uma
carroça nessa região plural, ao mesmo tempo rica e degradada,
do centro paulistano. A imagem, que parece amar essa
coincidência, revela uma simetria, um encaixe possível
entre passado e presente pelo qual um filme que se constrói
no que foi vivido, na memória, pode muito provavelmente
se encantar.
Esse tipo de manobra, a grosso modo utilizada (não tanto
como manobra, mais como método) de modo fantasmagórico
nos filmes de Manoel de Oliveira, torna-se aqui, em
Vlado - 30 anos depois apenas um pastiche, um
equacionismo de mensagem tão condoída quanto clara:
na frente do santuário, no território simbólico da morte
de um grande homem, um homem que poderia desvirtuar
para bem a história de seu país, os moribundos continuam
deitados na calçada. Não houve deslocamento histórico,
o cenário é idêntico, João Batista parece sussurrar.
É aí que talvez haja um conflito na própria opção de
promover a Sé como base na qual se instala o filme.
O local parece atingir, de forma sensacionalista, esse
espelhamento entre passado e presente, ao mesmo tempo
em que a ação daquelas edificações, daquela paisagem
meio imutável (sempre velha), revela, de fato, algo
de fúnebre, de perenidade ocultista. De qualquer modo,
esse conflito, de forma alguma, faz do filme um trabalho
menor. O esforço cinematográfico de João Batista é reconhecível
e é ele que torna Vlado - 30 anos depois transcendente
da esfera limitadora de documentário útil, peça de pedagogia
de nossa conscientização ou outra categorização da “responsabilidade
social ético-histórica” que, hoje e sempre, legitimará
lixo e mais lixo no cinema. Dessa esfera ele foge por
méritos.
O que Andrade faz nesse seu filme-cerimônia, em boa
parte do tempo religioso, é a rigor um jogo entre espírito
e objeto dos mais hábeis, diante de sua principal fonte:
os entrevistados. Seu empreendimento é o da materialização
do invisível, da geometrização das memórias. Mestre
de cerimônias proclamado, João Batista apresenta a obra
que virá como um documentário ósseo e palavrado. Um
filme desnutrido, de tecidos insubstanciais, sem (muitas)
imagens de arquivo. É quase irônico: “aqui vocês não
verão quase nenhuma imagem relativa ao Vlado”. Seu talento,
no entanto, está exatamente em gerar no quadro um mecanismo
de transformação das palavras em imagens e daí, recriar
um mundo, da boca e da face das pessoas. Um mundo infernal,
vivido coletivamente, e que tem como capítulo conjunto
a rápida via-crúcis de Vlado Herzog em 24 horas de um
trânsito vertiginoso entre escritórios da TV e salas
brancas, tingidas de negro nos relatos, do regime. João
Batista suga imagens auxiliado pela capacidade incrível
dos narradores de reconstituir verbalmente a história
de um curto período, o período deles afinal, o de 1974,
1975, e descrever os êxtases de um espetáculo sinistro
e kafkiano. Mas não só nisso.
O que determina a substanciação de palavras é a relação
que o diretor estabelece com a câmera e a relação que
ele provoca entre câmera, instrumental flexível mas
que se recusa a comprar para si a pretensão fácil de
reproduzir sentimentos, e o rosto das pessoas. Gradualmente,
ele vai, em cada entrevista com Clarice Herzog (a viúva),
Rodolfo Konder ou Paulo Markun entre outros, estabelecendo
o rosto como crença e mira, forjando lentamente em torno
dele um sistema de ângulos que capturam, num amalgamento
dos nervos, do movimento manual do cineasta, dos póros
e da pele, às vezes suada, dos depoentes, o visual da
história. Essa cadência das entrevistas em que câmera
apreende, rostos deixam ser apreendidos e as palavras
se calcificam é um artifício que poderia facilmente
resultar apenas funcional e intensificador do drama.
Não é o caso. Acaba por alcançar e dar conta de algo
maior. Dar conta afinal do que seria o real impacto
da história na vida das pessoas, esse o verdadeiro tema
do filme. Muito embora, se possa dizer, o relato pudesse
emancipar-se dos "quartos" dos entrevistados
e lançar-se mais ao contato físico com esse fantasma
histórico. As rondas pelo prédio do DOI-Codi (masmorra
maquiada de centro nervoso gerencial da repressão em
São Paulo) e outros prédios-zumbis parece mais protocolar
do que natural ao filme. Um filme que desfruta de certos
riscos e, por conta deles, de certos triunfos; ou, no
quadro de cotações desta revista: "vá ver assim
que puder".
Claudio Szynkier
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