VLADO - 30 ANOS DEPOIS
João Batista de Andrade, Brasil, 2005

O impacto da história

Estruturado no encadeamento de depoimentos de pessoas que acompanhavam o jornalista Vladimir "Vlado" Herzog nos ambientes particulares e profissionais, o documentário Vlado - 30 anos depois sustenta uma contradição: trata-se de uma peça de elucidação, mas menos a respeito de quem foi e o que fez esse jornalista e muito mais do contexto histórico imediato, os dias antes, o dia em si, em que ele viveu, para muito repentinamente morrer assassinado. Voluntária ou não, a verdade é que essa contradição pavimenta para o filme um caminho muito mais institucional do que privado, algo que não lhe rouba a vida: nas entranhas de seu registro, o que João Batista dimensiona é um inventário de existência comunitária. Não é tanto Herzog quem determina o rumo aqui, mas esses elos constituidores de uma geração, de sua atividade e de seu pensamento compartilhado, que são evocados, de forma quase religiosa, por dentro do filme e de dentro das salas em que as pessoas relembram alguns meses do período Ernesto Geisel. Neles, o jornalista, foi torturado e morto, em um ciclo no qual o esmagamento de pessoas atreladas a uma racionalista, e já mais serena, ação de esquerda se dava como demonstração de força das alas mais radicais do Exército perante as mais brandas. Se o filme soa como um ritual de reanimação, o é menos para a reanimação de Herzog ou de seu mito do que dessa comunidade informalizada que formava, "infiltrada" nos meios de comunicação oficiais ou não do regime, a resistência intelectual nos anos militares. É um ritual das feridas, do compromisso e da memória carcerária dessas pessoas. Herzog é o símbolo, mas estamos em terreno associado.

Nesse sentido, coerente e tão expressiva quanto o conteúdo dos depoimentos é a opção de João Batista de Andrade por encarar a si próprio, sua figura, seu corpo, como personagem. Pelo quadro, ele parece transitar ou se posicionar tranqüilamente, na frente de conhecidos. João Batista foi "soldado" audiovisual (produtor de TV, documentarista) atuante no período da repressão, parte da equipe de "campo" do corpo jornalístico liderado por Herzog no início dos anos 70 na TV Cultura. Foi Herzog o autor do roteiro de seu filme premiado, Doramundo, e companheiro de catequese estética sob a tutela do documentarista argentino Fernando Birri. Nesse posicionamento autorizado, desconstrangido, as entrevistas soam não tanto como entrevistas, e mais como relatos íntimos, relatos de cumplicidade. Situar-se dentro do quadro ou quase, para o diretor, não é um simples fetiche de credibilidade ou de intervenção, mas, sempre, uma maneira de se entender como agente da história que o filme habita e remonta. O caminho para o diretor é, claramente, o de desengavetar, compilar, uma história da qual ele mesmo pertence.

O motor desse filme, assim, é a evocação, quase uma reexperiência mística, sempre tensa, de uma história, "da" história. Se João Batista não sabia disso na época de filmagem, certamente descobriu na época de montagem, com o material filmado pronto e à disposição para ser articulado. É aqui que o diretor, talvez seduzido por uma possibilidade de melodrama nacional retrospectivo, patina. Andrade apresenta o filme, cerimonialmente em seu início, não de forma solene, em 2005 na frente da Catedral da Sé, cenário no qual o corpo de Herzog foi velado. Um tipo de postura que, mesmo sem solenidade, acentua e comprova o teor místico do filme: é uma evidência territorial. Entretanto, a última imagem de todas, fechadura da obra, contradiz esse sentido com uma concretude sociológica, uma concretude barata, diga-se. João Batista levanta-se de uma pequena cadeira na Sé e vai embora: o ritual está encerrado. Perdendo-se em meio a transeuntes populares, passa bem perto de um mendigo deitado ao lado de uma carroça nessa região plural, ao mesmo tempo rica e degradada, do centro paulistano. A imagem, que parece amar essa coincidência, revela uma simetria, um encaixe possível entre passado e presente pelo qual um filme que se constrói no que foi vivido, na memória, pode muito provavelmente se encantar.

Esse tipo de manobra, a grosso modo utilizada (não tanto como manobra, mais como método) de modo fantasmagórico nos filmes de Manoel de Oliveira, torna-se aqui, em Vlado - 30 anos depois apenas um pastiche, um equacionismo de mensagem tão condoída quanto clara: na frente do santuário, no território simbólico da morte de um grande homem, um homem que poderia desvirtuar para bem a história de seu país, os moribundos continuam deitados na calçada. Não houve deslocamento histórico, o cenário é idêntico, João Batista parece sussurrar. É aí que talvez haja um conflito na própria opção de promover a Sé como base na qual se instala o filme. O local parece atingir, de forma sensacionalista, esse espelhamento entre passado e presente, ao mesmo tempo em que a ação daquelas edificações, daquela paisagem meio imutável (sempre velha), revela, de fato, algo de fúnebre, de perenidade ocultista. De qualquer modo, esse conflito, de forma alguma, faz do filme um trabalho menor. O esforço cinematográfico de João Batista é reconhecível e é ele que torna Vlado - 30 anos depois transcendente da esfera limitadora de documentário útil, peça de pedagogia de nossa conscientização ou outra categorização da “responsabilidade social ético-histórica” que, hoje e sempre, legitimará lixo e mais lixo no cinema. Dessa esfera ele foge por méritos.

O que Andrade faz nesse seu filme-cerimônia, em boa parte do tempo religioso, é a rigor um jogo entre espírito e objeto dos mais hábeis, diante de sua principal fonte: os entrevistados. Seu empreendimento é o da materialização do invisível, da geometrização das memórias. Mestre de cerimônias proclamado, João Batista apresenta a obra que virá como um documentário ósseo e palavrado. Um filme desnutrido, de tecidos insubstanciais, sem (muitas) imagens de arquivo. É quase irônico: “aqui vocês não verão quase nenhuma imagem relativa ao Vlado”. Seu talento, no entanto, está exatamente em gerar no quadro um mecanismo de transformação das palavras em imagens e daí, recriar um mundo, da boca e da face das pessoas. Um mundo infernal, vivido coletivamente, e que tem como capítulo conjunto a rápida via-crúcis de Vlado Herzog em 24 horas de um trânsito vertiginoso entre escritórios da TV e salas brancas, tingidas de negro nos relatos, do regime. João Batista suga imagens auxiliado pela capacidade incrível dos narradores de reconstituir verbalmente a história de um curto período, o período deles afinal, o de 1974, 1975, e descrever os êxtases de um espetáculo sinistro e kafkiano. Mas não só nisso.

O que determina a substanciação de palavras é a relação que o diretor estabelece com a câmera e a relação que ele provoca entre câmera, instrumental flexível mas que se recusa a comprar para si a pretensão fácil de reproduzir sentimentos, e o rosto das pessoas. Gradualmente, ele vai, em cada entrevista com Clarice Herzog (a viúva), Rodolfo Konder ou Paulo Markun entre outros, estabelecendo o rosto como crença e mira, forjando lentamente em torno dele um sistema de ângulos que capturam, num amalgamento dos nervos, do movimento manual do cineasta, dos póros e da pele, às vezes suada, dos depoentes, o visual da história. Essa cadência das entrevistas em que câmera apreende, rostos deixam ser apreendidos e as palavras se calcificam é um artifício que poderia facilmente resultar apenas funcional e intensificador do drama. Não é o caso. Acaba por alcançar e dar conta de algo maior. Dar conta afinal do que seria o real impacto da história na vida das pessoas, esse o verdadeiro tema do filme. Muito embora, se possa dizer, o relato pudesse emancipar-se dos "quartos" dos entrevistados e lançar-se mais ao contato físico com esse fantasma histórico. As rondas pelo prédio do DOI-Codi (masmorra maquiada de centro nervoso gerencial da repressão em São Paulo)  e outros prédios-zumbis parece mais protocolar do que natural ao filme. Um filme que desfruta de certos riscos e, por conta deles, de certos triunfos; ou, no quadro de cotações desta revista: "vá ver assim que puder".

Claudio Szynkier